Opinião

A reconstrução da cúpula na subdemocracia brasileira

Autor

  • Daniel Rocha Chaves

    é doutor em Direito (Direito Política e Sociedade) pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e mestre em Direito (Direito e Relações Internacionais) também pela UFSC. Graduado em Direito pela Unifor (Universidade de Fortaleza). Professor universitário e advogado.

19 de março de 2024, 16h04

Em novembro do ano passado, tive uma grata e feliz surpresa ao saber que minha pesquisa de doutoramento conquistou o primeiro lugar no Prémio Fibe 2023, concurso de teses e dissertações promovido pelo Fórum de Integração Brasil Europa.

Essa premiação é para mim a coroação de uma caminhada de pesquisas iniciada desde a graduação no Ceará e consolidada durante os anos de mestrado e doutorado em Santa Catarina.

A tese de doutorado tem por título “A reconstrução da cúpula na subdemocracia brasileira: conceito e evolução numa perspectiva sistêmica” [The reconstruction of the summit in Brazilian under-democracy: concept and evolution in a systemic approach] [1].

Foi originalmente redigida em inglês e defendida em julho de 2022 junto ao PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação do professor doutor Luiz Henrique Urquhart Cademartori.

Seu objetivo primordial consistia em propor o conceito de subdemocracia como categoria analítica para reduzir imprecisões verificadas na utilização dos conceitos usualmente voltados à compreensão dos processos de formação, consolidação e erosão da democracia.

Alguns acontecimentos ocorridos após a defesa da tese até o momento da redação deste artigo (março de 2024) corroboraram a pertinência teórica do conceito de subdemocracia, como o episódio da invasão do Congresso brasileiro em janeiro do ano passado, e que será pormenorizado mais adiante.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

A pesquisa lança mão da teoria dos sistemas elaborada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, conhecido pelo uso de terminologia própria, a qual pode eventualmente tornar árduo o entendimento por parte leitores não familiarizados com o seu programa teórico.

A justificativa para a escolha de tal referencial reside na sua capacidade analítica de observação da sociedade mundial moderna, tal como ela se apresenta, isto é, hipercomplexa, funcionalmente diferenciada.

Dito isso, o primeiro capítulo tratou de expor os principais conceitos operacionais, especialmente como atuam os sistemas político e jurídico na modernidade.

‘Efeito Trump’

Ato contínuo, aquilo que ali chamei de “Efeito Trump” [Trump’s Effect] se entendia no contexto da reação da comunidade internacional registrada em uma série de estudos — a maioria com teor de divulgação científica, visando ao maior público possível — que abordavam eminentemente o tema da “ameaça à democracia”.

É óbvio que o ex-presidente Donald Trump, cujo mandato se estendeu de 2017 a 2021 (com chances de se tornar presidente pela segunda vez nas próximas eleições norte-americanas), não possui toda a responsabilidade no tocante às assim chamadas ameaças à democracia, enquanto fenômeno amplamente constatável.

Elenquei ainda, por exemplo, Viktor Orbán, premiê húngaro que ocupa tal posição desde 2010, bem como Recep Erdoğan, que, entre 2003 e 2014, foi primeiro-ministro da Turquia e, desde então, permanece presidente do mesmo país; ambos têm ambos, ao lado de vários outros, sua cota-parte a esse respeito.

No que concerne ao Brasil, coube a mim me debruçar sobre o governo do então presidente da República Jair Bolsonaro (2019-2022), enquanto foco da pesquisa então desenvolvida.

Não se trata de estadistas insulados, pois a conhecida afinidade entre Trump e Bolsonaro, a título de ilustração, aponta para a reprodução, pelo último, de discursos, estratégias e expedientes autoritários adotados pelo primeiro.

Sistemas jurídico e político

Já o segundo capítulo teve como intento adentrar as teorias da democracia, passando por um recorte histórico e teórico, especialmente pelo redesenho semântico que o conceito de democracia passou a deter na modernidade, para, então, culminar na ideia (de fundo luhmmaniano) que a democracia é uma aquisição evolutiva dos sistemas jurídico e político.

Blink O'fanaye/Flickr

Em seguida, foquei nas vicissitudes da democracia em um contexto de “modernidade periférica” — na qual o Brasil se situa —, percebendo-se que, com a ascensão de novas figuras políticas que vão ao encontro de condutas populistas, há uma pretensão de redesenho da forma como o sistema político opera, deixando de se guiar pela diretriz “governo/oposição” e passando a adotar a forma operativa de “amigo/inimigo”.

Essa possível reprogramação ou reorientação do sistema político talvez tenha atingido seu estopim com o Capitol Riots — a invasão ao Capitólio, onde se localiza o centro legislativo norte-americano — em 6 de janeiro de 2021. Na esteira daquelas afinidades há pouco mencionadas, assistimos mais tarde no Brasil uma espécie de “equivalente funcional”: a invasão ao Congresso brasileiro no dia 8 de janeiro de 2023.

