Opinião

A ilegal arquitetura processual do capotamento da 'revisão da vida toda'

Autor

  • Rômulo Saraiva

    é professor advogado especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS) e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

29 de março de 2024, 6h04

Para quem teve a oportunidade de assistir ao último julgamento que envolveu a “revisão da vida toda”, um capítulo de várias discussões nos plenários virtual e físico, muitos ficaram sem entender o porquê de tal matéria não ter sido analisada isoladamente, como vinha acontecendo desde 2022, e qual motivação de subitamente ela emergir no centro do debate das Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADI’s) 2.110 e 2.111.

Torna-se mais curioso ainda, pois não há qualquer pedido formal por parte do Instituto Nacional do Seguro Social para reunir as ações ou mero despacho de algum ministro, de ofício, determinando a conexão prévia entre elas.

De uma hora para a outra, as ações aparecem misteriosamente unidas e a maioria dos ministros se comportando naturalmente diante dessa circunstância, como se nada tivesse acontecido, ao reunir processos em tramitação com fases distintas e um deles, inclusive, com decisão de mérito sacramentada, embora a lei proíba essa prática.

De início, se faz uma ponderação: se a revisão da vida toda vinha sendo discutida no processo RE 1.276.977 (Tema 1.102) de maneira exclusiva desde 2022, por que logo o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, resolveu reunir discussões diferentes, sendo uma delas com o mérito já decidido, franqueando de forma oblíqua que novos ministros pudessem opinar no mérito de algo já decidido?

A segunda pergunta: considerando que lei federal proíbe reunião de processos para julgamentos conjuntos se algum deles já teve o mérito enfrentado por decisão, por que ministros da Suprema Corte brasileira ignoraram solenemente o que dispõe a lei federal?

Além dessas perguntas, estarão no centro do debate deste singelo artigo mais algumas questões inquietantes.

Hibernação das ADI’s 2.110 e 2.111 nas prateleiras do STF

Quando a Lei 9.876, de 29 de novembro de 1999, foi criada, microrreforma previdenciária do governo Fernando Henrique, gerou a reação de alguns partidos políticos em suscitar a inconstitucionalidade de alguns dispositivos.

Apenas três dias depois da criação da Lei 9.876/99, foram protocoladas duas ações diretas de inconstitucionalidade no STF.

Na ADI 2.110/DF, o Partido Comunista do Brasil (PC do B), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizaram a ação para reconhecer a inconstitucionalidade de alguns artigos da Lei 9.876/99, que alteraram a Lei 8.213/91, especificamente nos seguintes artigos:

  • 1) – artigos 25 e 26: as seguradas contribuintes individuais não precisam de carência para gozo do salário-maternidade;
  • 2) – artigo 29: insurgência contra a ampliação de todo período básico de cálculo, para que o cálculo da aposentadoria voltasse a ser com base na média dos últimos 36 salários de contribuição;
  • 3) – artigo 29, §§ 6º, 7º e 8º: inconstitucionalidade do fator previdenciário;
  • 4) – artigo 67: que o salário-família seja pago sem condicionante de a criança ter o atestado de vacinação obrigatória e a frequência escolar;  e
  • 5) –  artigo 9º, da Lei 9.876/99: inconstitucionalidade pelo fato de uma lei federal não poder revogar a lei complementar 84/1996.

Na ADI 2.111/DF, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM) buscou a inconstitucionalidade contra a Lei 9.876, nos pontos:

  • 1) – artigo 29, caput, e parágrafos da Lei 8.213/91: o cálculo do benefício previdenciário de aposentadoria com fator previdenciário; e
  • 2) – a inconstitucionalidade do artigo 3º, da Lei 9.876/99 por se chocar com o artigo 3º da EC 20/1998.

Estas duas ações (ADI’s 2.110 e 2.111) hibernaram nos armários do Supremo por quase um quarto de século. Em 2023, ambas foram julgadas em parte, até que depois disso foram unificadas ao caso da revisão da vida toda.

STF não se deu conta das ADI’s do ano de 1999? Preclusão regimental

Quando o caso da revisão da vida toda chegou ao Supremo, em junho/2022, o processo que discutia a inconstitucionalidade da Lei 9.876/99 — por meio das ADI’s 2110 e 2011 — já se encontrava na corte há 23 anos.

