Opinião

Princípio da continuidade normativo-típica e suas limitações

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10 de março de 2022, 13h22

Aplica-se o princípio da continuidade normativo típica quando uma lei é revogada, mas a conduta nela incriminada é mantida em outro dispositivo legal da lei revogadora, não ocorrendo, via de regra, a conhecida figura da abolitio criminis, a qual extingue, simplesmente, o crime anterior. Em outros termos, o princípio da continuidade normativo típica significa a manutenção do caráter proibido da conduta, contudo, com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A vontade do legislador é que a referida conduta permaneça criminalizada, por isso, não configura a abolitio criminis. Em sentido semelhante é o entendimento de Rogério Sanches Cunha que, com muita propriedade, distingue ambos os institutos: "A abolitio criminis representa supressão formal e material da figura criminosa, expressando o desejo do legislador em não considerar determinada conduta como criminosa. É o que aconteceu com o crime de sedução, revogado, formal e materialmente, pela Lei nº 11.106/2005". E prossegue Sanches Cunha: "O princípio da continuidade normativo-típica, por sua vez, significa a manutenção do caráter proibido da conduta, porém com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A intenção do legislador, nesse caso, é que a conduta permaneça criminosa" [1].

Nessa mesma linha, tem decidido o Supremo Tribunal Federal, aplicando, nesta hipótese, corretamente o princípio da "continuidade normativa típica":

"Abolitio Criminis. Inocorrência. Princípio da continuidade normativo-típica. Precedentes. (…). 1. A jurisprudência desta Suprema Corte alinhou-se no sentido de que, nos moldes do princípio da continuidade normativo-típica, o artigo 3º da Lei nº 9.983/2000 apenas transmudou a base legal de imputação do crime de apropriação indébita previdenciária para o Código Penal (artigo 168-A), não tendo havido alteração na descrição da conduta anteriormente incriminada na Lei nº 8.212/90. (…)" (STF. AI 804466 AgR / SP. Rel. ministro Dias Toffoli. 1ª T. Julg. 13/12/2011). E ainda: "A revogação da lei penal não implica, necessariamente, descriminalização de condutas. Necessária se faz a observância ao princípio da continuidade normativo-típica, a impor a manutenção de condenações dos que infringiram tipos penais da lei revogada quando há, como in casu, correspondência na lei revogadora" (STF. HC 106155 / RJ. rel. p. ac. ministro Luiz Fux. 1ª T. Julg. 4/10/2011).

Nas duas hipóteses mencionadas no acórdão do STF, a decisão é impecável. No denominado princípio da continuidade normativo típica ocorre a manutenção do caráter proibido da tipificação anterior, apenas com o deslocamento formal do conteúdo criminoso para outro tipo penal contido em uma lei posterior revogadora, tácita ou expressamente, da tipificação anterior. O objetivo do legislador, nesse caso, não é excluir referida tipificação do ordenamento jurídico, mas aperfeiçoá-la, atualizá-la ou, inclusive, ampliar ou diminuir a sua abrangência, sem desnaturá-la, mantendo a sua natureza proibitória. Contudo, quando visa ampliar sua abrangência ou agravar a sanção imposta, a nosso juízo, não é aplicável o princípio da continuidade normativa típica. Em outros termos, o legislador deseja que a conduta anterior permaneça proibida (criminosa), ainda que em outro dispositivo legal, mesmo com alguma alteração material ou formal, desde que não a desfigure e não agrave o crime anterior. Mas essa transmutação não se confunde com abolitio criminis, pois esta apenas revoga a anterior, excluindo-a do ordenamento jurídico.

Por outro lado, a continuidade normativa típica só pode ocorrer com lei posterior revogadora da anterior, ainda que parcialmente, mas que mantém a tipificação da mesma conduta, inclusive com novas elementares constitutivas do tipo penal em outro dispositivo legal. Dito de outra forma, não pode haver hiato nenhum entre uma lei e outra (revogada e revogadora), ainda que seja de apenas um dia, porque, nessa hipótese, entraria em vigor a revogação da lei anterior, sendo inaplicável a lei nova a fatos anteriores à sua vigência, mesmo que entre em vigor apenas um dia pós haver cessado a vigência da anterior, porque isso implicaria na retroatividade de lei penal incriminadora para alcançar fato anterior à sua vigência.

Assim, na admissibilidade do denominado princípio da continuidade normativo típica não há supressão do conteúdo penal de uma norma criminalizadora, isto é, da conduta tipificada em determinado tipo penal, e, por consequência, não se configura a abolitio criminis. O que ocorre, segundo essa "teoria", a rigor, é uma migração do conteúdo da norma penal para um novo tipo penal, mantendo-se, contudo, a criminalização da mesma conduta. Haveria, segundo o entendimento doutrinário-jurisprudencial dominante, apenas a revogação formal do artigo, permanecendo, porém, a proibição penal do mesmo fato típico, apenas em outro dispositivo legal acrescentado pela lei revogadora.

