Opinião

Tipificação penal na nova Lei de Agrotóxicos e a abolitio criminis

Autores

  • Luciano Furtado Loubet

    é promotor de Justiça no estado de Mato Grosso do Sul. Tem mestrado em Direito Ambiental e da Sustentabilidade pela Universidade de Alicante (Espanha) e especialização em Direito Ambiental pela Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.

  • Giovani Ferri

    é promotor de Justiça no MP-PR coordenador regional do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente Habitação e Urbanismo doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos pós-graduado em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) e da Rede Latino-Americana de Ministério Público Ambiental (Redempa).

27 de março de 2024, 20h39

Recentemente publicamos nesta ConJur uma análise sobre a tipificação penal da nova Lei de Agrotóxicos e sua interação com a revogada Lei Federal nº 7.802/89 e, também, com a Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9.605/98).

Foram apontadas condutas que continuaram típicas, outras que foram modificadas, revogadas, incluindo a aplicação subsidiária da Lei de Crimes Ambientais.

Avançando ainda mais neste tema, impõe-se trazer à discussão da comunidade acadêmica e dos operadores do Direito as possíveis interações da lei penal no tempo em relação às condutas que, praticadas antes da Lei Federal nº 14.785/23, continuarão a ser consideradas crimes, e aquelas em que poderá haver a abolitio criminis.

Artigo 15 da Lei 7.802/1989 e a lei penal no tempo

Para enfrentamento deste tema, inicia-se pelo princípio basilar insculpido no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição, ao garantir que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Trata-se de uma garantia fundamental traduzida pelo Princípio da Legalidade, igualmente previsto no artigo 1º do Código Penal.

Além disto, o artigo 2º do Código Penal determina que “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.

Trata-se da figura da abolitio criminis, elencada como causa de extinção da punibilidade pelo artigo 107, III, do Código Penal, o qual assegura a impossibilidade de punição criminal em decorrência da retroatividade de lei que não mais considere o fato como criminoso.

Com base nestes pressupostos do Direito Penal é que se exige uma análise do conflito temporal entre as três normas estudadas: a) Lei Federal 7.802/1989; b) Lei Federal  9.605/1998 e c) Lei Federal 14.785/2023.

No tocante aos processos em trâmite, relativos a produtos agrotóxicos, cujas condutas foram enquadradas no artigo 56 da Lei 9.605/1998 por ausência de conduta típica prevista na Lei 7.802/1989, a exemplo das figuras de “importar” e “armazenar”, não há que se discutir a aplicação da lei posterior, já que as penas dos artigos 56 e 57 da nova Lei de Agrotóxicos são mais graves.

Desta forma, não podem retroagir para alcançar situações pretéritas, pois envolvem o fenômeno jurídico da novatio legis in pejus, o qual impede a retroatividade da lei mais severa.

Assim também o é, em relação às condutas enquadradas no artigo 15 da revogada Lei 7.802/1989, relativas a agrotóxicos não registrados ou não autorizados, uma vez que passaram a ter enquadramento no artigo 56 da nova Lei de Agrotóxicos, com pena muito mais severa, não podendo retroagir para alcançar fatos pretéritos.

Reprodução

A questão que se coloca em maior destaque e poderá suscitar controvérsias é a seguinte: em relação às condutas anteriores à nova Lei 14.785/2023, tais como os núcleos “transportar” e “aplicar/usar” envolvendo os agrotóxicos de uso permitido, estariam tais condutas sujeitas ao artigo 56 da Lei 9.605/1998 (conforme já defendemos em artigo anterior e que, inclusive, possui pena mais branda) ou teríamos uma hipótese de abolitio criminis?

Tal questionamento se deve ao fato de que o artigo 15 da revogada Lei 7.802/1989, embora previsse os núcleos “transportar” e “aplicar”, não distinguia os agrotóxicos permitidos dos não autorizados ou não registrados.

Pela nova Lei 14.785/2023, as condutas de “transportar” e “aplicar” foram deslocadas apenas para o artigo 56 da lei (agrotóxicos de uso não autorizado ou não registrado), não estando previstas no artigo 57 da nova lei, que somente se aplica aos agrotóxicos de uso permitido.

