Opinião

Direito e moral na 'minuta do golpe': a que direito devemos obediência?

Autor

  • Martin Magnus Petiz

    é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo (DFD-USP) bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador-membro do Grupo de Pesquisa CNPq Direito & Justiça.

26 de março de 2024, 7h02

Em 1964, um grupo de militares se autodeclarou capaz de invalidar a então vigente Constituição de 1946 por se considerar os verdadeiros representantes do “interesse e [d]a vontade da Nação”, nos termos do Ato Institucional nº 1. O movimento tido por eles como “revolução vitoriosa” corporificava “a força normativa inerente ao Poder Constituinte”, dizia o Preâmbulo do documento, forjado por juristas do período.

Agora, no dia 15 de março, O Globo publicou a íntegra de dois textos que previam a instauração de um regime de exceção no Brasil após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2022. [1]

O segundo texto é a minuta de um decreto de Estado de Defesa, com caráter estritamente técnico. O primeiro documento, no entanto, buscava “legalmente embasar” a decretação de um Estado de Sítio e da Garantia da Lei e da Ordem. [2]

Esse documento — a agora infame “minuta do golpe” — retoma muitas das estratégias argumentativas do AI-1 de 1964: há o uso de conceitos fundamentais de teoria política para a legitimação do direito, como “povo” e “Estado de Direito”; está presente a acusação de um complô contra a democracia, que exige resposta drástica dos seus supostos defensores; e, mais importante para os meus fins argumentativos, há a referência a um “direito supralegal”, fundado em uma “moralidade” que paira acima do direito.

O uso desse jargão jusfilosófico não é per se prova de que foi cometido um crime contra o Estado Democrático de Direito. Afinal, é sabido que o direito positivo pode realizar tamanhas injustiças a ponto de não deixar outra saída senão a desobediência civil.

Muitos poderiam pensar que o que está em jogo é a distinção entre golpe e revolução: a revolução seria moralmente justificada, enquanto o golpe, não. Os mais realistas diriam que tudo é uma questão de se verificar a efetiva composição de forças políticas em cada lado. Por que então justificar tal ato juridicamente? Seguindo essa linha de raciocínio, surge uma questão mais abstrata: como se define o direito moralmente justificado?

Divulgação

Considero relevante extrair desse momento de crise um aprendizado sobre certa instrumentalização inadequada da relação entre direito e moral pelos golpistas de 8 de janeiro de 2023 que se repete em nossa história constitucional, e sobre a qual pouco refletimos teoricamente. Embora teórica na forma, essa reflexão é carregada de consequências práticas altamente importantes.

Um dos maiores teóricos do direito do século 20, Herbert Lionel Adolphus (ou H.L.A.) Hart (1907-1992) pensava nesse tipo de instrumentalização da moral quando defendeu a tese de que o conceito de direito deveria ser separado da moral.

A “tese da separação” pode ser resumida em duas formulações equivalentes: “o simples fato de uma regra violar os padrões de moralidade não significa que ela não seja uma regra de direito” [3]; e não decorre da desejabilidade moral de uma lei que ela se torne direito. [4]

A tese é muito debatida na academia, mas poucas vezes há a oportunidade para se refletir sobre a sua importância prática como agora, quando há indícios fortes de que agentes do Estado visaram derrubar a ordem constitucional brasileira vigente de modo articulado.

Quero argumentar que Hart visava a evitar a fusão do direito com uma moral de certo tipo. Considero que a minuta fundamenta a legitimidade do direito em uma “concepção abrangente de bem”, na forma como John Rawls a definiu: concepções desse tipo visam a ditar as normas desejáveis para a organização da vida política com base em visões sectárias do mundo.

Os valores que essas concepções estimam costumam afetar a vida pessoal, indo além do escopo da política. Normalmente se baseiam em doutrinas religiosas às quais nem todos podem aderir. [5]

Certamente era dessas concepções que Hart queria separar o direito. Assumo com Rawls ser de concordância geral que vivemos em uma sociedade marcada pelo fato do pluralismo, em que só aceitamos ser governados por regras justificadas por razões que todos podemos aceitar como cidadãos livres e iguais.

