Saneamento, financeirização e capitalismo de compadrio
9 de setembro de 2024, 11h15
Os leilões da Cedae, no Rio de Janeiro (2021), e Sabesp, em São Paulo (2024), colocaram mais 40 milhões de brasileiros sob concessões privadas de água e esgoto. Hoje um em cada três pessoas no Brasil são atendidos por redes de água privatizadas.
O país inaugura um “revival” da era dourada das privatizações dos anos 1990 em meio a sérias dúvidas de que o acesso a um bem essencial, finito e escasso como a água é compatível com a financeirização e o lucro.
No caso do saneamento, a era dourada das privatizações terminou em revés. Relatório do Instituto Transacional, think tank sediado em Amterdã, calcula que 340 concessões de água e esgoto foram reestatizadas entre 2000 e 2023.
O movimento inclui a reversão de privatizações em cidades como Paris (2010), Berlim (2014), Nova York (2016), Atlanta (2013), Budapeste (2012), Barcelona (2014), Buenos Aires (2000) e Jacarta (2017).
Por incrível que pareça, um dos países campeões da reestatização do saneamento é os Estados Unidos. Foram 72 casos registrados desde os anos 2000. A experiência norte-americana mostra que a reestatização muitas vezes não tem a ver com ideologia ou partidarismo. Tarifas altas, investimento baixo e pressões internas levam o poder público a tomar o serviço de volta.
Tentativa e erro
Pesquisadora da Universidade de Cornell, Mildred Warner batizou o movimento de reestatização dos serviços de saneamento nos EUA de “municipalismo pragmático”. Segundo a autora, ainda que no resto do mundo o debate da reestatização tenha um viés político-ideológico, nos Estados Unidos reestatização do serviço de água e esgoto é visto como uma experiência de tentativa e erro.
“No governo local nos EUA, o processo de privatização tem sido um processo dinâmico de experimentação com a prestação de serviços no mercado e de regresso à prestação pública quando a privatização não consegue produzir resultados. Dados de pesquisas nacionais mostram que o que impulsiona esta experimentação são preocupações pragmáticas com custo e qualidade do serviço”, diz Mildred.
Financeirização
A autora constata que o sistema financeiro joga seu peso nesse movimento: no processo de privatização e estatização, agentes financeiros ganham nas duas pontas. Fundos de “private equity” e empresas de capital de risco especulam com títulos e ações e intermedeiam operações de compra e venda de empresas de saneamento, fazendo dinheiro com a transferência da titularidade do serviço.
Privatizar ou reestatizar são ambos um excelente negócio, alimentando pressões pela negociação de concessões de água e esgoto. Mildred conta o caso de Missoula, um município com 80 mil habitantes no centro do estado de Montana. A cidade tinha fornecimento privado de água, mas a partir de 2009 cresceram pressões para a reestatização do serviço, resultando em um jogo político altamente custoso.
Em 2011, em meio a um processo judicial, o município de Missoula ofereceu US$ 65 milhões à concessionária Park Water pela retomada do serviço. A concessionária rejeitou a proposta e vendeu a concessão por US$ 156 milhões para o Carlyle Group, um fundo de capital de risco. Este, por sua vez, revendeu a empresa por R$ 327 milhões para a Liberty Utilities, uma gigante de concessões de saneamento e energia. Em meio ao vaivém, a intermediação da venda rendeu uma valorização de 500%.
Para a pesquisadora da Universidade de Cornell, o caso de Missoula é um alerta para o poder do capital financeiro o fomento a operações de compra e venda de concessões de água e esgoto. No mundo das finanças, tanto operações de privatização ou reestatização de empresas são uma excelente jogada para valorização e transferência de capital, mas só isso. A longo prazo, viabilidade e o risco da operação são desprezíveis frente aos ganhos de curto prazo com especulação, intermediação e corretagem.
Custo benefício
Desde a “era dourada” da privatização de serviços públicos nos anos 1980 e 1990, o grosso das operações saiu dos países centrais e se concentrara no mundo em desenvolvimento. Na China, multinacionais de saneamento como a francesa Suez atuam principalmente em parcerias público-privadas (PPPs).
No Brasil, o formato mais comum é a concessão de serviços. A questão é saber qual modelo é economicamente mais interessante tanto para quem presta o serviço como para quem paga a conta.