Ninguém em sã consciência poderia argumentar que os ministros desconheciam a existência das respectivas ADI’s, que tratavam em seu bojo da Lei 9.876/99.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Estamos diante de uma situação em que a Corte Suprema impulsionou por anos e julgou processos de forma independente, mas quando eles já estavam praticamente encerrados, resolveu uni-los e inovar na reavaliação do mérito de um dos processos (o da “revisão da vida toda”), em sentido radicalmente oposto ao que fora julgado pelo próprio STF.

Nos termos do artigo 67, § 6º, do Regimento Interno do STF, a prevenção deve ser alegada pela parte na primeira oportunidade que se lhe apresente, sob pena de preclusão. Se caberia a alguém suscitar que os processos fossem reunidos, deveria ter feito no momento adequado, a fim de que a relatoria do caso se concentrasse num só ministro.

Julgamento conjunto: limites
Reunião de processo deve ocorrer antes da análise meritória

Não há problema algum em o STF realizar julgamento conjunto de lides com mesma afinidade temática. Todavia, existem limites.

Há precedentes da corte aglomerando julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida e ADI. Cita o caso do RE 1224374, cuja relatoria foi do ministro Luiz Fux, que reuniu duas ADI’s:

“Trata-se de julgamento conjunto de um recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida (RE 1.224.374) e duas ações diretas de inconstitucionalidade (4013 e 4017). A controvérsia cinge-se à análise da constitucionalidade […]” (RE 1224374, Relator(a): Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 19-05-2022, Processo Eletrônico Repercussão Geral. DJe 22-09-2022. Public 23-09-2022).

A questão é a conformidade do procedimento.

No precedente referido, o ministro Fux reuniu as três ações antes mesmo de suas questões de mérito serem enfrentadas. Em 19 de maio de 2022, ocorreu o julgamento em conjunto de ações com afinidade temática.

Em relação às ADI’s 2110 e 2111 ajuizadas em 1999, o STF já havia identificado a afinidade temática e resolveu reuni as duas.

Em 19 de agosto de 20021, ocorreu julgamento na sessão plenário das ADI’s 2.110 e 2.111, em que os ministros debateram e assentaram seus posicionamentos, inclusive de mérito. Nunes Marques até votou pela improcedência de “toda a ação, acaso ultrapassadas as preliminares”.

Em agosto/2023, o ministro Alexandre de Moraes já tinha tornado público seu voto-vista de que não conhecia da ação e, ultrapassadas as preliminares, acompanhava o Relator para a improcedência dos pedidos.

Enquanto isso, o Tema 1102 seguia seu rumo no STF de forma autônoma. Em 1º de dezembro de 2022, os ministros do Supremo julgaram no Tribunal Pleno o mérito da demanda, cuja conclusão foi “O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 1.102 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário” do INSS.

Sendo assim, o próprio STF já tinha tomado a decisão de proporcionar uma tramitação independente entre as ações do partido político e o Tema 1.102. Causa muita estranheza de uma hora para a outra o STF resolver reunir processos neste nível de amadurecimento.

Artigo 55, § 1º. Atropelamento da lei processual. Reunião de processos em fases distintas e com mérito apreciado. Inviabilidade

O ordenamento legal autoriza reunir para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão (CPC/2015, artigo 55, § 1º).

Portanto, o bom-senso e a técnica processual recomendam a reunião de processos. O problema aqui discutido é promover a reunião de três ações, em fases distintas, cujo julgamentos do mérito já tinham resolvido o assunto de um dos casos.

A lei processual é clara quando diz que a conexão só vai ocorrer, se não tiver julgamento prévio, como dispõe o Código de Processo Civil:

Artigo 55. Reputam-se conexas 2 (duas) ou mais ações quando lhes for comum o pedido ou a causa de pedir.

§ 1º Os processos de ações conexas serão reunidos para decisão conjunta, salvo se um deles já houver sido sentenciado.

Como a discussão tramita no STF, naturalmente não terá sentença, mas acórdão.

