Opinião

Tribunal do Júri: prazo do artigo 422 do CPP é simultâneo ou sucessivo?

Autor

  • Natan Zabotto

    é advogado criminalista com atuação com ênfase no Tribunal do Júri especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-MG campus de Poços de Caldas professor de Direito Processual Penal e conselheiro da Jovem Advocacia da OAB-SP (biênio 2023-2024).

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17 de março de 2024, 11h16

É cediço que o artigo 422 do CPP inaugura a segunda fase do procedimento do Tribunal do Júri e diz com a preparação do processo para julgamento em plenário. O referido dispositivo legal porta a seguinte redação:

 “Art. 422. Ao receber os autos, o presidente do Tribunal do Júri determinará a intimação do órgão do Ministério Público ou do querelante, no caso de queixa, e do defensor, para, no prazo de 5 (cinco) dias, apresentarem rol de testemunhas que irão depor em plenário, até o máximo de 5 (cinco), oportunidade em que poderão juntar documentos e requerer diligência.” 

Malgrado seu texto dê a entender, em uma primeira leitura, que o prazo nele estabelecido é comum às partes, isto é, que acusação e defesa devem se manifestar simultaneamente no mesmo prazo de cinco dias, não fazendo referência expressa à possibilidade de concessão de prazo sucessivo, de forma que a defesa possa se pronunciar posteriormente ao órgão acusatório, não se pode esquecer que o processo penal de compleição democrática deve ser interpretado sob as luzes e os influxos da Constituição Federal.

Nesse tom é a importante contribuição doutrinária de Aury Lopes Júnior:

O processo penal deve ser lido à luz da Constituição e da CADH e não ao contrário. Os dispositivos do Código de Processo Penal é que devem ser objeto de uma releitura mais acorde aos postulados democráticos e garantistas na nossa atual Carta, sem que os direitos fundamentais nela insculpidos sejam interpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites autoritários do Código de Processo Penal de 1941” [1] (destaques não originais).

Guilherme de Souza Nucci pensa o assunto da mesma forma:

“Considerando-se que, no direito constitucional brasileiro, prevalece a meta de cumprir e fazer cumprir os postulados do Estado Democrático de Direito, necessita-se captar as principais características dos direitos e garantias humanas fundamentais, aplicando-se cada uma das que se ligam à matéria processual penal ao direito infraconstitucional, previsto no Código de Processo Penal, que, à luz da Constituição de 1988, deve necessariamente adaptar-se” [2] (destaques não originais).

Prerrogativa de falar por último e plenitude do contraditório no Júri

Pois bem.

Sabe-se que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, LV, estabelece que, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Vale dizer, ao estreito ato de acusar corresponde um amplo direito de defesa, que se expressa por meio do exercício do contraditório, consoante antigo escólio da saudosa professora Ada Pelegrini Grinover [3].

Spacca

Destarte, como emanação do direito de defesa, o contraditório se concretiza, no âmbito do processual penal, na oposição à pretensão acusatória, medida que, até por uma questão de lógica, somente pode ser efetivamente empreendida se a defesa falar por último.

Pertinente, no ponto, a precisa lição de Luciano Feldens:

“Expressão nuclear do direito de defesa, o contraditório se materializa, no processo penal, na reação, na contrariedade à ação persecutória do Estado, correspondendo, também, ao modo de exercício da defesa, que tem, em geral, a prerrogativa de falar por último. A defesa deve falar sempre (ampla defesa). E, por princípio, sempre depois da acusação, pois assim ― e apenas assim ― estará a contraditá-la[4] (Destaques não originais).

E mais: no rito bifásico do Júri a amplitude do direito de defesa ganha maior relevo, transformando-se em plenitude de defesa (CF, artigo 5º, XXXVIII, “a”), de sorte que, em tal hipótese, o contraditório dela emanado deve ser consentâneo com a sua magnitude e, portanto, ainda mais pleno e efetivo.

Aliás, sobre a efetividade e plenitude do contraditório, ensina o professor Antônio Scarance:

“[…] no processo penal é necessário que a informação e a possibilidade de reação permitam um contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhe os meios para que tenha condições reais de contrariá-los[5] (destaques não originais).