Contudo, na nossa ótica, essa questão não é assim tão simples, e não se aplica a todos os casos, como boa parte da doutrina e da própria jurisprudência dos tribunais pretendem fazer crer. Admitimos essa continuidade normativa típica, somente em tese, na medida em que as condutas novas que, digamos, substituem a conduta revogada, podem acrescentar novas elementares tipificadoras mais graves ou aumentar a sua punição e, assim, agravam a tipificação normativa anterior, esbarrando na irretroatividade da lei penal mais grave. Imagine-se, por exemplo, uma nova lei que redefina o crime de sequestro e cárcere privado (artigo 148 do CP), revogando o conteúdo desse artigo, e inclua, em sua nova constituição típica, elementares como, "com o emprego de arma" ou "mediante violência grave". Certamente, a inclusão de elementares típicas que agravem a conduta anterior ou mesmo que ampliem a sua punição, impede, por si só, que se adote o denominado princípio da continuidade normativo típica, ante a irretroatividade do direito penal (inciso, XL do artigo 5° da CF). A rigor, trata-se de outra infração penal, ainda que mantenha o mesmo nomen iuris e estrutura semelhante, mas a inclusão de outras elementares mais graves e com majoração de pena, desnaturam a infração anterior, não se podendo falar em continuidade normativa típica. Mas (No entanto,) ainda que se possa sustentar que há continuidade normativa típica, ad argumentandum tantum, ela não pode retroagir, posto que a inclusão de novas elementares constitutivas e da sua majoração penal demonstram a inexistência da propalada continuidade normativa, além de sua irretroatividade.

Esses aspectos demandam uma reflexão teórica mais acurada, pois não se apresenta como um dogma inquestionável em um Estado Democrático de Direto, ao contrário do que parece ser o entendimento pacífico da maioria doutrinário-jurisprudencial, especialmente, porque, qualquer das duas circunstâncias — novas elementares típicas e/ou elevação da pena cominada —, agravam a situação anterior e, ambas, ou qualquer delas, não podem retroagir por vedação legal e constitucional. E, convenhamos, tanto a inclusão de novas elementares típicas, como a elevação da pena anteriormente prevista não podem ter efeito retroativo, como já demonstrado. E, nessas condições, a denominada continuidade normativa típica é absolutamente inaplicável, porque de continuidade não se trata, pois não há que se falar em continuidade do que não existia, in caso, de pena mais elevada e de elementar constitutiva do tipo inexistente na lei anterior.

Essa maior gravidade e maior punição são intoleráveis, não podendo retroagir para alcançar fatos passados, inclusive por expressa vedação constitucional. Em outros termos, a denominada continuidade normativa típica recomenda, no plano teórico, maior reflexão, e, no plano prático, impede que se faça tábula rasa sobre essa questão, pelo contrário, como veremos adiante, o cotejamento deverá ser feito, criteriosamente, caso a caso. Uma coisa, contudo, é absolutamente certa: lei penal mais grave jamais poderá retroagir para atingir fatos anteriores à sua vigência, sem qualquer exceção, haja ou não a discutível continuidade típica (vide art. 1º do CP e inciso XXXIX e XL do artigo 5º da CF).

No âmbito jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça também andou adotando o princípio da continuidade normativo típica, embora nem sempre com o acerto técnico-jurídico desejável, como veremos adiante. Referimo-nos, especialmente a uma decisão relativa ao crime de atentado violento ao pudor que era previsto no artigo 214 do Código Penal, com cominação de pena de dois a sete anos de reclusão, o qual foi expressamente revogado pela Lei 12.015/2009. A redefinição operada por essa lei deslocou a conduta que era tipificada no artigo 214 para uma das duas modalidades do crime de estupro, com punição excessivamente mais grave (artigo 213). Certamente, nessa redefinição jurídica do crime previsto no artigo 214 do CP houve abolitio criminis relativamente ao crime de atentado violento ao pudor, contrariamente ao entendimento esposado pelo colendo STJ no Habeas Corpus 680.738, com todas as vênias. A rigor, a redefinição operada pela Lei 12.015/2009, não representou somente o deslocamento para uma das duas modalidades do crime de estupro, mas criou-se uma figura muito mais grave e com pena muito superior (inclusive superior a anterior punição do próprio crime de estupro), com pena de seis a dez anos de reclusão, que não pode retroagir para alcançar fatos anteriores punidos com menor gravidade, como o revogado atentado violento ao pudor. Por isso, em hipóteses como essa, não há como sustentar, juridicamente, à luz do texto constitucional, a aplicação da continuidade normativa típica, ante a inegável ocorrência de abolitio criminis. Um Estado democrático de direito não pode ignorar garantias constitucionais para continuar punido crimes revogados a nenhum pretexto e sob nenhuma interpretação supostamente salvadora do ordenamento jurídico, sob pena de virar ditadura judicial.

