Opinião

Repare bem nas mulheres e em trajetória da verdade e reparação após 60 anos do golpe

Autores

  • Lucia Elena Bastos

    é advogada. Ph.D. em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Atuou como pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP).

  • Melina Girardi Fachin

    é professora associada da Universidade Federal do Paraná (com estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra no Instituto de Direitos Humanos e Democracia) doutora em Direito Constitucional (com ênfase em direitos humanos) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo visiting researcher da Harvard Law School (2011) mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP bacharel em Direito pela UFPR e advogada sócia de Fachin Advogados Associados.

  • Inês Virgínia Prado Soares

    é desembargadora federal no TRF-3 e mestre e doutora em Direito.

28 de março de 2024, 6h02

Em 2024, não haverá iniciativas oficiais para rememorar os 60 anos do golpe, que levou nosso país a uma ditadura que perdurou 21 anos (1964-1985). Depois de seis décadas, há pudores para falar lembrarmos de torturas, desaparecimentos forçados e exílios, de assassinatos, estupros e perseguições a oponentes políticos, com cassação de direitos, exonerações de empregos públicos, de censura às artes e a artistas.

A opção do governo é ignorar as vítimas e não incomodar os algozes e seus apoiadores. Tudo merece ser calado para fazer de conta que está esquecido, que já passou.

No entanto, não há justiça sem olharmos pelo retrovisor. O esquecimento das atrocidades pressupõe (re)conhecimento de sua existência.

Nessa perspectiva, a decisão do governo brasileiro de 2024 vai de encontro aos valores e princípios basilares da justiça de transição, aquela que a doutrina define como conjunto de medidas e estratégias adotadas para lidar com o passado de graves violações em massa de direitos humanos que ocorreram num período de exceção: ditaduras, guerras etc.

O Brasil foi condenado por duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (casos  Guerrilha do Araguaia e Vladimir Herzog) pela sua postura em relação aos crimes cometidos durante a ditadura. Em 2023, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu perante a Corte IDH mais um caso desse período, em virtude das detenções arbitrárias e tortura, também no período da ditadura, contra os militantes políticos Denise Peres Crispim e Eduardo Collen Leite, e pela execução extrajudicial de Eduardo Collen, conhecido como Bacuri.

A ênfase (ou a novidade) do caso Denise Crispim, Bacuri e outros é o olhar acurado da corte para os danos sofridos pelas mulheres, especialmente as grávidas, as presas e as que tiveram de deixar o País — ou que ficaram mas foram separadas de seus maridos ou familiares, que foram para o exílio. A expectativa é que a corte também se manifeste sobre os danos transgeracionais que violações desse tipo acarretam.

Reprodução

As condenações pela Corte IDH, assim como o processo atual (caso Denise Crispim, Bacuri e outros), demonstram que o País não consegue dar conta do seu passado autoritário — o que se mostrou bastante perigoso no governo Bolsonaro (2019/2022) e nas manifestações violentas do 8 de janeiro de 2024, um golpe frustrado contra a democracia, uma tentativa de retorno a um regime autoritário, como apontam as investigações criminais em andamento.

​De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), as obrigações internacionais recaem sobre os Estados no que tange a cada uma destas dimensões da justiça de transição, de modo que a verdade não substitui a justiça nem as reparações — e vice-versa.

Promoção da verdade

Em 2011, o Conselho de Direito Humanos da ONU adotou a Resolução 18/7, por meio da qual instituiu uma relatoria especial (Special Rapporteur) para a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não-repetição.

Antes, em 2005, a Assembleia Geral da ONU instituiu os princípios e diretrizes básicas referentes ao direito das vítimas de violações manifestas das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário a interpor recursos e obter reparações (Resolução 60/147).

De acordo com esse documento, a reparação deve guardar proporcionalidade com a gravidade da violação e as circunstâncias do caso. As reparações e as iniciativas reparatórias não oficiais são necessárias e contribuem para a reconciliação coletiva.

Dentre as reparações, está a iniciativa de eleger dias comemorativos para formar e consolidar a memória coletiva. Essa prática secular, usada em todo o mundo e indistintamente por governos autoritários e democráticos, carrega uma tensão, com  disputas pelo protagonismo das narrativas oficiais.

Durante muito tempo, as homenagens foram rendidas a grupos ou pessoas que já desfrutavam de privilégios e poder. Nas democracias, datas relevantes para grupos minoritários ou minorizados passam a ser a integrar os calendários oficiais, como atendimento das demandas por reconhecimento e reparação simbólica. Por esse motivo, a determinação de silêncio sobre os 60 anos do golpe é uma afronta à memória coletiva e fragiliza o “Nunca Mais”.

A arte cinematográfica também se enquadra na modalidade reparatória garantias de não repetição.

Em 2013, dois anos depois de o caso de Denise Crispim e Bacuri (Eduardo Collen Leite) chegar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi lançado o documentário “Repare Bem”, uma coprodução entre França, Itália e Brasil, que contou com o apoio da Comissão de Anistia (comissão estatal criada pela Lei 10.559/2002).

Em meio às sombras do esquecimento institucional, emerge a luz da justiça impulsionada pela força resiliente das mulheres. O documentário “Repare Bem” não apenas narra histórias de dor e resistência, mas também representa um ato de reparação simbólica e coletiva.