Ora, somente é possível que a defesa tenha meios e condições reais — no sentido material do termo — de reagir à acusação, se ela for assegurada a prerrogativa de falar por último.

Assim, à luz da filtragem constitucional que deve ser feita no que concerne ao teor do artigo 422 do CPP, o prazo nele previsto somente pode ser interpretado como sendo sucessivo.

A acusação, destarte, deve ser instada a manifestar-se primeiro, após o que, ciente da proposta probatória por ela apresentada, aí sim deverá ser aberta vista à defesa para executar idêntica providência, ocasião em que terá a oportunidade de se contrapor à carga acusatória delineada pelo órgão ministerial (e/ou pela acusação privada, se o caso).

Posição da doutrina e entendimento dos tribunais superiores

123RF

Em arremate, um último argumento cristaliza a tese ora sustentada: é sabido que a doutrina prevalente — cite-se, por todas, a de Renato Brasileiro de Lima [6] —, em exercício de interpretação sistemática do CPP, admite o pronunciamento do assistente de acusação na fase do artigo 422, muito embora não haja expressa previsão legal nesse sentido.

É dizer: se é possível a interpretação do dispositivo em referência para alargar a esfera de incidência da acusação, com muito mais razão deve ser ele interpretado de maneira a realizar o texto constitucional no que tange às franquias da plenitude de defesa e do contraditório.

Não obstante, causa preocupação a decisão exarada pela 5ª Turma do STJ, no julgamento do AgRg no Habeas Corpus nº 747.251/RS, cuja relatoria incumbiu ao ministro Reynaldo Soares da Fonseca (DJe de 8/8/2022), oportunidade em que se deliberou que

“[…] a concessão de prazo sucessivo de 5 dias do art. 422 do Código de Processo Penal, que não encontra previsão legal, é medida discricionária, em virtude do princípio do Livre Convencimento do Juiz, que é o destinatário das provas, sendo necessário que a defesa demonstre o efetivo prejuízo causado, ao ter sido indeferido seu pedido de prazo sucessivo […]” (realces não originais).

Pior: a aludida decisão foi confirmada pelo STF, no HC 218.539, em decisão monocrática da lavra do ministro Alexandre de Moraes.

Com todo o respeito, ao invocar a discricionariedade do juiz e o infraconstitucional princípio do livre convencimento motivado ― em detrimento das garantias constitucionais da plenitude de defesa e do contraditório ― para rechaçar a possibilidade de concessão de prazo sucessivo, as citadas decisões invertem a lógica do processo penal constitucional segundo a qual o CPP deve ser lido conforme a Constituição, e não o contrário.

Seja como for, depreende-se das mencionadas decisões que, a par do critério discricionário conferido ao juiz, o juízo de viabilidade do reconhecimento do prazo sucessivo foi condicionado à demonstração do efetivo prejuízo ao acusado em caso de indeferimento do pedido.

Deixando para uma próxima oportunidade a discussão atinente ao questionável conteúdo do art. 563 do CPP, e diante do cenário de insegurança jurisprudencial em torno do assunto ora tratado, em termos práticos, a nós defensores criminais fica o alerta para que, sempre que necessário levar a efeito, em casos concretos, pedido de concessão de prazo sucessivo na fase do artigo 422, que, por cautela, o prejuízo suportado pelo defendente seja sempre muito bem desenhado pela defesa.

 


[1] LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 33-34.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza de. Curso de Direito Processual Penal. 17 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 85.

[3] GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas Tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 4.

[4] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: A Tutela Jurídica da Liberdade na Perspectiva da Defesa Penal Efetiva. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 111.

[5] FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional, 5. ed., p. 74.

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: Volume Único. 7 ed. ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 1421.

Autores

  • é advogado criminalista, com ênfase no Tribunal do Júri, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-MG, campus de Poços de Caldas, professor de Direito Processual Penal e conselheiro da Jovem Advocacia da OAB-SP (biênio 2023/2024).

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