No entanto, a despeito dessa maior gravidade do novo tipo penal, que não pode retroagir para aplicar-se a fatos anteriores, o Superior Tribunal de Justiça admitiu como configurada a continuidade normativa típica, ao julgar o HC 680.738), nos seguintes termos:

"Diante do princípio da continuidade normativa, descabe falar em abolitio criminis do delito de atentado violento ao pudor, anteriormente previsto no artigo 214 do Código Penal. O advento da Lei nº 12.015/2009 apenas condensou a tipificação das condutas de estupro e atentado violento ao pudor no artigo 213 do Estatuto repressivo" (STJ. HC 217.531/SP. Rel. min. Laurita Vaz. T5. DJe 2/4/2013). No mesmo sentido: "O princípio da continuidade normativa típica ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário". (STJ. HC 204.416 / SP. Rel. min. Gilson Dipp. T5. DJe 24/5/2012).

No entanto, no plano doutrinário, com o compromisso de levarmos ao público especializado o melhor entendimento, venia concessa, não há como subscrever esse entendimento do Tribunal da Cidadania, pela singela razão de que a Lei 12.015/09 cominou uma pena de seis a dez anos de reclusão para o novo tipo penal (crime de estupro do artigo 213), quando a pena cominada para o crime de atentado violento ao pudor era de dois a sete anos de reclusão. Nessas condições, por todo o exposto, é impossível a aplicabilidade da nova pena a fatos cometidos antes da vigência da nova lei, posto que essa punição mais grave não pode retroagir para atingir fatos anteriores à sua entrada em vigor. Não há como negar que, nessa hipótese, o Tribunal da Cidadania cometeu grave equívoco de interpretação, ao admitir a aplicabilidade do princípio da continuidade normativo típica, pois a agravação da pena cominada pela lei nova, é absolutamente inaplicável a fatos cometidos antes de sua entrada em vigor, ante o salutar princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave (incisos XXXIX e XL do artigo 5º da CF), aliás, repetidos nos artigos 1° e 2° do Código Penal. Caso contrário estaremos rasgando a nossa Carta constitucional.

Em outros termos, as penas previstas para o crime de estupro, nos termos da Lei 12.015/09, não podem ser aplicadas retroativamente ao revogado crime de atentado violento ao pudor (artigo 214), porque, como norma penal mais grave, não pode retroagir para ser aplicada a fatos anteriores à sua vigência: uma coisa é a vedação constitucional expressa de aplicação retroativa de sanção penal mais grave, outra coisa, muito diferente, é a eventual interpretação doutrinário-jurisprudencial criando uma construção artificial para manter a punição de crime já revogado. Essa reengenharia interpretativa deve observar estritamente o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave.

Ora, essa vedação constitucional (e legal) impedindo a retroatividade de sanção penal mais grave, inexistente na data do crime, é uma garantia dos Estados Democráticos de Direito, como é o Brasil, e, objetiva, exatamente, evitar sua aplicação retroativa, a fatos praticados antes da vigência da nova lei penal. E o cumprimento dessa garantia constitucional deve passar, necessariamente, pelo crivo do Poder Judiciário, que não tem o direito de flexibilizar a observância de garantias constitucionais, especialmente a irretroatividade penal mais grave, quer com a criação de novos crimes, quer com aplicação de penas mais graves, inexistentes na data em que o fato criminoso foi praticado. Por isso, nessas hipóteses, é, repita-se, absolutamente inaplicável a construção doutrinário jurisprudencial do princípio da continuidade normativo típica, salvo às hipóteses estritas em que não caracterize efetiva retroatividade de lei penal mais grave.

Com efeito, o inciso XXXIX do artigo 5° determina que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Essa previsão não é apenas um princípio constitucional, mas um legado eternizado como a maior garantia penal constitucional de todos os tempos de qualquer democracia que se prese (preze). Nenhuma constituição de qualquer Estado constitucional moderno pode dele abrir mão. E não satisfeito com esse verdadeiro dogma constitucional, o constituinte brasileiro de 1988 o ratifica no inciso seguinte: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o infrator" (inciso XL). Convenhamos, converter uma contravenção em crime previsto por lei posterior, não beneficia réu nenhum! Logo, essa transformação de contravenção em crime não pode ser admitida, retroativamente, tanto sob a ótica constitucional quanto legal, nos termos dos artigos 1° e 2° do CP. Postas essas questões configura-se uma dupla barreira legal e constitucional intransponível para aplicar-se retroativamente lei penal mais grave.

O dogma constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave não admite exceções, equívocos ou qualquer ponderação, deve ser cumprido estritamente, como garantia constitucional de qualquer cidadão. Na hipótese, a situação apresenta-se ainda mais grave, pela diferença absurda da gravidade da nova tipificação, transformando mera contravenção penal em crime com punição muito superior, prevista por lei posterior. Nunca, sob nenhum pretexto ou fundamento algum se poderá converter um fato anterior, menos grave — mera contravenção penal —, em um crime mais grave —, tipificado retroativamente, ao contrário do que, in caso, admitiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC n° 680.738.


[1] (CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal, 2013, p. 106.

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