Ignorando o que estabelece a lei, os representantes máximos da Justiça brasileira resolveram legitimar esta aberração jurídica de reunir processos que estavam com fases distintas e questões de mérito decididas, permitindo a rediscussão de mérito por novos ministros, em sobreposição à opinião dos ministros que se aposentaram. A prática configura a preclusão em reunir os processos (RISTF, artigo 67, § 6º).

O que foi feito no caso previdenciário vai de encontro à jurisprudência do STF.

Vários ministros do STF têm decisões pela inviabilidade da reunião de processos que se encontram em fases distintas, a exemplo de Dias Tofolli (AgR no HC 156.532, DJe 17.10.2018) e de Gilmar Mendes (HC 186.869, DJe 16.06.2020).

ADI como sucedâneo processual de ’embargo infringente’ e rediscutir mérito do RE

Com uma lucidez diferente da maioria, o ministro Alexandre de Moraes pontuou que a pauta do julgamento das ADI’s envolvia o mérito da revisão da vida toda, o que implicava em reanálise do que fora julgado no RE 1.276.977.

Embora nas ADI’s se discutisse a inconstitucionalidade, elas não adentravam sobre a opção da regra mais favorável (Tema 1102).

Moraes disse que essa era a questão mais importante, ao se referir em utilizar a ADi para “rever o que foi visto no RE”. Eis transcrição do debate entre os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Cristiano Zanin e Gilmar Mendes, no julgamento das ADI’s 2110 e 2111:

– Alexandre de Moraes: “[…] acho que será importante esse Plenário decidir se será possível agora, nas ações diretas [de inconstitucionalidade 2110 e 2111], nós revermos uma decisão já dada no recurso extraordinário [RE 1.276.977]. E obviamente isso é importante, a fim de se garantir a segurança jurídica, porque daquela decisão do recurso extraordinário que fixou uma tese de repercussão geral, para este momento hoje que analisaremos a ADi, houve mudança significativa do Plenário. Então, obviamente se isso poderá ser rediscutido via ADI o que foi discutido no RE. […] Essa é a questão mais importante que vamos discutir hoje. Todas as outras questões ninguém tem dúvida sobre a constitucionalidade”.

– Cristiano Zanin: “Só para lembrar que o recurso extraordinário não transitou em julgado. Existe embargos de declaração, de forma que ali não há também uma decisão definitiva. Então, só para complementar com esta observação

– Moraes: “Exato. É tanto que na pauta seguinte seriam os embargos de declaração. Mas a grande questão é se na ADI nós vamos poder rever o mérito julgado. Já foi julgado o mérito! Lá seria uma omissão, contradição no caso dos embargos […]”.

–  Luís Roberto Barroso: “Essa é a questão controvertida. Saber se quem está no regime de transição está cogentemente ou se pode optar…”

– Moraes: “Então, presidente. Com todo respeito, parece que essa não é a questão mais importante. Essa vai ser a segunda questão mais importante. A primeira vai ser se aqui nessa ADI nós vamos poder rever o que já foi definido no RE”.

– Barroso: “Como observou o ministro Zanin, a questão do RE ainda está em aberto”.

– Moraes: “O mérito não! Só os embargos

– Barroso: “Mas os embargos de declaração reabrem…”

– Moraes: “É para deixarmos bem claro que, se houver uma revisão, nós acabamos revendo uma decisão que foi dada num Plenário por outro Plenário”.

Embora a ilegalidade tenha sido advertida no início da sessão, principalmente ao fato da nova opinião do plenário sobrepor o julgamento feito por outros membros do plenário, o que se sucede é que a maioria dos ministros ignoraram tal aspecto.

Apesar de Zanin ter dito que o recurso extraordinário estava em aberto e, portanto, “ali não há também uma decisão definitiva”, em outro julgamento decidido por ele no STF, nos autos do MS 38067 (Tribunal Pleno, publicado em 18.10.2023), Zanin criticou duramente que “os embargos de declaração não constituem meio processual para rediscussão da matéria já decidida, em decorrência de inconformismo do embargante”.

Em contradição ao que já tinha opinado, Zanin responde a Moraes que não teria problema de apreciar o mérito, em processo reunido tardiamente, tendo em vista que o embargo de declaração do RE 1.276.977 ainda está pendente de análise.

