Opinião

Justiça e reparação nos casos de assédio sexual e moral no ambiente acadêmico

Autores

  • Carmen Hein de Campos

    é doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS professora visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFPel e integrante da Rede Latino-Americana de Acadêmicas e Acadêmicos de Direito (Red Alas).

  • Lívia Gimenes Dias da Fonseca

    é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM/UnB).

29 de março de 2024, 7h03

O assédio sexual e moral em universidades não é uma novidade. Talvez o que seja novo é o aparecimento cada vez mais frequente de denúncias. No entanto, a ausência de políticas universitárias para tratamento adequado das denúncias é uma das razões para a banalização dos casos e pelo baixo número de registros.

Pesquisa publicada em 2022, sobre assédio na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apontou que apenas 10% dos casos são registrados [1], revelando o alto número de subnotificação. A pesquisa também revelou que as mulheres são vítimas mais frequentes de assédio sexual (15%) comparativamente aos homens (5%).

Um dos casos mais rumorosos de condutas de assédio sexual e moral ocorreu no Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra (Portugal), envolvendo um de seus mais prestigiados professores. As condutas foram denunciadas por pichações nos muros do CES, em 2017 e posteriormente, três ex-alunas da pós-graduação denunciaram, em artigo publicado [2], e depois censurado, a existência de assédio sexual e moral no CES.

A denúncia em forma de artigo científico e sem mencionar nomes, ganhou repercussão internacional porque um dos assediadores foi nomeado como professor “estrela”, sendo logo identificado por estudantes e professora(es) do CES.

As estudantes denunciaram as condutas de assédio moral, assédio sexual, abuso sexual, abuso de poder e extrativismo intelectual por integrantes da instituição. O caso reacendeu o debate em torno do assédio sexual e moral nas universidades.

A partir da repercussão do artigo, da pressão de estudantes, de feministas de vários países e do surgimento de novas denúncias, o CES instituiu uma Comissão Independente (CI) para ouvir vítimas, testemunhas e acusados sobre os fatos, tendo divulgado seu relatório recentemente [3].

O relatório concluiu, dentre outras, que “os testemunhos e as denúncias apresentadas pelas pessoas denunciantes são, na sua maioria, testemunhos extensos, com informação precisa e detalhada, situados no espaço e no tempo, descrevendo em pormenor reuniões de trabalho, conversas, situações de convívio e outras, apresentando, na sua maioria, consistência entre si e coerência interna” [4];

“a forma como lidaram com as ‘pichagens’ [pichações], iniciadas em 2017, ignorando e não atuando administrativa e judicialmente, indicia uma maneira leviana de atuação sobre alegados comportamentos que deveriam, por parte de um órgão executivo, ser levados muito a sério, nomeadamente, através de uma investigação interna”, e a existência de “padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES” [5].

Exemplo para o Brasil

O relatório do CI do CES traz detalhes da metodologia utilizada. Houve a escuta de pessoas denunciantes e denunciadas, o recebimento de material probatório de ambas as partes para poder compreender as denúncias e sua validade, averiguação não somente das atitudes de pessoas que realizaram os atos de assédio e abuso em si, mas também daquelas que colaboraram para o encobrimento das denúncias ou foram negligentes ao recebê-las. O relatório apresenta modos de reparação que as pessoas vitimadas desejariam frente aos danos sofridos de ordem psíquica, física, financeira e/ou acadêmica.

Diante das conclusões, o CES, em carta aberta [6], reconheceu a gravidade das denúncias e formulou um pedido de desculpas às vítimas, comprometendo-se a tomar providências para que práticas como as denunciadas não mais se repitam.

As conclusões do relatório final e o compromisso da Direção do CES são importantes para demonstrar para as universidades brasileiras como também podem atuar para a prevenção de casos de assédio e para que denúncias não sejam ignoradas.

François Philipp/Universidade de Coimbra

Dentre as denunciantes do CES/Coimbra, mencionamos Isabella Gonçalves, atualmente deputada estadual em Minas Gerais (PSOL-MG), que aos 26 anos de idade foi contemplada com uma bolsa Capes para cursar doutoramento na instituição. Ao ser assediada sexualmente pelo seu orientador na instituição, descobriu não haver espaços de denúncia tanto no CES quanto na Capes.

Ela se viu obrigada a desistir da bolsa de doutoramento e arcar com todos os custos de retorno ao Brasil. Atualmente, a Capes e o CNPq contam apenas com canais de ouvidoria para o recebimento de denúncias gerais sem uma resolução específica que trate dos direitos de bolsistas em caso de assédio, tampouco possui políticas de acolhimento psicológico e de proteção de vítimas.

