Opinião

Individualização da pena e exame criminológico: análise da Lei 14.843/24

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20 de maio de 2024, 18h34

O princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, CF) desenvolve-se em três prismas: individualização legislativa (quando um tipo penal incriminador é criado, cabe ao Legislativo estabelecer a pena em abstrato — mínimo e máximo), individualização judicial (cabe ao juiz fixar a pena concreta na decisão condenatória) e individualização executória (o cumprimento da pena se faz de maneira individual, conforme o merecimento do sentenciado). Sobre este aspecto, cumpre analisar os reflexos gerados pela Lei 14.843/2024.

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Inicialmente, é preciso registrar que o advento da Lei 10.792/2003 modificou dispositivos da Lei de Execução Penal e retirou o parecer da Comissão Técnica de Classificação (composta pelo diretor do presídio, dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social), bem como o exame criminológico, para fins de progressão de regime, apontando, como fonte de informação para o juiz, o atestado de conduta carcerária, emitido pelo diretor do estabelecimento onde estiver o sentenciado.

Manteve essas avaliações apenas por ocasião do ingresso no presídio, com vistas à individualização executória da pena (artigos 6º e 8º, LEP). Portanto, o legislador reconhece a importância das referidas avaliações, embora as tenha suprimido para a progressão.

Desde a edição da mencionada lei, em 2003, manifestei-me, em artigos e nas minhas obras, contrário a essa eliminação, levantando, ainda, a questão da inconstitucionalidade da medida, que poderia influenciar diretamente na formação do livre convencimento do magistrado para deferir ou indeferir a progressão, dificultando a análise do merecimento do sentenciado, afinal, o parecer e o exame sempre foram substratos para a avaliação judicial.

Pretendeu-se simplesmente economizar, evitando-se gastos com o aparelhamento das Comissões Técnicas de Classificação, cuja relevante função encontrava-se prejudicada pelo excesso de serviço e reduzido número de integrantes. Por certo, alguns operadores do direito expressam a sua contrariedade tanto ao parecer quanto ao exame criminológico porque entendem inúteis para a avaliação do sentenciado. Entretanto, parece-nos uma visão equivocada.

CTC e exame criminológico

Em primeiro plano, vale ressaltar a diferença entre o parecer da CTC e o exame criminológico. O primeiro é composto pelos profissionais supra apontados (diretor, chefes, psiquiatra, psicólogo e assistente social) e o criminológico se forma, basicamente, pelos entendimentos do psiquiatra e do psicólogo.

O parecer envolve um diagnóstico (análise do preso até então no seu cotidiano no estabelecimento carcerário) e um prognóstico (em face do que apresenta, como deve comportar-se caso transferido para regime mais brando ou a um estágio de liberdade condicional), enquanto o criminológico fundar-se-ia somente neste último aspecto (prognóstico comportamental). Diante da coincidência de profissionais envolvidos, a prática forense terminou por aceitar apenas o parecer da CTC como base para a progressão, porque dentro dele já estaria incluído o criminológico.

Não apenas como estudioso do tema, mas em decorrência de minha atividade na magistratura, em primeira e segunda instâncias, tive a oportunidade de verificar o conteúdo de diversos pareceres da Comissão Técnica de Classificação, alguns dos quais espelhavam excelente avaliação da vida prisional do reeducando, expondo detalhes que somente um exame apurado poderia construir. Jamais um mero atestado certificando, secamente, boa conduta carcerária seria capaz de suprir. Uma das críticas sofridas pelos pareceres era a sua padronização, apresentando elementos genéricos que poderiam ser aplicados a qualquer sentenciado.

Cuida-se de algo verdadeiro: alguns pareceres eram sofríveis e notava-se a sua inutilidade para o caso concreto. No entanto, se alguns eram excelentes e outros, péssimos, o ponto fulcral estava concentrado em quem os elaborava e não nos pareceres em si. O ideal seria aprimorar as composições de Comissões Técnicas de Classificação e não simplesmente eliminar o “problema” do laudo padronizado, acabando com esse parecer.

Os tribunais foram sensíveis à preocupação de afastar, por completo, o parecer, para a análise da progressão, porque nele inseria-se o importante exame criminológico, razão pela qual o STF e o STJ consideraram inviável suprimi-lo totalmente e passaram a permitir que o juiz o exigisse para avaliar a progressão em casos específicos (Súmula Vinculante 26 do STF; Súmula 439 do STJ).

Aliás, parece-me importante ressaltar que o operador do direito deve respeitar os profissionais, cuja formação técnica permite avaliar pessoas, atestando o seu comportamento e demonstrando, com prognósticos, quais as chances de haver sucesso ou insucesso em relação à vivência em outro regime. Em suma, exames bem realizados são importantes ferramentas para o juiz da execução penal no processo de individualização.

Entretanto, assim como a eliminação do parecer da CTC e do exame criminológico constituiu uma lesão ao princípio da individualização da pena, o advento da Lei 14.843/2024 ressuscitou o radicalismo inverso, passando a exigir sempre a realização do criminológico (artigo 112, § 1º, LEP), em tese, mesmo que o juiz o considere, em certos casos concretos, desnecessário.

