Repensando as Drogas

CCJ do Senado aprova a PEC da 'ortopedia moral'

Autor

  • Antônio de Padova Marchi Júnior

    é procurador de Justiça do MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais). Mestre e doutor em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor da Faculdade de Direito do Ibmec-BH. Membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

15 de março de 2024, 11h21

A doutrina penal desde sempre questionou a validade constitucional do tipo que proíbe o porte de drogas sem autorização para consumo próprio dada a sua franca agressão ao princípio da lesividade. [1]

Apesar disso, ele permanece vigente a partir de construções estranhas como a que considera a saúde pública como o seu objeto jurídico e apenas o porte — e não o consumo pessoal — como a conduta proibida, pois o que a lei visa é o “perigo para a saúde da coletividade” representado pela “circulação da droga”. [2]

Esses esforços dogmáticos empregados para criar e manter a falsa aparência de normalidade constitucional da criminalização do porte de drogas não conseguem esconder o verdadeiro objetivo de controle, perseguição e estigmatização da população periférica, conforme bem exposto através das diferentes abordagens realizadas em ensaios anteriores desta coluna.

Quando o STF, finalmente, decidiu enfrentar o tema e parecia caminhar no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, o julgamento foi frustrado por seguidos pedidos de vista até culminar com a reação inusitada por meio da PEC 45/2023, apresentada em setembro pelo senador Rodrigo Pacheco, presidente da Casa, e aprovada nesta última quarta-feira (13/3), pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). [3]

O relatório apresentado pelo senador Efraim Filho certamente será confrontado a tempo e modo, especialmente por não apresentar dados ou pesquisas consistentes em relação às irritantes premissas empregadas graciosamente no texto.

Sessão da CCJ do Senado que aprovou a PEC das Drogas

Conforme entrevista concedida à Carta Capital pelo professor de Psiquiatria da Unicamp e pesquisador especializado em política de drogas e psicodélicos, Luiz Fernando Tófoli, não há nenhum fundamento científico capaz de sustentar o “aumento significativo do número de adolescentes usuários nos países que legalizaram o uso de drogas”, como consta do relatório apresentado à CCJ.

A maioria das pesquisas sobre “o impacto da legalização da maconha — a única droga ilícita que foi legalizada até agora — em países ou estados que adotaram essa medida indicam que o uso entre adolescentes permaneceu estável ou até diminuiu após a legalização”, explica o professor [4].

Além de insistir propositadamente na confusão entre “legalização” e “descriminalização”, cujos conceitos já foram largamente debatidos, o relatório condutor da votação ainda sugeriu “impactos significativos sobre o número de usuários de drogas nos países onde foram implementadas”, algo igualmente jamais comprovado cientificamente, seja em relação a uma ou a outra medida.

Ortopedia moral

A reação do Senado contra o STF vai muito além da discussão acerca da descriminalização do porte de maconha para consumo próprio, enveredando mesmo por um caminho muito mais perigoso para a democracia. O que se pretende com a PEC 45/2023 é a “ortopedia moral dos indivíduos”, alcançável, segundo o pensamento foucaultiano, por meio de três dispositivos: disciplinar, de segurança e controle das mentes.

No artigo intitulado “Foucault e a governamentalidade biopolítica”, a pesquisadora Márcia Junges e o filósofo César Candiotto descortinam tais mecanismos de poder na atualidade:

O primeiro deles, amplamente investigado em Vigiar e punir, é o dispositivo disciplinar, hoje observável em instituições semiabertas como “escolas, empresas, hospitais, manicômios e prisões”.

Por se dirigirem à superfície corporal, esses dispositivos “proporcionam uma ortopedia moral e a constituição de um indivíduo normalizado segundo os imperativos morais e até mesmo mercadológicos”.

O segundo dispositivo é o da segurança, “que promete atuar na preservação e cuidado da vida de uma população biologicamente determinada exigindo, em troca, a restrição de suas liberdades, a obediência a suas normativas, o pagamento adequado de seus impostos”. Por último, o dispositivo disciplinar se encarrega de controlar as mentes, suas aspirações e desejos, criando-os e moldando-os. [5]

Os autores percebem o declínio do trabalho material e a ascendência do trabalho imaterial, com a ampliação das organizações transnacionais, como a Google, o Uber, o Ifood e outras empresas de matiz virtual, favorecendo a crescente influência midiática da propaganda e da publicidade, conectando cada vez mais as mentes entre si.

Daí concluem “ser fundamental a criação de sonhos e desejos, dominar e controlar a arte do possível, delimitar as situações nas quais pensamos atuar livremente e assim por diante”.

Salientam ainda que, embora esses três dispositivos de poder atuem conjuntamente, nas sociedades pós-industriais e de serviços, “marcadas pela decisiva influência da realidade virtual engendrada pela automação dos processos industriais e dos imperativos midiáticos sobre a política e as ideologias”, predominam os dispositivos de controle das mentes.

ConJur

Diante do quadro acima apresentado, é fundamental insistir que, apesar da sua profunda discricionariedade, o legislador não pode sair tipificando comportamentos considerados indesejáveis ou porque somente não gosta deles, pois, ainda que atente contra a moral — seja ela qual for —, só merece a tutela penal a conduta que efetivamente provoque lesão ou perigo de lesão a determinado bem jurídico.