É papel da teoria do direito evidenciar por que essa relação entre direito e moral é perniciosa para fins educativos e políticos. Ela tangencia uma questão mais profunda sobre o papel do direito em nossas vidas: por qual direito queremos ser governados? A qual direito devemos obediência, ainda que ele vá contra nossos desejos e preferências?

A minuta se inicia falando em liberdade e segurança jurídica como fundação da nossa ordem constitucional (cf. §1 da minuta). Em seguida, afirma-se que “a ideia de justiça” está para o “Direito do Estado” na forma de imperativo que vincula a todos, sejam cidadãos ou agentes públicos (§3). Com base nisso, se justifica, ao final, a decretação de (a) um Estado de Sítio e (b) a Garantia da Lei e da Ordem (§20).

O fato de que haja previsão constitucional para o uso de tais instrumentos não desfaz o assombro que a minuta causa a qualquer cidadão democrata. O Brasil é rico em exemplos de rupturas institucionais disfarçadas por instrumentos de defesa da legalidade.

Spacca

O caminho argumentativo da minuta passa por três pontos: afirma-se a existência de um “direito supralegal”, dado pela “moralidade institucional”.

O texto separa legalidade e legitimidade com base nisso. Esses conceitos representam a qualidade formal e substancial do direito, respectivamente. Há leis e decisões que são legais, por serem emitidas por autoridades competentes, mas que não são legítimas, pela “ausência de zelo à Moralidade Institucional no ato praticado (§3).

Apoia essa tese o argumento de que a Constituição de 1988 se fundamentaria diretamente nessa moralidade. Tal argumento seria confirmado por elementos textuais da Constituição, sobretudo o artigo 37. [6]

A minuta desconsidera que tal princípio foi incluído por emenda no texto constitucional para vincular a administração pública e considera que é do povo brasileiro que ela se deriva. Retoma-se que o povo é o poder constituinte originário, conforme o preâmbulo da Constituição. Por isso, a moralidade seria a base da legitimidade de todos os direitos, deveres e poderes constitucionalmente previstos (§4).

A conclusão que se segue é a de que há decisões que possuem apenas “aparência de legalidade”, mas que seriam ilegítimas ou inconstitucionais — o texto não diferencia os termos —, mesmo se emitidas por poderes dotados de competência constitucional. O objetivo político da minuta era claro: fundamentar que as decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, que prejudicaram a campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro à reeleição eram formas de ativismo judicial dotado de aparente legalidade, mas que, no fundo, por cotejo à moralidade, seriam desprovidas de legitimidade (§11). Com isso, estaria justificada a ruptura institucional.

Liberdade sem interferência do Estado

A concepção de moralidade dos defensores da minuta não se encontra no texto. Há apenas as genéricas referências à segurança jurídica e à liberdade como valores que estariam sendo violados pela ordem vigente.

Recentemente, Conrado Hübner Mendes e Thomas da Rosa Bustamante contribuíram para esboçar o sentido de moral na visão dos adeptos do bolsonarismo, qualificando-a como liberdade sem responsabilidade. Sob tal concepção, a liberdade é definida como o direito de se fazer o que se quiser sem interferências do Estado. Mas ela é um direito reconhecido apenas a uma classe de cidadãos-modelo, adeptos de certo credo religioso associado ao catolicismo. [7]

Tal moralidade retoma elementos ideológicos do ultramontanismo católico do final do século 19/começo do século 20 e ideias do positivismo ultraliberal de Herbert Spencer (1820-1903). Sob a primeira visão, a religião católica estaria acima do direito, fundando a sua legitimidade. Sob a segunda visão, pelo menos para os aderentes da correta fé, a liberdade individual seria irrestrita diante do Estado e de terceiros. [8]

Essa moralidade está claramente pairando fora e acima da Constituição. O primeiro parágrafo da minuta mostra isso ao afirmar que ela vem do ideal de ordem e progresso. Só pela pressuposição de que há uma autoridade superior ao direito é que se pode afirmar uma “supralegalidade” capaz de invalidar atos constitucionais.