Há de se criticar medidas inflexíveis, pois é imperioso elaborar uma análise do atual estado do sistema carcerário brasileiro, de modo que existem ponderações muito relevantes a fazer desde 2003 (quando eliminado o exame criminológico para a progressão) até 2024 (quando ele retorna para todas as execuções).

Não é momento para isso, pois nessas duas décadas o caos instalou-se cada vez mais no âmbito dos estabelecimentos prisionais. O regime fechado encontra-se superlotado; o semiaberto possui inúmeras colônias penais desprovidas de trabalho e estudo (ou carecedor de vagas); o aberto desapareceu e os sentenciados são enviados para seus domicílios.

É fundamental buscar o equilíbrio na situação para não prejudicar em demasia os reducandos, mas, também, não ignorar os anseios da sociedade em torno da segurança de não ser obrigada a conviver com quem está preso, condenado por delitos violentos contra a pessoa, em particular, não possuindo a menor condição de ser posto em liberdade antes da hora.

Estado de coisas inconstitucional

Vive-se, na atualidade, o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, com a violação de direitos fundamentais dos detentos, situação reconhecida, expressamente, pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347-DF, Pleno, rel. Roberto Barroso, 04.10.2023). Busca-se soluções e a cooperação de diversas autoridades, instituições e da comunidade em geral para tanto. Em jogo, estão princípios relevantes, como a individualização executória da pena, a proporcionalidade das punições, a duração razoável do processo de execução e, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.

As medidas extremadas comprometem o mais vital fator da progressão de regime: o livre convencimento do Judiciário. Não se pode interferir radicalmente na individualização da pena, nem eliminando por completo o exame criminológico, nem o impondo ao juiz em todos os casos. Afinal, há de se ressaltar que o magistrado não está atrelado ao conteúdo do laudo, podendo simplesmente rejeitá-lo, desde que o faça de maneira fundamentada, assim como pode determinar a sua confecção para auxiliar a sua decisão.

Em primeira e superficial análise, poder-se-ia até mesmo sustentar que a realização obrigatória, para todos os casos, do exame criminológico confere apoio à individualização da pena, como auxílio ao magistrado, logo, não é norma inconstitucional. Formalmente, sim, a conclusão seria válida. Mas, materialmente, conhecido exatamente o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário, associado — e isso não tem sido levado em conta pelo Legislativo — ao acúmulo exorbitante de processos de execução em mãos de poucos magistrados, cuida-se de norma inconstitucional.

A importância do criminológico para casos de crimes violentos contra a pessoa é reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, bastando-se consultar a Resolução de 28 de novembro de 2018, que deliberou sobre a situação do Complexo Prisional do Curado (Pernambuco), para se considerar em dobro o tempo de pena cumprido nesse local, em face de condições degradantes existentes. Nessa decisão a Corte impôs o seguinte:

“7. O Estado deverá organizar, no prazo de quatro meses a partir da presente decisão, uma equipe criminológica de profissionais, em especial psicólogos e assistentes sociais, sem prejuízo de outros, que, em pareceres assinados pelo menos por três deles, avalie o prognóstico de conduta, com base em indicadores de agressividade dos presos alojados no Complexo de Curado, acusados de crimes contra a vida e a integridade física, ou de crimes sexuais, ou por eles condenados. Segundo o resultado alcançado em cada caso, a equipe criminológica, ou pelo menos três de seus profissionais, conforme o prognóstico de conduta a que tenha chegado, aconselhará a conveniência ou inconveniência do cômputo em dobro do tempo de privação de liberdade ou, então, sua redução em menor medida. 8. O Estado deverá dotar a equipe criminológica do número de profissionais e da infraestrutura necessária para que seu trabalho possa ser realizado no prazo de oito meses a partir de seu início” (grifo nosso).

Por conta disso, o ministro Edson Fachin deferiu liminar em habeas corpus para determinar que, em 30 dias, o paciente fosse avaliado por equipe criminológica para o preenchimento dos requisitos da resolução, avaliando-se se o cômputo em dobro da pena lhe é aplicável (Med. Cautelar no HC 208.337-PE, 30/6/2022).

Ocorre que, a imposição do exame criminológico pode gerar um bloqueio automático das progressões de regime porque não há elemento humano suficiente para elaborá-los, dentro de padrões aceitáveis de razoabilidade, provocando um agravamento no já reconhecido estado de coisas inconstitucional. Assim sendo, a sua exigência em 100% dos casos é materialmente inconstitucional.

Sobre a aplicabilidade da norma, que modificou a redação do artigo 112, cuida-se de aspecto ínsito à apuração do critério de merecimento para a progressão, incluindo um requisito de natureza obrigatória para compor o quadro de fatores a ser avaliado livremente pelo juiz. Todavia, quanto à progressão, o Código Penal estabelece haver o sistema progressivo, conforme o mérito do condenado (artigo 33, § 2º). Se nada dispõe expressamente, remete-se o quadro de requisitos objetivos e subjetivos à Lei de Execução Penal, encontrando-se tais elementos no artigo 112, incisos I a VIII (parte objetiva) e § 1º (parte subjetiva).