Ao dar voz às experiências de mulheres como Encarnación Lopes Perez, Denise Crispim e Eduarda Crispim Leite, o filme desvenda as profundezas das cicatrizes deixadas pela ditadura e ressalta a importância de reconhecer e reparar as injustiças do passado para construir um futuro mais justo e inclusivo.

Repare Bem foi dirigido por Maria de Medeiros e apresenta a história de Denise Crispim, de sua mãe Encarnación Lopes Perez, militante da VPR, presa e banida do País em 13 de janeiro de 1971, por ocasião do sequestro do embaixador da Suíça no Brasil, e de sua filha com Bacuri, Eduarda Crispim Leite, que já veio ao mundo como perseguida política.

A história das três gerações de mulheres nos permite perceber a importância do gênero nos atos de resistência. O filme é focado no depoimento das protagonistas.

As feridas psicológicas deixadas pela tortura a Denise quando estava grávida de Eduarda são notadas a cada fala. As memórias das relações de gênero também podem ser percebidas com clareza na sua fala ao relembrar os elogios do sequestrado político à comida que ela cozinhava (enquanto integrante do núcleo sequestrador); e também quando conta sobre a conversa com o pai — que sugeriu que seu papel de militante era mais importante do que sua tarefa de mãe. Mas, foi a perspectiva de Denise como mãe — exigindo dela muitos esforços para se manter viva — que a fez sobreviver a toda a violência daquele período.

A história de Denise e Eduarda foi reconhecida pela Comissão de Anistia em 2009. Além da compensação financeira, o governo apresentou suas desculpas oficiais, e a Comissão de Anistia determinou a inclusão do nome do pai na certidão de nascimento de Eduarda. Aliás, o financiamento do documentário Repare Bem é uma medida reparatória coletiva que adota a perspectiva de gênero.

A luta por verdade e justiça, por meio de estratégias que acreditam nas instituições, foi veiculada no filme “Argentina, 1985”, dirigido por Santiago Mitre, lançado em 2022.

Este filme, ao retratar um julgamento emblemático, mostra a importância de se enfrentar o passado, com o processamento e punição dos responsáveis. Em quatro meses, 833 pessoas testemunharam no processo sobre o aterrorizante aparato clandestino da repressão. Um dos pontos altos é o depoimento de Adriana Calvo de Laborde, que havia sido sequestrada quando estava grávida de nove meses e que deu à luz no carro dos algozes.

Após ter o bebê, ela foi levada a um prédio no qual, nua e sangrando do parto, foi obrigada a lavar o chão do local. No filme, nota-se uma mudança na opinião pública após a crueldade relatada por Adriana Calvo.

Filmes que incomodam

Os filmes Argentina, “1985” e “Repare Bem” são incômodos quando vistos desde o contexto brasileiro de 2024. Por muitas razões. Queremos destacar uma delas, no aniversário dos 60 anos do golpe: a pouca atenção, sob a lente de gênero, à crueldade dos algozes, que permanecem impunes.

Aqui, mulheres foram presas e abusadas em estado puerperal e sofreram a violência de ficarem nuas, inclusive para realizar tarefas de limpeza nos cativeiros nos quais estavam detidas. Foram humilhadas e estupradas. Quando não eram as protagonistas da resistência, tiveram suas vidas interrompidas como consequência da perseguição de filhos, irmãos ou  maridos.

Haurindo as lições dos filmes citados, ambos baseados em fatos reais, merece destaque, sobretudo, o papel que as mulheres desempenham também na luta por  reparação.

Não há transição sem mulheres para repensar e reconstruir a democracia social no direito e na política. Neste sentido, uma possibilidade seria o método interpretativo proposto pela professora Katharine Bartlett, “the woman question”, para verificar e expor o impacto das normas jurídicas sobre as mulheres, que busca identificar as implicações de gênero nas normas e práticas jurídicas que podem parecer neutras ou objetivas. Para ela, esta possibilidade pode trazer alternativas interpretativas que promovem uma alocação mais justa e equânime dos resultados sociais.

“The woman question” busca verificar os impactos das normas sobre as mulheres, explorando a desproporcionalidade que medidas políticas e jurídicas possuem na vida das mulheres. Também pode ser um método adequado para se pensar nas medidas reparatórias que previnam violências contra mulheres nos espaços públicos ou em decorrência de suas posições políticas. A partir do olhar de gênero, a justiça de transição pode e deve ganhar novos contornos.

A violência do passado da ditadura não precisa de abrigos e esquecimentos institucionais na democracia. Conhecer (e não esquecer, para os que já as conhecem) essas violações pode ajudar a compreender e repudiar ataques como o de 8 de janeiro de 2023.

Neste marco dos 60 anos do golpe, é fundamental reconhecer o papel das mulheres na busca por verdade, justiça e reparação. Suas histórias de resistência e resiliência são um testemunho vivo das atrocidades do passado e uma inspiração para o futuro. Não podemos permitir que o silêncio oficial apague as cicatrizes deixadas pela ditadura.

É hora de honrar a memória das vítimas, promover a justiça de transição e garantir que os horrores do passado jamais se repitam. A voz das mulheres continua a ecoar, exigindo justiça, memória e verdade — e é um chamado que não pode ser ignorado.

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