Essa é a ideia de direito natural como concepção moral abrangente, legislada por uma autoridade sobrenatural — provavelmente Deus —, com a capacidade de invalidar todo o direito positivo que a ela se opuser. Essa não era a visão de Tomás de Aquino, nem de Aristóteles sobre a legitimidade do direito. [9] Contudo, o ultramontanismo por trás dessa leitura distorcida do jusnaturalismo para fins políticos — disseminada no Brasil entre os juristas por Hans Kelsen [10] — contribuiu para manter viva essa imagem falsa do direito natural. [11]

Dada como certa essa interpretação do conteúdo da minuta, é preciso expor a total falta de sustentação do seu conteúdo. Voltar à obra clássica de Hart pode nos ajudar a expor esse ponto.

Hart defendia a tese de separação entre direito e moral para fundamentar a obediência ao direito com base em duas razões práticas. De um lado, é preciso evitar a perspectiva do anarquista sobre o direito ao se definir a sua legitimidade.

O anarquista condiciona a obediência ao direito à coincidência do conteúdo das suas normas com a sua concepção moral. [12] Ora, se for permitido que cada um se guie pelos seus princípios morais dessa forma, a cooperação social será inviável.

A exigência de procedimentos imparciais para a tomada de decisões existe para evitar esse tipo de impasse. O movimento do 8 de Janeiro usou como meio para desobedecer ao sistema democrático fazer referência a preferências morais abrangentes que de fato levaram ao anarquismo na data fatídica.

Por outro lado, a separação evita a perspectiva do reacionário. Ele associa a obediência à realização dos seus valores. Uma vez que eles estejam realizados pelo direito, o reacionário irá se opor a toda mudança social, vendo na crítica às normas vigentes uma ameaça de desestabilização das bases da paz social. [13]

Esse era o fim do 8 de Janeiro: a efetivação de uma sociedade tendente ao totalitarismo, baseada em uma concepção moral unívoca que, uma vez positivada, não poderia ser criticada simplesmente porque não haveria linguagem disponível para a crítica das suas normas.

Há na posição de Hart uma prescrição metodológica ao teórico do direito: é preciso manter aberta a possibilidade de crítica ao direito vigente. Mas há também uma visão sobre como queremos ser governados em um Estado Democrático de Direito.

No mesmo contexto em que Hart escrevia, outro filósofo britânico definia o que significa “viver sob a legalidade” contra esse tipo de moralização do direito. Michael Oakeshott (1901-1990) escreveu que há comunidades que se formam em torno de “empreendimentos de fim comum”.

Nesses casos, há um fim substantivo comum compartilhado entre os seus membros, que define a sua organização. As regras e os deveres particulares da prática só fazem sentido por referência a esse fim comum. [14] Podemos pensar nas associações religiosas como um dos seus exemplos cabais.

Assim como Hart, Oakeshott considerava que devemos obediência ao direito de modo diverso. O direito estaria no grupo das práticas que servem de meio formal para que cada indivíduo persiga os seus próprios fins. Portanto, o direito não se submete a uma doutrina moral. A sua existência se dá em função da diversidade.

O bem garantido por ele é a vida civil. Não faz sentido que se eleja um fim substantivo comum a ser perseguido pelo direito: a prática oferece razões para agentes diferentes entre si lhe obedecerem. [15]

A minuta, no entanto, apela ao artigo 37, distorcendo o seu sentido para fins escusos. A referência ao “princípio” sugere que ele é abraçado pelo povo brasileiro em uníssono para legitimar a Constituição (§4).

