O PLP 192/23: mais um duro golpe à cidadania brasileira
25 de agosto de 2024, 8h00
A aprovação da LC 135/10, usualmente referida como Lei da Ficha Limpa, resultou da mobilização popular, havendo a iniciativa recebido o apoio de mais de 1,6 milhão de brasileiros.
Foi uma vitória da cidadania, um marco na busca pela consolidação democrática e o fortalecimento das medidas de combate a irregularidades e promoção da integridade pública.
Traduz anseio decorrente do mais pueril bom senso: as pessoas condenadas em razão do cometimento de crimes sérios, ultrajantes e ofensivos ao interesse público não podem ser admitidas como representantes desse mesmo interesse, como gestores de recursos públicos (materiais e imateriais) e responsáveis pela garantia e satisfação dos direitos fundamentais da sociedade.
O fortalecimento de medidas de controle e accountability eram à época uma tendência, em que havia constante preocupação com a moralidade e probidade no agir público.
Referida inclinação foi comprometida por fenômenos geradores de descrédito e desencadeadores de uma crise de confiança nas instituições, com uma mudança de rumo e a retomada do sentimento de que os malfeitos valem a pena e que o sistema de contenção a condutas irregulares efetivamente não funciona – ao menos não para os mais poderosos.
Nessa esteira, viu-se a alteração da Lei de Improbidade (Lei 14.230/21); a tentativa de transformar em letra morta os prazos estabelecidos pela Lei de Acesso à Informação [1]; a iniciativa (institucional, do Executivo) voltada ao desmanche de mecanismos participativos tais como o Conselho Nacional da Criança e Adolescente e do Meio Ambiente [2]….
Tal cenário está prestes a produzir mais um feito, especialmente preocupante, por comprometer a espinha dorsal da referida Lei da Ficha Limpa.
Realmente, as alterações propostas à LC 64/90 por meio do PLP 192/23 quanto ao regime de inelegibilidades comprometem a proteção e promoção da moralidade e probidade públicas, com potencial prejuízo ao regime democrático, já bastante combalido pelos referidos retrocessos dos últimos anos e a notória crise institucional entre os Poderes da República.

O projeto, já aprovado na Câmara dos Deputados, foi chancelado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado em 21 de agosto último – passando a tramitar, a partir daí, em preocupante regime de urgência.
Daí a pertinência de uma análise mais detida de seus dispositivos e implicações.
Inovações trazidas pelo PLP 192
A redação sugerida para o artigo 1º, I, ‘b’ e ‘c’ estabelece que os membros do Legislativo e do Executivo subnacional que tenham perdido o mandato por quebra de decoro ou uma das hipóteses constantes no artigo 54 da CF [3] ficarão inelegíveis pelo prazo de oito anos – hipótese já contemplada atualmente.
A inovação fica por conta da forma de contagem desse período: atualmente, tem início com o final da legislatura em que se deu a perda (além do lapso referente a ela), ou seja, após o final do mandato para o qual haviam sidos eleitos; na nova regra, o termo inicial passa a ser a decisão determinante da perda do mandato [4].
Mudança semelhante se verifica quanto ao prazo de inelegibilidade decorrente condenação, pela Justiça Eleitoral, por abuso de poder econômico ou político, que passa a ser considerado iniciado, retroativamente, na data da eleição com relação à qual se deu a prática abusiva.
Note-se que não há aí qualquer menção a trânsito em julgado ou decisão definitiva – o que finda por, na prática, gerar um encolhimento ainda maior de tal lapso temporal.
Interessante observar que dispositivo com finalidade análoga havia sido inserido na Lei de Improbidade Administrativa (artigo 12, §10) – o qual foi objeto da Adin 7.236, em que o ministro Alexandre de Moraes, relator, decidiu cautelarmente pela suspensão de sua eficácia, ao argumento de que
“(…) a suspensão dos direitos políticos em virtude de improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º, não se confunde com a previsão de inelegibilidade do art. 1º, I, l, da LC 64/1990. Enquanto a primeira hipótese tem seu fundamento no art. 15 da Constituição Federal (suspensão), a segunda tem seu fundamento no § 9º do art. 14 do texto constitucional (inelegibilidade legal), que somente abrange uma situação de inelegibilidade, posterior ao término da suspensão dos direitos políticos.”
Acrescenta o ministro que “não se afigura constitucionalmente aceitável a redução do prazo legal de inelegibilidade em razão do período de incapacidade eleitoral decorrente de improbidade administrativa”, escorando-se, ainda, nos princípios do não retrocesso e vedação à proteção deficiente.
Pode-se afirmar, portanto, estarmos diante de pretensão natimorta – ao menos sob o ponto de vista técnico, determinante do reconhecimento muitíssimo provável de inconstitucionalidade.
A alínea ‘e’, estabelece que estarão inelegíveis mandatários condenados por crimes constantes do rol [5] ali trazido, devendo o prazo de oito anos ser contado a partir da condenação por órgão judicial colegiado (e não do respectivo trânsito em julgado).
Mais uma vez, a alteração traz benesses aos condenados: atualmente, o cômputo do referido lapso tem início somente após o cumprimento da pena criminal.
A alínea ‘k’ torna inelegíveis os representantes do Executivo e Legislativo de todas as esferas federativas que renunciarem aos mandatos, desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência à Lei Fundamental do respectivo ente, nos oito anos subsequentes à data da renúncia.