Curiosamente, em outro processo de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso (ADI 7.154/PB, DJ 24.02.2023), ele criticou duramente que os “os embargos de declaração não constituem meio hábil para reforma do julgado, sendo cabíveis somente quando houver no acórdão omissão, contradição, obscuridade ou erro material”.

Na ADI 7.154, Barroso comentou que o recurso de embargos de declaração “veiculam pretensão meramente infringente. Objetivam, assim, tão somente o reexame de pedido já repelido”.

Mais uma vez em contradição, Barroso, no julgamento das ADI’s 2.110 e 2.111 expôs que a questão do Tema 1102 está “em aberto”, sem trânsito em julgado, dando a entender que pode haver rediscussão do mérito sem problema algum.

Como consequência, convalidaram que ADI pode ser usada como espécie de embargos infringentes e rever o que foi julgado anteriormente.

Arapuca jurídica no próximo julgamento da ‘revisão da vida toda’

Inobstante o julgamento das ADi’s ter oportunizado que novos ministros do STF rediscutissem o mérito da revisão da vida toda, e formassem maioria, o Tema 1.102 ainda está pautado para ser analisado. Num contexto para lá de bisonho.

Pode-se dizer que armaram uma arapuca jurídica contra a revisão da vida toda, digna da criatividade de quem queria fulminá-la.

Como as ADI’s estavam pendentes de análise de mérito de ministros, e que este processo ainda faltava o enfrentamento de mérito dos assuntos da Lei 8.976/99, sob pretexto de reunião de processos (tardiamente), debateram o futuro do Tema 1.102 dentro das ADI’s 2110 e 2111, embora proibido, já que o CPC não autoriza que processos em fases distintas sejam reunidos, principalmente quando o mérito de um deles foi exaustivamente debatido.

O embargo de declaração do INSS na revisão da vida toda vai ser julgado, mas praticamente todos já sabem o resultado sobre a questão principal. E isto pode gerar questão de ordem no sentido da prejudicialidade do RE 1.276.977 (Tema 1102) e sua extinção do feito.

Conclusão

A discussão jurídica fomentada nas ADI’s 2.110 e 2.111 reconheceu a inconstitucionalidade de vários artigos da Lei 9.876/99. Todavia, a revisão da vida toda não busca reconhecer este intento, mas apenas a compatibilidade do segurado fazer opção entre uma regra mais benéfica.

Em princípio, as ADI’s 2.110 e 2.111 não colidem com o Tema 1.102. O problema é que os ministros do Supremo, ao usaram as ADI’s para rediscutir o mérito do Tema 1.102, formaram maioria inviabilizando o mérito da revisional. Se não tivesse essa intromissão, e eles analisassem apenas o mérito dos embargos de declaração do INSS, não se colocaria em xeque a integridade de toda a tese.

Enquanto antes não havia prejudicialidade em reunir os processos, agora, tendo em vista que o mérito foi reapreciado, o entendimento esposado nas ADI’s 2.110 e 2.111 é contrário ao Tema 1.102, atraindo o aspecto da prejudicialidade quando os embargos de declaração forem apreciados.

Ao reunir processos com fases distintas, inclusive com julgamento de mérito, o STF cometeu várias irregularidades: feriu flagrantemente a lei federal (CPC, artigo 55, § 1º) e o Regimento Interno do STF (artigo 67, § 6º); incluiu indevidamente uma discussão que não teria pertinência em outro caso; e permitiu que novos ministros rediscutissem o mérito, além de desrespeitar o voto dos ministros do STF que se aposentaram.

Ao agir dessa maneira, quem deveria ser a representação maior do Estado Democrático de Direito e servir de orgulho à nação, dá o mau exemplo ao agredir normas legal e regimental, atentando contra a própria reputação institucional da corte e decepcionando milhares de pessoas que dependia da razoabilidade do STF para frear os abusos cometidos no âmbito da previdência social brasileira.

Para finalizar, o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, ainda conclui o julgamento com o infeliz comentário de que o “aposentado não pode ganhar sempre”.

Autores

  • é professor, advogado, especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS), membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PE, colunista da Folha de S.Paulo e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

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