Direito de execução penal

Tenho sustentado a autonomia do direito de execução penal, como ramo desprendido de penal e processo penal, com legislação própria, embora seja ligado a essas disciplinas, delas auferindo os princípios constitucionais apropriados. Por isso, a inserção do exame criminológico, como um dado a mais para auxiliar o juiz a decidir, sob o prisma da legalidade e da anterioridade (não há pena sem lei anterior que a comine), bem como da irretroatividade da lei penal prejudicial ao réu (art. 5º, XXXIX e XL, CF), somente pode ser exigido, em caráter obrigatório, aos sentenciados cujo delito for cometido após a entrada em vigor da Lei 14.843/2024.

É fundamental lembrar que o regime de cumprimento é parte integrante da pena, tanto que assim prevê o Código Penal, ou seja, além da espécie de pena e do seu quantum, deve o julgador estabelecer o “regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade” (art. 59, III). Associado a esse dispositivo, encontra-se o artigo 33, § 3º:

“A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código.”

Aliás, a bem da verdade, atualmente, torna-se mais relevante ao acusado saber qual é o regime inicial do cumprimento da pena do que propriamente o montante desta. Do mesmo modo, é deveras importante o modo de cumprimento, que se dá por mecanismo progressivo, motivo pelo qual a alteração de qualquer critério que obste a passagem de um regime mais severo ao mais brando constitui norma penal de índole prejudicial, só podendo ser aplicada a quem cometer o delito em data posterior à vigência da lei mais rigorosa.

É possível argumentar que o juiz não está atrelado ao conteúdo do exame criminológico, podendo não concordar com a sua conclusão — sugerindo a progressão ou seu indeferimento, mas o ponto principal não é este, como expus no tocante à inconstitucionalidade material da norma. Concentra-se a matéria na obrigatoriedade de realização desse exame, antes que o juiz possa proferir a decisão, o que representa um nítido entrave para todos os sentenciados na realidade do sistema prisional brasileiro. Este é um tópico crucial no andamento do pedido de progressão, visivelmente prejudicial, porque, anteriormente à Lei 14.843/2024, a realização prévia do exame criminológico dependia do caso concreto e era uma faculdade do juiz.

Sob outro aspecto, a novel alteração do artigo 112, § 1º, da Lei de Execução Penal tem como destino certo a progressão de regime, mas não outros benefícios, como o livramento condicional, o indulto e a comutação de penas. Afinal, estes últimos estão previstos no § 2º do artigo 112, que determina seja seguido o procedimento para a progressão de regime ali previsto, vale dizer, a decisão do magistrado deve ser fundamentada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor do sentenciado.

Nada consta a respeito da formação do requisito subjetivo para tais concessões, devendo o juiz valer-se dos mesmos instrumentos utilizados até o presente. Os elementos para avaliação judicial, quanto ao livramento condicional, encontram-se no artigo 83, I a V, do Código Penal. Apenas para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, há espaço para a realização de exame criminológico, pois o parágrafo único do mencionado artigo estipula que se deve constatar “condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir”. Este é o propósito do exame em questão.

Quanto ao indulto e à comutação, dependerá do que for previsto, expressamente, no decreto de concessão.

Em conclusão, parece-me haver inconstitucionalidade material, na precisa medida em que lesiona, concretamente, a individualização executória da pena, ao obrigar que o magistrado se sirva desse meio para formar a sua convicção (ressalte-se a incongruência: se ele pode ignorar o conteúdo do exame, não estaria atrelado à sua realização); a proporcionalidade da punição, visto que, na prática, os exames levarão tempo excessivo para se consumar, o que estenderá o requisito objetivo (tempo para a progressão em regime mais severo) de maneira desproporcional; a duração razoável do processo (nenhum processo criminal — de conhecimento ou de execução — pode durar por tempo desprendido da razoabilidade), pois é fato notório a carência de material humano para realizar o exame nas varas por todo o país; finalmente, o mais essencial, que é a dignidade da pessoa humana, lançado que está o preso em ambiente degradado, no estado de coisas inconstitucional, reconhecido pelo STF, não podendo dele desvincular-se, assim que preenchido o requisito objetivo, sem ter praticado crime violento contra a pessoa, com o requisito subjetivo reconhecido pelo magistrado em seu livre convencimento (atestado de boa conduta carcerária, sem falta grave cometida).

A par disso, caso seja considerada constitucional, exigindo-se sempre a prévia realização do exame criminológico, deve a norma ser aplicada a todos os sentenciados que tenham cometido o crime após a entrada em vigor da Lei 14.843/2024. Isso não afasta, ao contrário, confirma, a viabilidade de se determinar a realização do exame em questão para os casos específicos e graves, em andamento, que permitam ao magistrado decidir, com convicção, acerca da progressão e do livramento condicional.

Autores

  • é livre-docente em Direito Penal (PUC-SP), doutor e mestre em Processo Penal (PUC-SP), professor associado da PUC-SP e desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo).

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