A regra atual determina o cômputo do prazo de oito anos a partir somente do fim do mandato/legislatura em que eleitos.
A alteração proposta na alínea ‘l’ foi ainda mais ousada: além de alterar a contagem do prazo de oito anos de inelegibilidade para os condenados por ato de improbidade administrativa, hoje do término do cumprimento da pena, para a condenação por órgão colegiado (independentemente de trânsito em julgado), criou novas condições para a incidência de tal limitação política.
Originalmente, a causa da vedação à eleição era a condenação por ato de improbidade que redundasse em lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.
Na nova perspectiva, cria-se a exigência de referência explícita e específica, no dispositivo da decisão, à condenação concomitante pelas referidas hipóteses (lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito).
Registre-se que tal exigência alcançaria inclusive decisões pretéritas…
O projeto contemplou ainda o elemento subjetivo condicionante da configuração dos atos de improbidade (cuja disciplina foi recentemente modificada pela Lei 14.230/21, alvo de inúmeras críticas), reafirmando a necessidade de dolo específico – por meio, porém, de redação confusa e redundante com o já disposto no novo inciso I, ‘l’ – e com a própria Lei 14.230/21.
A mesma redundância se verifica quanto ao proposto parágrafo 4º-C do artigo em comento [6].
No que toca à quarentena imposta pelo incido II, ‘g’ aos candidatos à presidência e vice-presidência da República, com vedação da eleição de pessoas que hajam ocupado, nos quatro meses que antecedam o pleito, cargo ou função de direção, administração ou representação em entidades de classe mantidas total ou parcialmente por contribuições impostas pelo poder público ou por recursos arrecadados e repassados pela Previdência Social, a rigidez da proposta aumenta, passando o prazo para seis meses.
Esse incremento é imposto também aos que, candidatos a prefeito e vice, tenham atuado como representantes do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ou desempenhado a função de autoridade policial, civil ou militar, na mesma comarca.
Os parágrafos 4º D e 4E propostos trazem insólita ficção jurídica, segundo a qual futuras condenações por improbidade por atos conexos àquele que já tenha sido objeto de condenação, EM PROCESSO DISTINTO, não poderão gerar nova penalidade de suspensão de direitos políticos.
Em outras palavras, limita-se a possibilidade de suspensão dos direitos políticos a uma condenação, ainda que vários sejam os atos de improbidade pelos quais venha a ser condenado o agente, de forma a criar verdadeira imunidade em benefício daqueles que contem com condenação prévia – em absoluta subversão da moralidade, proporcionalidade, razoabilidade e isonomia.
Realmente, a criação de um “prêmio”, de uma anistia futura (ainda que parcial) para os agentes oficialmente tidos como ímprobos se afigura nada menos que surreal…
E mais: há previsão expressa de que tal lógica (se é que assim se pode chamar) deve alcançar inclusive os processos em trâmite e já julgados.
Mandamento semelhante consta da redação sugerida ao artigo 27-A, segundo a qual os termos iniciais constantes no projeto para o cômputo da pena devem alcançar inclusive “condenações e fatos pretéritos”
Nesse ponto, consignamos, por óbvio que possa parecer ao olhar de alguns, que tal alcance não pode chegar aos processos transitados em julgado, nos termos inclusive da Tese 1.199 do STF, fixada no âmbito do ARE 843.989.
O parágrafo 7º que se pretende inserir prevê o retorno do agente público afastado para concorrer às eleições às suas funções, nas hipóteses de não formalização do pedido de registro candidatura pelo partido, ou registro indeferido ou cassado, somente após o trânsito em julgado da decisão – de modo a criar uma ‘garantia legal ao ócio’, somente retomando suas atividades públicas (e remuneradas com recursos públicos) após esse marco temporal.
Considerações finais
Para além de ofensivas à proporcionalidade e razoabilidade, as alterações beneficiam tão somente agentes políticos, deixando de fora todo o demais rol de agentes públicos contemplados no artigo 1º da LC 64 – o que evidencia de forma ainda mais cabal o desempenho da atividade legislativa em causa própria.
Há contrariedade, ainda, à moralidade e probidade administrativas, e aos princípios do não retrocesso e, por que não dizer, republicano: a iniciativa revela indubitável (e inadmissível) sobreposição de interesses privados em detrimento dos públicos, em subversão a mais esse desiderato fundamental da ordem jurídica pátria.
Daí a sua inconstitucionalidade, a ser oportunamente reconhecida pelo Judiciário, na provável hipótese vir a ser definitivamente aprovada essa frontal ofensa ao sistema eleitoral, à democracia e à dignidade do cidadão brasileiro.
[1] MP 928/20, questionada por meio da ADIN ADI 6351/DF.
[2] Decretos 10.003/2019 e 9.806/2019, questionados junto ao STF por meio das ADPFs 622/DF e 623/DF.
[3] Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: I – desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes; b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis “ad nutum”, nas entidades constantes da alínea anterior; II – desde a posse: a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada; b) ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis “ad nutum”, nas entidades referidas no inciso I, “a”; c) patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I, “a”; d) ser titulares de mais de um cargo ou mandato público eletivo.
[4] O Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado sobre a questão – considerando o final da legislatura como termo inicial – no julgamento da ADI 4089.
[5] Contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; contra o meio ambiente e a saúde pública; eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.
[6] § 4º-C. O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa, impedindo a incidência das alíneas “g” e “l” do inciso I deste artigo.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!