Em manifestação frente ao relatório do CI do CES, um grupo de denunciantes do caso no lembra que: “A universidade não é um lugar seguro” [7] e que banir o assédio, a violência e a discriminação no ambiente acadêmico ainda é um objetivo de uma luta em curso.

Para tanto, apontam a necessidade de uma política de “verdade, justiça, reparação, e a garantia de não repetição dos assédios e abusos” [8]. Demandam que, no caso, o CES, “deve combater ativamente o sexismo estrutural e os modelos de gestão sexistas, bem como outras formas de vulnerabilização ativas” [9].

Assédio e importunação

No Brasil, o assédio sexual foi incluído em 2001 como crime no artigo 216-A do Código Penal, todavia, como um ato restrito às relações de trabalho entre um agente hierárquico e uma pessoa em situação de subordinação, em que o sexo seria exigido em troca de favorecimentos.

Diversas situações não eram possíveis de se enquadrar nesse artigo, tal como assédios entre orientador e estudante. O artigo 215-A, incluído em 2018 no Código Penal e que trata sobre importunação sexual, é mais abrangente e permite enquadrar situações mais diversas de constrangimento sexual as quais vitimam as mulheres em seu cotidiano, incluindo o do trabalho e do estudo.

Já o assédio moral não possui legislação específica pela qual se possa aferir o seu sentido, todavia, a jurisprudência trabalhista tanto no âmbito público quanto no privado tem aplicado esse conceito quando há um constrangimento moral de uma pessoa subordinada à sua chefia.

Esse tipo de constrangimento muitas vezes é reflexo de práticas oriundas do fato de que a universidade compõe a sociedade e, como tal, também reproduz, em suas estruturas, opressões de classe, gênero e raça, de maneira entrelaçadas, conforme nos ensina Heleieth Saffiotti (2004, p. 115).

Isso significa que as mulheres, sejam professoras ou estudantes, se encontram mais vulneráveis a violências, em especial, as mulheres negras e indígenas suscetíveis ao racismo genderizado (KILOMBA, Grada, 2019).

São violências que afetam diretamente trajetórias pessoais e profissionais das pessoas que são submetidas a elas e, normalmente, são expressões de poder, principalmente de homens brancos, contra as mais vulneráveis socialmente. O enfrentamento de ambos os tipos de assédio demanda das universidades uma gestão interna comprometida e efetivamente funcional no combate a essas violências.

Movimentos como “#Metoo” permitiram que vozes silenciadas de mulheres violentadas dentro dos seus ambientes de trabalho encontrassem um espaço em que pudessem expor e compartilhar as suas dores e injustiças. Muitas denunciantes tinham sofrido assédios de orientadores, professores, colegas e chefias acadêmicas.

E o mais comum nesses relatos era a falta de apoio institucional para a realização das denúncias, e muitas mulheres acabavam penalizadas em suas profissões pelo assédio sofrido, fortalecendo a cultura do silenciamento acerca dessas condutas.

Assim, muitas universidades passaram a criar comitês e órgãos internos para receber esse tipo de denúncia, porém ainda não há um debate amplo nos meios acadêmicos sobre práticas e resultados que permitam soluções satisfatórias. Na Universidade de Brasília, por exemplo, atualmente há uma ouvidoria, uma comissão de ética e uma secretaria de direitos humanos.

Todavia, não possui um corpo de técnicos especializados e suficientes em número para acolher as denúncias, tampouco um protocolo a ser seguido por esses órgãos, e não há uma produção de dados adequada sobre a ocorrência desses tipos de violência para que possa ser feito um acompanhamento da efetividade das políticas criadas.

Parecer da AGU e abertura de PADs nas instituições de ensino

A Advocacia Geral da União (AGU), em 15 de agosto de 2023, publicou parecer que estabelece que a prática do assédio sexual caracteriza-se como uma transgressão disciplinar de natureza gravíssima a ser punida com demissão, conforme determina a Lei nº 8.112/90, não existindo discricionariedade para aplicação de pena menos gravosa [10].

As universidades e institutos federais são obrigadas a seguir as determinações desse parecer nos seus procedimentos administrativos (PADs) contra pessoas denunciadas e comprovadamente agressoras.

Vale ressaltar que o enfoque no assédio sexual deveria ter sido acompanhado com a preocupação e esclarecimento de procedimentos em casos de assédio moral e abuso de poder, bem como de formas de reparação das pessoas vitimadas. Tampouco há documentos legais que tratam de relações de trabalho e formas de extrativismo intelectual no ambiente acadêmico brasileiro.

