Opinião

Fim da 'revisão da vida toda' e da esperança de muitos aposentados

Autor

  • Sérgio Henrique Salvador

    é mestre em Direito Constitucional (FDSM) pós-graduado pela EPD-SP e PUC-SP professor de diversos cursos (graduação pós-graduação preparatórios e atualização jurídica) professor titular do Direito Unopar Itajubá coordenador acadêmico da pós-graduação em prática previdenciária da Escola Mineira de Direito (EMD) escritor com mais de 15 livros publicados em várias editoras integrante do Tribunal de Ética e Disciplina (TED) Regional da OAB-MG advogado em Minas Gerais membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica tendo integrado a comitiva de pesquisadores brasileiros no 1º Congresso Internacional de Seguridade Social da Faculdade de Direito de Harvard (EUA) em agosto de 2019.

26 de março de 2024, 16h19

Foi o Tema 1.102 do STF [1] um dos mais relevantes e complexos do cenário previdenciário dos últimos tempos, notadamente pela pretensão de alcançar a justa compreensão jurídica das confusas normas de outrora que alteraram o sistema de cálculo das aposentadorias brasileiras.

Tratou da polêmica “revisão da vida toda”, também chamada de “revisão da vida inteira” ou simplesmente RVT, que recentemente ganhou novos ares de discussão jurídica na Suprema Corte brasileira, fazendo com que sua já reconhecida viabilidade jurídica pelas instâncias inferiores fosse colocada à prova novamente.

Importante tese revisional, originária de estudos doutrinários e da jurisprudência previdenciária que produziu sua força perante os tribunais brasileiros.

Assim, teve respaldo técnico, tanto da doutrina especializada, quanto do poder informador da jurisprudência, enquanto válidas fontes da ciência jurídica, com o intuito claro e justificado de aprimoramento da técnica previdenciária, aliás, sabidamente de dimensão constitucional e pertencente ao rol dos direitos e garantias fundamentais.

Como alvo central teve a pretensão de afastar a regra de cálculo prejudicial aos aposentados, fazendo com que fosse observado o critério legal mais benéfico e favorável, notadamente, pelo fato de que a relação jurídica se via pré-existente a ulterior mudança normativa.

Por aqui, longe a pretensão de exaurir a temática sob a perspectiva técnica, mas sim, de outro lado, traçar pequenas reflexões sobre o recente pronunciamento da Corte Suprema.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

É também papel do Direito produzir respostas aos dilemas da sociedade conforme suas específicas diretrizes, traçando rotas e mecanismos de construção, aperfeiçoamento e consolidação normativa, para que possa ter seu papel-mor de regular os comportamentos sociais e assim produzir a evolução social com base no adotado sistema normativo, esse enraizado em regras e princípios.

Evidente que o Direito não é aquilo que o STF diz, conforme a sempre lúcida lição de Lênio Streck. [2]

Ampla doutrina e a advocacia especializada sempre entenderam que a tese se sustentava por sua absoluta constitucionalidade, também adequada ao primar pela correção de erros de cálculo, além de ter a aptidão jurídica em conferir dignidade e justiça social de seus envolvidos.

Wagner Balera, referência doutrinária do Direito Previdenciário, neste sentido, assegura que: É justíssimo o modelo de cálculo dos benefícios que leva em conta todo o percurso contributivo do segurado. Essa é a melhor expressão da proteção social que é, sobretudo, programa coletivo, no qual, o indivíduo cede passo ao todo”. [3]

Filtro limitado

A bem da verdade, a tese não detinha caráter universal e seu campo de pouso sempre foi limitado, com vários filtros [4], dentre eles, prazo decadencial de dez anos a partir do primeiro julgamento; alcança unicamente certos benefícios do RGPS, excluindo benefícios assistenciais, rurais e de regimes próprios; requer demonstração através de cálculos de seus efeitos positivos; alcança situações deferidas até a data da Emenda Constitucional n.103 de 12/11/2019, dentre outros. Portanto, tese setorizada, razão de que os efusivos e midiáticos números de seus antagonistas não encontravam sintonia com sua pequena incidência a um limitadíssimo número de aposentados.

Os segmentos contrários sempre estiveram distantes da realidade de vida da própria tese, sua essência, viabilidade e importância em sede de aprimoramento da técnica constitucional de proteção previdenciária.