Leiamos, a propósito, o que havia sido sustentado na tese em questão:

“O fato é que ainda não ocorreu uma interrupção da política democrática, contudo, o que prospera são os ataques maciços às instituições democráticas. Não aceitar os resultados das eleições ou minar a credibilidade do sistema de votação são recursos cada vez mais recorrentes daqueles que contrariam as premissas básicas de qualquer modelo ou conceito de democracia.” (tradução do autor)

Quase um ano e meio separa a citação acima do ataque ao Capitólio; e quase seis meses da invasão ocorrida em janeiro do ano passado em Brasília. Apesar de tudo, a democracia persiste em ambos os países.

Se tomássemos como acertados os modelos de classificação de regimes políticos contestados na tese — a saber: pseudodemocracia, regimes híbridos, semidemocracia e anocracia, verificando-se que estes incorriam em classificações minimalistas ou em relações dicotômicas baseadas em um binômio autocracia/democracia —, qualquer conjuntura poderia aparentar uma espécie de autocracia, ante as assim consideradas “impecáveis” democracias centro-europeia e estadunidense.

Ora, ao se afirmar que a compreensão das ideias de democracia na modernidade significa a compreensão da formação social da própria modernidade, constatei que essas classificações minimalistas ou dicotômicas não possuem a pretendida pertinência ao se analisar países inseridos em um contexto de modernidade periférica, caso do Brasil, dito acima.

Para sanar os déficits analíticos que não levam em consideração as assimetrias estruturais da sociedade mundial é que propus, portanto, o conceito de subdemocracia, o qual se justifica na facticidade da deturpação na codificação secundária que o sistema jurídico exerce sobre o político, como fruto de influxos alopoiéticos nos referidos sistemas.

Operação dos sistemas sociais

Em uma linguagem menos acadêmica ou, quem sabe, menos luhmanniana: verifica-se uma frequente deturpação da forma intrínseca à operação dos sistemas sociais (direito, política, economia, saúde, educação etc.).

Divulgação

Por exemplo, a esperada codificação secundária que o sistema jurídico deveria ser apto promover em face do político — ou seja, Têmis domesticando o Leviatã — resta prejudicada justamente pelos referidos fatores terceiros mencionados no início desta formulação.

Em outras palavras, os sistemas sociais acabam sendo colonizados por injunções alheias ao seu próprio funcionamento interno: o sistema político pelo sistema da família; o sistema jurídico pelo sistema econômico; o sistema da saúde pelo sistema da religião, e assim por diante.

Os atuais conflitos bélicos talvez possam nos instigar, ademais, a colocar em xeque os mais variados e usuais conceitos de democracia — na maneira que eles se fazem valer de recursos de classificação — e a começar a ampliar a viabilidade do conceito de subdemocracia.

Se originalmente a ideia era propor um conceito intermediário, que tinha como âmbito de aplicação a modernidade periférica, pouco mais de um ano e meio após a defesa da tese, o que nos parece é que o centro está ficando cada vez mais periférico — conforme já havia adiantado o professor Marcelo Neves[2] —, e a ideia de subdemocracia deixará seu contexto específico, até então periférico, e passará a ser observado de forma geograficamente mais espraiada.

A proposição de novas categorias analíticas, embora possa ser algo arriscado, faz-se necessária ante a complexificação da sociedade. É por esse motivo que propostas integradoras se mostram imprescindíveis para promover a melhor compreensão do nosso mundo.

Foi precisamente isso que tentei realizar com a minha pesquisa: buscar um conceito que comungue as diferenças sem excluir os extremos. E é isso que o Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe) [3] vem desenvolvendo ao longo de tão poucos anos de existência, mas já de forma profunda e impactante: fomentar o debate por meio da diferença de ideias que, embora separadas pelo Atlântico, tornam-se cada vez mais próximas graças às suas louváveis iniciativas.

___________________________________________

[1] CHAVES, Daniel Rocha. The reconstruction of the summit in Brazilian under-democracy: concept and evolution in a systemic approach. 194 f. Tese (Doutorado) – Curso de Doutorado em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022.

[2] NEVES, Marcelo. Os Estados no centro e os Estados na periferia: alguns problemas com a concepção de Estados da sociedade mundial em Niklas Luhmann. Revista de Informação Legislativa, [S.L], v. 2, n. 206, p. 111-136, Abr. 2015.

[3] O regulamento   e as inscrições para o Prémio FIBE 2024 estão disponíveis no site https://forumbrasileuropa.org/premio-fibe/

Autores

  • é doutor em Direito (Direito, Política e Sociedade) pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e mestre em Direito (Direito e Relações Internacionais) também pela UFSC. Graduado em Direito pela Unifor (Universidade de Fortaleza). Professor universitário e advogado.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!