Claus Roxin observa que “a penalização de um comportamento necessita, em todo caso, de uma legitimação diferente da simples discricionariedade do legislador”. [6]

O autor ainda menciona que a situação vivenciada na Alemanha pós-guerra reforçou a crítica contra as tipificações baseadas unicamente no sentimento moral, sendo fortemente combatida através da reforma alternativa. Em outras palavras: fortaleceu a ideia principal de que o direito penal estaria encarregado da exclusiva proteção de bens jurídicos concretos, e não convicções políticas ou morais, doutrinas religiosas, concepções ideológicas do mundo ou meros sentimentos. [7]

A PEC da ortopedia moral reforça a constatação de que o Brasil ainda está distante de se livrar dos tipos penais meramente simbólicos, editados para combater condutas que não ultrapassam a esfera do autor, bastando para a incriminação que, de algum modo, venha ferir os feitios bíblicos de costumes de um Congresso cada vez mais conservador.

A capilaridade desse movimento retrógrado, impulsionado pelo proveito da fé e pela dominação das mentes através dos algoritmos empregados nas interlocuções via redes sociais, repercute tão significativamente no eleitorado que impõe enorme cautela aos políticos que porventura ousem deles discordar, além de pressionar os tribunais nas decisões relacionadas aos temas sociais.

Desse modo, os partidos de oposição enxergaram na PEC 45/2023 a oportunidade de dar continuidade à estratégia de desgaste institucional do STF, permanentemente mantida em suas bem municiadas redes sociais, pouco se importando com a perpetuação dos excessos e desvios da nefasta política de guerra às drogas, caracterizada, sobretudo, pelo racismo estrutural e pelos absurdos índices de letalidade policial em desfavor do jovem negro.

O aparelhamento da Corte Constitucional é um dos principais sintomas de uma recessão democrática, sendo facilmente constatado pela experiência de países totalitários, sejam de direita, centro ou esquerda.[8]

No Brasil, até o último governo, nenhum presidente procurou intervir no Poder Judiciário, resguardando as nomeações de ministros das cortes superiores de qualquer interesse político, ideológico ou religioso. Foi assim nos governos do PSDB, do PT e do PMDB, mesmo quando aglutinavam também a maioria do Congresso.

Verdade seja dita: somente no período de 2018 a 2022 se experimentou seguidos episódios de enfrentamento entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, desde o “basta um soldado e um cabo” [9], passando pela proposta de aumento considerável do número de integrantes na Corte [10] até as vazias e constantes alegações de fraude nas eleições, tanto naquelas em que o grupo se saiu vitorioso como na seguinte em que foi derrotado.

Com a posse do novo governo e o retorno da normalidade nas relações democráticas entre os poderes, o lançamento da PEC 45/2023 se apresentou como oportunidade natural para se perpetuar tanto o agito nas redes como os ataques ao STF.

O movimento indica a permanência da pretendida dominação do Poder Judiciário em caso de eventual vitória daquele grupo nas próximas eleições presidenciais, com o consequente esboroamento da democracia. [11]

Mais do que nunca, é preciso reunir forças para lutar por um STF independente e legítimo, como última trincheira da democracia brasileira.

 

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[1] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 92-3.

[2] CAPEZ, Fernando. A nova Lei de tóxicos, modificações legais relativas à figura do usuário. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal nº 14, 2008, p. 755.

[3] Disponível em < https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/03/13/ccj-aprova-pec-das-drogas-que-vai-a-plenario#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20e,(PEC%2045%2F2023).>. Acesso em 14.3.2024.

[4] Disponível em < https://www.cartacapital.com.br/politica/os-problemas-e-fragilidades-do-relatorio-favoravel-a-pec-das-drogas/amp/>. Acesso em 14.3.2024.

[5] Disponível em <https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3127-cesar-candiotto-1>. Acesso em 14.3.2024.

[6] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2.ª ed., 2018, p. 11.

[7] ROXIN, Claus. Op. cit., p. 12.

[8] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/intervencao-no-judiciario-e-acao-tipica-de-autoritarios-veja-exemplos-pelo-mundo.shtml>. Acesso em 13.3.2024. Sobre o tema, vale conferir a respeito da realidade mexicana disponível em < https://elpais.com/mexico/2023-07-01/los-choques-entre-lopez-obrador-y-la-suprema-corte-atascan-la-politica-mexicana.html>. Acesso em 13.3.2024.

[9] Disponível em < https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/eduardo-bolsonaro-diz-que-basta-um-soldado-e-um-cabo-para-fechar-stf>. Acesso em 13.4.2024.

[10] Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/10/10/aumentar-o-numero-de-ministros-e-sufocar-a-independencia-do-stf-diz-celso-de-mello.ghtml>. Acesso em 13.4.2024.

[11] Sobre o tema, vale conferir o artigo disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-out-17/rodrigues-jr-araujo-papel-stf-fragil-democracia-brasileira/>. Acesso em 13.4.2024.

Autores

  • é procurador de Justiça do MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais). Mestre e doutor em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor da Faculdade de Direito do Ibmec-BH. Membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

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