Ademais, comprovado a exaustão que existiram contribuições ao sistema, prova há do custeio, notadamente dos períodos pretéritos de plena e habitual contribuição ativa dos até então filiados trabalhadores, cujo período contributivo não foi utilizado no cálculo de sua aposentadoria, mas sim, mitigado pelo INSS, apesar de auferido em seus cofres.

Logo, as contradições e paradoxos são visíveis, sendo que na perspectiva contributiva o trabalhador foi um grande agente de custeio durante toda sua vida laboral, contudo, quando da entrega da prestação previdenciária parte considerável de suas obrigatórias contribuições ficaram de fora da base de cálculo, com apropriação dos valores por parte do ente previdenciário.

Por esse e outros argumentos é que a tese se sustentava, com destacada sintonia à programação constitucional de bem-estar, dignidade e justiça social.

Teve a Corte Constitucional o desafio de aprimorar a tutela previdenciária, ratificando as posições dos Tribunais inferiores a favor da tese, corroborar as lições doutrinárias, bem como dar vida a consolidada jurisprudência favorável sobre o tema.

Inobstante existir um amplo conjunto técnico de premissas favoráveis que conferiam vida ao tema, em sessão plenária de 21/3/2024, por maioria de votos, a Corte Maior fez outra interpretação da tese, rejeitando-a no mérito, ao fundamento de cogência da legislação de cálculos dos benefícios do RGPS, em outras palavras, não cabe ao beneficiário do sistema a escolha do melhor regramento. [5]

Outra leitura

Em linhas gerais, fez o STF uma outra leitura constitucional, alterando juridicamente seu posicionamento recente que militou em favor do assunto [6].

A nova composição da Corte, o manuseio do regimento interno para discussão em plenário presencial, a invocação efusiva de números e estatísticas do caixa previdenciário, além do discurso de aumento da taxa de sobrevida dos brasileiros incisivamente permearam o debate, alocando o critério técnico-jurídico, infelizmente, a segundo plano.

De relevo, apontar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em plenário, julgando a mesma tese através do Tema nº 999 [7] já havia se pronunciado favoravelmente em favor da revisão, considerando que é de sua competência, diferentemente da Suprema Corte, a interpretação da legislação federal, de onde surge centralmente o debate jurídico do assunto.

Assim, com respeito as opiniões contrárias, usurpou o STF as atribuições do STJ, estando na Corte da Cidadania a última e derradeira instância de julgamento, razão outra de que os fundamentos jurídicos utilizados pelo Tribunal Maior em recente julgamento não orbitaram as fronteiras instrumentais da ciência jurídica, preferindo estranhas premissas.

Infelizmente trilhou o julgamento por outros caminhos, declarando juridicamente a inviabilidade da tese e coletivamente o fim da esperança dos aposentados.

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[1] https://www.jusvox.com.br/opini%C3%B5es/item/262-revis%C3%A3o-da-vida-toda-entenda-a-decis%C3%A3o-do-stf-no-tema-1102-e-a-reviravolta.html

[2] https://www.conjur.com.br/2019-abr-11/senso-incomum-supremo-nao-salvar-mundo-basta-respeitar-direito/

[3] https://www.conjur.com.br/2022-dez-11/wagner-balera-revisao-vida-toda-igualdade/

[4] https://www.conjur.com.br/2022-dez-07/joao-badari-quem-direito-revisao-vida-toda/

[5] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=530062&ori=1

[6] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=498397&ori=1

[7] https://www.jusbrasil.com.br/noticias/stj-julgou-favoravel-o-tema-999-conhecido-como-revisao-da-vida-toda/791940356

Autores

  • é mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), pós-graduado pela Escola Paulista de Direito (EPD-SP) e pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor universitário da graduação, pós-graduação, cursinhos preparatórios e extensão/atualização jurídica, professor titular de Direito na Universidade Norte do Paraná (Unopar Itajubá-MG), coordenador acadêmico da pós-graduação em Prática Previdenciária da Escola Mineira de Direito (EMD), ex-conselheiro da OAB-MG (23ª Subseção), integrante do Tribunal de Ética e Disciplina (TED) Regional da OAB-MG, advogado em Minas e membro da Rede Internacional de Excelência Jurídica.

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