Assim, essa determinação acerca de encaminhamento de PADs não isenta as instituições acadêmicas federais de elaborarem normas internas que possibilitem a produção da verdade por meio de escuta protegida, empática e independente de denúncias, com processamento metodológico das informações de forma clara, precisa e descrita em protocolos, com vistas à promoção da justiça por meio da responsabilização de agentes envolvidos nas violações de direitos reconhecidas no processamento das denúncias, em especial, que considerem formas de reparação às vítimas e a não repetição dos fatos. Instituições acadêmicas de outros âmbitos da federação e privadas devem buscar estabelecer regras na mesma direção proposta.

Por fim, faz-se necessário a criação de políticas públicas adequadas tanto para prevenção quanto para um efetivo enfrentamento das denúncias de assédios sexual e moral, além de instrumentos de acolhimento, proteção e reparação das vítimas.

As normas e resoluções sobre este tema precisam ser construídas com ampla participação da comunidade acadêmica, de forma que as respostas realmente contemplem as expectativas das pessoas vulneráveis a esses tipos de violência e que os perpetradores não se sintam mais confortáveis em realizá-las simplesmente por saberem estar protegidos pelo poder que exercem socialmente e no ambiente acadêmico.

 


Referências bibliográficas

ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Antídotos contra o assédio. Nexo Jornal. 25 de fev. de 2022. Acesso em 11 de abril de 2023. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/externo/2022/02/25/Ant%C3%ADdotos-contra-o-ass%C3%A9dio

CFEMEA. Sexta carta do coletivo de vítimas. O relatório da comissão de investigação independente do Centro de Estudos Sociais virou a página do negacionismo do assédio e do abuso de poder. Página do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea). Disponível em https://www.cfemea.org.br/index.php/pt/?view=article&id=9017&catid=577. Acesso em 24 de março de 2024.

CORREIA, Mariama. Deputada brasileira denuncia assédio sexual de Boaventura durante doutorado. Portal Pública – Agência de jornalismo investigativo. Em 14 de abril de 2023. Disponível em https://apublica.org/2023/04/deputada-brasileira-denuncia-assedio-sexual-de-boaventura-durante-doutorado/. Acesso em 24 de março de 2024.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. 1. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

PARECER n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU. Disponível em https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/parecer-da-agu-fixa-pena-de-demissao-para-casos-de-assedio-sexual-nas-autarquias-e-fundacoes-publicas-federais/Parecern.01.2023.PGASSEDIO.SUBCONSU.PGF.AGUUniformizaenquadramentojurdicodoassdioparafinsdaresponsabilidadedisciplinar.pdf.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. Coleção Brasil Urgente. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

VIAENE, Lieselotte; LARANJEIRO, Catarina and TOM, Miye Nadya. The walls spoke when no one else would – Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia. In Sexual Misconduct in Academia. Routledge. 2023. p. 208 – 225.

[1] BRITO, C. et al.. Harassment in Brazilian universities: how big is this problem? The Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS) as a case study. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 94, n. 2, p. e20201720, 2022.

https://www.scielo.br/j/aabc/a/gThR3Njnbx4945tDm5SfzWd/?lang=en#

[2] Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro and Miye Nadya Tom. The walls spoke when no one else would: Autoethnographic notes on sexual- power gatekeeping within avant- garde academia (2023) DOI:10.4324/9781003289944-17

[3] O relatório final foi concluído em 29 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/files/Relatorio%20Final%20-%20CI.pdf

[4] Relatório Final, p.72

[5] Relatório final, p.73

[6] Carta Aberta da Direção e da Presidência do Conselho Científico do CES

https://www.ces.uc.pt/pt/agenda-noticias/destaques/2024/carta-aberta-da-direcao-do-ces

[7] CFEMEA. Sexta carta do coletivo de vítimas. O relatório da comissão de investigação independente do Centro de Estudos Sociais virou a página do negacionismo do assédio e do abuso de poder. Página do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea). Disponível em https://www.cfemea.org.br/index.php/pt/?view=article&id=9017&catid=577. Acesso em 24 de março de 2024.

[8] Idem ibidem, 2024.

[9] Idem ibidem, 2024.

[10] PARECER n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU. Disponível em https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/parecer-da-agu-fixa-pena-de-demissao-para-casos-de-assedio-sexual-nas-autarquias-e-fundacoes-publicas-federais/Parecern.01.2023.PGASSEDIO.SUBCONSU.PGF.AGUUniformizaenquadramentojurdicodoassdioparafinsdaresponsabilidadedisciplinar.pdf.

 

 

Autores

  • é doutora em Ciências Criminais (PUC-RS), professora visitante no mestrado em Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), colaboradora do PPGD do UniBrasil e integrante da Red Alas (Rede Latino-americana de Acadêmicas e Acadêmicos do Direito).

  • é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPeM/UnB).

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