Público & Pragmático

O uso dos instrumentos de democracia defensiva no Brasil hoje

Autores

  • Eduardo Rêgo

    é doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e advogado especializado em Direito Público.

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

24 de março de 2024, 8h00

Em termos de verificação sobre a qualidade democrática em um determinado país, a pior coisa que pode acontecer é uma certa “popularização” no uso dos instrumentos de democracia defensiva. A caracterização dessa hipótese seria forte indício de uma das duas seguintes circunstâncias: ou a democracia se encontraria em avançado estágio de erosão, carecendo de uma intensa atuação dos agentes estatais comprometidos com a sua salvaguarda, ou os instrumentos de democracia defensiva estariam sendo indevidamente banalizados e manipulados para fins políticos, em fortalecimento antidemocrático de determinados braços do Estado em detrimento dos demais.

Quando o presidente do Senado devolve ao presidente da República uma medida provisória atentatória ao Estado Democrático de Direito, ou quando o Supremo Tribunal Federal lança mão do controle de constitucionalidade para anular um indulto natalino concedido pelo chefe do Poder Executivo, tais procedimentos são absolutamente excepcionais e somente possuem legitimidade se, de fato, não existirem alternativas menos gravosas para proteger o regime democrático. Por isso é que tais ativismos legislativos ou judiciais não podem se tornar a regra geral dentro da relação entre os poderes instituídos.

Premissas

Certamente, (ainda) não há uma fórmula fechada para o manejo da democracia defensiva no Brasil. Mas há algumas premissas que, sem esgotar o tema e nem fechar as portas para outras hipóteses igualmente plausíveis, podem ser adotadas na sistematização de um modelo teórico de defesa da democracia.

A primeira premissa é que a democracia defensiva somente deve ser aplicada de forma espontânea, isto é, sem esgotamento legislativo, em tempos de exceção. Em tempos de normalidade institucional, não há razão para invocá-la. A verificação sobre a ocorrência ou não do estado de exceção deve ser feita caso a caso e deve contar não apenas com a desconfiança do agente comprometido com a salvaguarda da democracia, mas também com um certo consenso da comunidade político-jurídica.

É preciso pontuar que estado de exceção não se presume, mas, por outro lado, não se pode exigir que, para a sua configuração, haja já um avançado desgaste das instituições democráticas, pois, nesse ponto, será tarde demais. O estado de exceção precisa ser apurado desde cedo, de modo que as providências em defesa da democracia sejam praticadas em tempo e de forma eficaz. De nada adianta identificar o estado de exceção depois que ele já estiver consolidado ou em fase avançada de erosão democrática.

Alguns indícios sobre a ocorrência de um estado de exceção antidemocrático seriam o uso, por parte de um governo eleito, de práticas como o constitucionalismo abusivo, o legalismo autoritário, o militarismo inconstitucional, o aparelhamento de instituições políticas fundamentais, o assédio institucional e a divulgação de fake news. Um conjunto da obra como esse certamente indicaria um estado de exceção a justificar o uso dos instrumentos de democracia defensiva.

A segunda premissa tem a ver com a conveniência de positivar os instrumentos de democracia defensiva na própria Constituição, de modo a não deixar dúvidas sobre os valores democráticos que devem ser albergados no seio da sociedade, bem como sobre a legitimidade dos agentes públicos para a sua implementação.

Por exemplo: se a devolução de medidas provisórias de teor antidemocrático é um mecanismo adequado para proteger a democracia, então o ideal é que haja uma exaustiva regulamentação do instituto, sob pena de distorções indevidas e autoritarismo reverso.

É natural que, num momento de transição no qual os arroubos antidemocráticos de uma autoridade política pegam todos de surpresa, os instrumentos de democracia defensiva não estejam ainda previstos em lei e que sejam manejados conforme as urgências ocasionais forem surgindo, mas essa situação de precariedade não pode vigorar por tempo indeterminado, pois não contribui para a consolidação da democracia defensiva no Brasil.