Certamente trata-se de uma questão controversa que deverá ser enfrentada pelos tribunais, mas, em nosso entendimento, tais condutas se amoldam ao artigo 56 da Lei 9.605/1998, sendo hipótese de aplicação do Princípio da continuidade normativo-típica, ou seja, embora o tipo anterior tenha sido revogado, a conduta delituosa continua sendo crime com o enquadramento da conduta em outro tipo penal, conforme lecionam Rogério Sanches Cunha e César Roberto Bitencourt:

“O princípio da continuidade normativo-típica, por sua vez, significa a manutenção do caráter proibido da conduta, porém com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A intenção do legislador, nesse caso, é que a conduta permaneça criminosa.” [1]

Aplica-se o princípio da continuidade normativo típica quando uma lei é revogada, mas a conduta nela incriminada é mantida em outro dispositivo legal da lei revogadora, não ocorrendo, via de regra, a conhecida figura da abolitio criminis, a qual extingue, simplesmente, o crime anterior.

Em outros termos, o princípio da continuidade normativo típica significa a manutenção do caráter proibido da conduta, contudo, com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A vontade do legislador é que a referida conduta permaneça criminalizada, por isso, não configura a abolitio criminis [2].

Nesse sentido, destaca-se que tal princípio já foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal:

“Abolitio Criminis. Inocorrência. Princípio da continuidade normativo-típica. Precedentes. (…). 1. A jurisprudência desta Suprema Corte alinhou-se no sentido de que, nos moldes do princípio da continuidade normativo-típica, o artigo 3º da Lei nº 9.983/2000 apenas transmudou a base legal de imputação do crime de apropriação indébita previdenciária para o Código Penal (artigo 168-A), não tendo havido alteração na descrição da conduta anteriormente incriminada na Lei nº 8.212/90. (…)” (STF. AI 804466 AgR / SP. relator: ministro Dias Toffoli. 1ª T. Julg. 13/12/2011).

E ainda:

“A revogação da lei penal não implica, necessariamente, descriminalização de condutas. Necessária se faz a observância ao princípio da continuidade normativo-típica, a impor a manutenção de condenações dos que infringiram tipos penais da lei revogada quando há, como in casu, correspondência na lei revogadora” (STF. HC 106.155 / RJ. rel. p. ac. ministro Luiz Fux. 1ª T. Julg. 4/10/2011).

Importante ressaltar que no excerto do STF, a lei posterior manteve o tipo penal na lei revogadora, sendo apenas transmudado a base legal da imputação criminosa. Contudo, na situação em exame, mesmo não estando previstas na lei revogadora (artigo 57 da Lei 14.785/2023), as condutas de “transportar” e “aplicar” amoldam-se perfeitamente ao artigo 56 da Lei Federal 9.605/1998, que é geral em relação à lei revogada e, portanto, admite aplicação ao caso concreto.

Revogação do artigo 16 da Lei 7.802/1989

A nova Lei 14.785/2023 não reproduziu o crime previsto no artigo 16 da Lei 7.802/1989 [3], cujo dispositivo foi integralmente revogado. Portanto, pela nova Lei de Agrotóxicos, o empregador, o profissional responsável ou o prestador de serviço que deixarem de promover as medidas necessárias de proteção à saúde e ao meio ambiente somente poderão ser responsabilizados, em tese, nas esferas civil e administrativa.

Veja-se que o artigo 16 da Lei 7.802/1989 contemplava um tipo penal “de mão própria”, passível de ser cometido somente pelo “empregador, profissional responsável ou pelo prestador de serviço”. Em decorrência da revogação total do citado dispositivo, temos a hipótese de aplicação do artigo 2º c/c o artigo 107, III, do Código Penal, consistente na figura da abolitio criminis, elencada como causa de extinção da punibilidade aos processos em andamento, em fase de suspensão condicional do processo, acordo de não persecução penal ou em fase de cumprimento de sentença condenatória.

Entretanto, conforme o caso concreto, tais condutas futuras ainda poderão amoldar-se ao tipo penal previsto no artigo 60 da Lei 9.605/1998, a exemplo da conduta de alguém que venha a fazer funcionar um serviço potencialmente poluidor que utilize agrotóxicos, sem que haja a respectiva licença ambiental. Aplicar-se-á, neste caso, o artigo 60 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998).