No Rio de Janeiro, o leilão da concessão da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) rendeu R$ 22,7 bilhões em outorgas aos cofres públicos além de um compromisso de R$ 30 bilhões em investimentos privados em contratos de 35 anos. Em São Paulo, o leilão de uma parcela de 32% das ações da Sabesp rendeu R$ 14,7 bilhões ao estado, a qual deve realizar R$ 47,7 bilhões em investimentos no período 2024-2028.
Além das despesas do investidor em empresas de saneamento com a compra da concessão e investimentos, há gastos correntes relevantes com folha de pagamento, insumos, manutenção e energia. Por fim, a receita precisa cobrir as despesas financeiras dos acionistas e produzir uma margem de lucro competitiva. O que paga a conta disso tudo é o boleto que chega na casa do consumidor todo mês.
O grupo Food & Water Watch, com sede em Washington, calcula que nos Estados Unidos a diferença entre a conta de água de uma empresa pública e privada em 59%. No Brasil, a associação e sindicato das concessionárias privadas de água e esgoto (Abcon/Sindicon), calculou a diferença em 30% no ano de 2022. A diferença tem subido desde 2020, mas a entidade contrasta esse dado com maiores investimentos no setor privado.
OCDE em cima do muro
Passada a ressaca dos anos dourados da privatização de serviços públicos, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotou um discurso mais moderado sobre privatizar ou não privatizar. “A OCDE não tem posição se o Estado deve ou não ter empresas. A decisão depender de uma série de fatores relacionados com a economia nacional e escolhas políticas”, diz relatório publicado em 2019.
A diferença entre “privatizar certo” e privatizar errado, para a OCDE, é planejamento e boa regulação. “Uma transação bem planejada e executada é apoiada por fundamentos sólidos, fortes arranjos institucionais, regulatórios, boa governança e integridade tem consequências nas atividades de desinvestimento, aumentando a confiança dos investidores, das partes interessadas e do público”, diz a entidade.
Regulação no Brasil
Desde o Novo Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020), aconteceram quase 50 leilões de água e esgoto em 19 estados brasileiros, movimentando cerca de R$ 120 bilhões em investimentos e outorgas. O número de municípios atendidos por serviços privados passou de 7% em 2020 para quase 27% este ano.
Em parte isso se deve em parte ao Marco do Saneamento. A norma reúne três características que facilitaram a concessão de serviços: 1) uniformizou a regulamentação, concentrando normas de referência na Agência Nacional de Águas (ANA), (2) facilitou a formação de consórcios entre municípios e (3) Acabou com os “contratos de programa” com empresas estaduais, incentivando a licitação.
Falta agora garantir uma regulação que proteja os usuários da “captura” dos órgãos reguladores pelas empresas concessionárias. Em São Paulo, no Projeto de Lei Complementar 34/2024, enviado à Assembleia Legislativa do estado em junho, o governo promete redesenhar a regulação do setor dando autonomia, inclusive orçamentária, às agências reguladoras estaduais.
Falta porém fortalecer instâncias de controle social e externo das agências reguladoras. Isso é feito com a instalação de conselhos consultivos, orientadores e revisores. O tema do controle social é uma unanimidade entre especialistas em gestão de sistemas de água e esgoto. O risco é que empresas concessionárias e órgãos públicos formem feudos onde a população só entra para pagar a conta.
Capitalismo de compadrio e soberania
O resultado da falta de controles adequados pode levar a um cenário de “capitalismo de compadrio”, no qual o negócio se torna lucrativo graças aos favores do Estado. Como vimos, em um cenário de financeirização e visão de curto prazo, há risco de contratos de saneamento serem precificados de modo a parar em pé apenas à custa de muitos aditivos pós-contratuais de “reequilíbrio econômico”, sempre a favor do concessionário.
A ameaça da associação da lógica de financeirização dos serviços públicos a um sistema de “capitalismo de compadrio” é a soberania nacional. Sem instituições adequadas e regulação eficaz, a população fica à mercê de empresas privadas e seus atravessadores.
Serviços públicos essenciais como os serviços de água e esgoto não podem ficar à mercê da lógica de especuladores, fundos de investimento e capitais de risco internacionais, os quais pouco ou nenhum compromisso têm com o interesse nacional e o bem estar da população.
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