A terceira premissa é que haja um aprimoramento, inclusive legislativo, na compreensão sobre a extensão da garantia da liberdade de expressão no Brasil. Por aqui, muitos políticos têm tentado importar a doutrina norte-americana sobre liberdade de expressão, como se as premissas lá existentes fossem, de alguma maneira, universais. Não são.

Por tradição específica daquele país, a liberdade de expressão é quase absoluta nos Estados Unidos. Por lá, é possível, por exemplo, defender uma manifestação racista da Ku Klux Klan em praça pública; por aqui, não existe essa possibilidade. A liberdade de expressão encontra limites em outros valores constitucionais, como a cidadania, a honra, a intimidade e a dignidade da pessoa humana, como aliás é assente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [1].

Limites

Tendo isso em vista, uma das questões mais importantes a serem resolvidas em relação aos limites da liberdade de expressão no Brasil é a necessidade de punição a quem divulga fake news. Num Estado Democrático de Direito como o Brasil, em que diversos valores humanitários foram erigidos a direitos fundamentais positivados constitucionalmente, não é possível tratar a divulgação de notícias falsas como se fosse um direito subjetivo.

Não há na Constituição nada que respalde um suposto direito de divulgar mentiras como se fossem verdades, menos ainda quando tais mentiras têm potencial para influenciar nas eleições e, consequentemente, na qualidade da democracia no país. Uma democracia saudável não pode tolerar o livre uso de fake news, inclusive para fins político-eleitorais, sob pena de distorções irreversíveis.

A quarta (e última) premissa é a necessidade de criação de uma cultura de defesa da democracia no Brasil, a ser praticada não apenas em tempos de exceção, mas a todo momento. Ao contrário do que foi dito acerca da utilização espontânea dos instrumentos de democracia defensiva, que devem ser empregados apenas excepcionalmente, a formação de uma cultura de democracia defensiva deve seguir a lógica do aperfeiçoamento.

Com efeito, nunca é demais empreender esforços para fortalecer a ideia de democracia no seio da sociedade, mesmo que ela não esteja em iminente risco. Vale lembrar que os valores democráticos são valores constitucionais e, como tais, devem estar presentes no dia-a-dia do cidadão comum.

Contribui para a formação de uma cultura de defesa da democracia o fomento a uma justiça de transição eficiente e que não se contente com a concessão de ocasionais anistias aos inimigos da democracia, pois a memória de um país deve contemplar não só os louros das vitórias, mas também as chagas das derrotas.

De igual modo, é necessário preservar a liberdade de imprensa, de modo a garantir aos cidadãos a informação livre de preferências políticas de qualquer sorte. Uma imprensa livre garante a difusão de ideias antagônicas e permite que os cidadãos tenham condições de escolher entre elas aquelas que melhor lhes convêm em termos ideológicos.

Finalmente, é preciso reafirmar a laicidade do Estado brasileiro, desfazendo confusões elementares sobre o nível de influência que a igreja deve ter na cidadania, de modo que as pessoas se dispam de preconceitos e sejam capazes de submeter à religião questões de cunho pessoal e deixar ao crivo do Estado questões patrimoniais e de saúde pública.

Para evitar mal-entendidos: preconizar uma cultura de democracia defensiva não significa advogar uma cultura de desconfiança em relação à política ou à religião, mas, sim, defender uma cultura de salvaguarda da democracia.

 

 


[1] Cf., entre outros, o precedente de relatoria do ministro Dias Toffoli, exarado em 30/8/2011 no bojo da Ação Originária nº 1390/PB.

Autores

  • Doutor em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com período sanduíche na University of Connecticut (UCONN). Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Advogado. Professor de Direito Constitucional, Direito Processual Constitucional e Filosofia do Direito. E-mail: [email protected].

  • é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor e advogado especialista em Direito Público, membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

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