Outrossim, as condutas previstas no revogado artigo 16 da Lei 7.802/1989 podem eventualmente sofrer enquadramento futuro no artigo 68 da Lei 9.605/1998 (Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental).

Contudo, entendemos que, neste último caso, não é possível a aplicação do Princípio da continuidade normativo-típica às investigações e processos em andamento, uma vez que seriam condutas totalmente distintas (deixar de promover medidas necessárias de proteção à saúde e ao meio ambiente), o que ensejaria uma inovação processual incompatível com os direitos do réu ou investigado.

Todavia, por consistir num tipo penal aberto, o artigo 68 da Lei 9.605/1998 abarcaria todas as demais condutas futuras que não estejam tipificadas nos artigos 60 e 56 da Lei de Crimes Ambientais e nos artigos 56 e 57 da Lei 14.785/2023, para as condutas posteriores à edição da lei.

Conclusões

A nova Lei de Agrotóxicos merece críticas no que tange à eliminação dos núcleos “aplicar” e “prestar serviço” então previstos no artigo 15 da Lei 7.802/1989, pois abrandou a punição criminal nestas hipóteses, contudo, na situação em exame, mesmo não estando previstas na lei revogadora (artigo 57 da Lei 14.785/2023), as condutas de “transportar” e “aplicar” amoldam-se perfeitamente ao artigo 56 da Lei 9.605/1998, que é geral em relação à lei revogada e, portanto, admite aplicação ao caso concreto, mesmo para as condutas anteriores à sua edição.

Outrossim, também merece crítica a revogação integral do artigo 16 da Lei 7.802/1989, não reproduzido pela nova Lei 14.785/2023, deixando de prever a responsabilização penal ao  empregador, ao profissional responsável e ao prestador de serviço que deixarem de promover as medidas necessárias de proteção à saúde e ao meio ambiente.

Referida situação certamente será alvo de possível extinção da punibilidade aos processos em andamento, em fase de suspensão condicional do processo, acordo de não persecução penal ou em fase de cumprimento de sentença condenatória pelo artigo 16 da Lei 7.802/1989.

Contudo, para casos posteriores à edição da lei, por consistir num tipo penal aberto, o artigo 68 da Lei 9.605/1998 abarcaria todas as demais condutas futuras que não estejam tipificadas nos artigos 60 e 56 da Lei de Crimes Ambientais e nos artigos 56 e 57 da Lei 14.785/2023, e que, anteriormente, constavam no artigo 16 da Lei nº 7.802/90.

Como visto, as alterações promovidas pela nova Lei de Agrotóxicos envolvem questões controversas que certamente demandarão criteriosa análise pelos operadores do direito e sobretudo das cortes superiores.

 

 


[1] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: volume único, Parte Geral, Imprenta: São Paulo, JusPODIVM, 11. ed., rev., atual. e ampl., 2022, p. 106.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Princípio da continuidade normativo-típica e suas limitações. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-mar-10/cezar-bitencourt-irretroatividade-lei-penal-grave/ acesso em 05/02/24.

[3] Art. 16. O empregador, profissional responsável ou o prestador de serviço, que deixar de promover as medidas necessárias de proteção à saúde e ao meio ambiente, estará sujeito à pena de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, além de multa de 100 a 1.000 MVR. Em caso de culpa, será punido com pena de reclusão de 1 a 3 anos, além de multa de 50 (cinqüenta) a 500 (quinhentos) MVR.

 

Autores

  • é promotor de Justiça do Núcleo Ambiental do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, doutorando em Direito Ambiental e da Sustentabilidade pela Universidade de Alicante (Espanha), mestre em Direito Ambiental e da Sustentabilidade pela Universidade de Alicante, especialista em Direito Ambiental pela Universidade para o Desenvolvimento do Pantanal, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (ibet) e bacharel em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco .

  • Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná. Coordenador do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo da Região Oeste do Paraná (GAEMA). Doutorando e Mestre em direito público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Especialista em direito ambiental pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro da Associação Brasileira dos membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA) e da Rede Latino-Americana de Ministério Público Ambiental (REDEMPA). Integrante do Grupo de Trabalho "Desastres Socioambientais e Mudanças Climáticas" da Comissão de Meio Ambiente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Professor de direito ambiental em cursos de pós-graduação.

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