A conclusão é que o direito supralegal dado por essa moralidade estaria sendo violado por uma “arbitrariedade supralegal” (§6) ao ir contra os interesses do ex-presidente Bolsonaro. Como mostrou Bernd Rüthers (1930-2023), teórico do direito alemão, raciocínio análogo foi empreendido pelo partido nacional-socialista para se conceber a legitimidade do direito nazifascista. Pois toda interpretação jurídica que fosse contra os interesses do Führer — o suposto intérprete-mor dos interesses da Nação — deveria ser considerada ilegítima por ir contra o povo alemão. [16]

Vínculo com golpe de 1964

Enquanto juristas, não podemos simplesmente nos acovardar diante da força bruta, ignorando o poder da linguagem à nossa disposição. Se a argumentação não fosse relevante, por que os militares golpistas ainda estariam se preocupando em emitir decretos, preâmbulos e minutas? O golpe de 1964 guarda esse vínculo com a tentativa fracassada do “8 de Janeiro”: ambos os movimentos, ainda que articulados por generais dotados de tanques, tropas e armas, tiveram de recorrer à caneta e à palavra.

Se tivermos uma resposta à altura na ponta da língua sobre a correta relação entre os conceitos de direito, justiça e moralidade, com certeza ainda não teremos os meios suficientes para pararmos os tanques. Ainda assim, teremos algumas das condições necessárias para nos situarmos do lado certo da história desde o começo com mais do que a mera paixão e preferência políticas.

Teremos bons argumentos para nos resguardar diante do intuito dissimulador dos sofistas que usam da linguagem jurídica apenas para fingir que são porta-vozes da liberdade e da justiça por meio do direito. Ao mesmo tempo, manteremos íntegro o direito contra essa mancha autoritária que tantas vezes tingiu a história constitucional brasileira, garantindo o que Hart chamava de “salvaguarda contra a tirania” por meio da teoria do direito. [17]


[1] SANTOS, Fábio; CROQUER, Gabriel. PF apresentou dois textos do golpe para Freire Gomes; veja o que diz cada um. G1, 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/15/o-que-diz-cada-versao-da-minuta-do-golpe.ghtml, acesso 19 mar. 2024.

[2] Regulados nos arts. 137-139 e 142 da Constituição da República, respectivamente.

[3][I]t could not follow from the mere fact that a rule violated standards of morality that it was not a rule of law”, minha tradução. HART, H. L. A. Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 54.

[4] Idem.

[5] RAWLS, John. Political liberalism. Expanded edition. New York: Columbia University Press, 1993, p. 180.

[6] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência […].   (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

[7] BUSTAMANTE, Thomas; MENDES, Conrado Hübner. Freedom without responsibility: the promise of Bolsonaro’s COVID-19 denial. Jus Cogens, 2021, vol. 3, p. 181-207, p. 188-192.

[8] Para a oposição entre essas duas “fés”: ver LOPES, José Reinaldo de Lima. Naturalismo Jurídico no pensamento brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 178-179.

[9] Ver DUKE, George. Aristotle and law: the politics of nomos. Cambridge: Cambridge University Press, 2020, p. 20.

[10] Ver OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; LESSA, Bárbara Alencar Ferreira. Por que as objeções de Hans Kelsen ao jusnaturalismo não valem contra a teoria do Direito Natural de Tomás de Aquino? Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 47, n. 186, abr./jun. 2010, p. 117-128.

[11] LOPES, José Reinaldo de Lima. Curso de Filosofia do Direito: o Direito como Prática. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 57.

[12] HART, H. L. A. Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 54.

[13] Ver MACCORMICK, Neil. A moralistic case for a-moralistic law. Valparaiso University Law Review, vol. 20, no. 1, Fall 1985, pp. 1-42, p. 11-14.

[14] OAKESHOTT, Michael. On human conduct. Oxford: Oxford University Press, 1975, p. 114-117.

[15] Ibid., p. 118-128.

[16] RÜTHERS, Bernd. Derecho degenerado. Teoría jurídica y juristas de câmara em el Tercer Reich. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 56-62.

[17] HART, H. L. A. Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 50.

Autores

  • é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo (DFD-USP), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador-membro do Grupo de Pesquisa CNPq Direito & Justiça.

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