Opinião

O papel do Supremo Tribunal Federal na frágil democracia brasileira

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

17 de outubro de 2023, 18h24

"E o fascismo é fascinante
Deixa a gente ignorante e fascinada
E é tão fácil ir adiante e se esquecer
Que a coisa toda tá errada
Eu presto atenção no que eles dizem
Mas eles não dizem nada"
Engenheiros do Hawaii — Toda forma de poder

Conforme mencionado nesta ConJur recentemente, a chamada, não sem razão, da PEC da "reação" [1], ou PEC do "equilíbrio entre os poderes" (nº 55/2023), procura, a princípio, conferir ao Congresso competência para sustar decisões do Supremo Tribunal Federal que tenham transitado em julgado e que extrapolem os limites constitucionais. Para isso, a proposta de emenda constitucional prevê a necessidade de apresentação de proposta de Decreto Legislativo por 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado, bem como deliberação por 3/5 de cada Casa Legislativa.

O professor Georges Abboud, em recente entrevista à CNN, argumentou que o problema desta e de outras PECs que atualmente vêm sendo discutidas não seriam a limitação ou regulação da Corte Constitucional per se. A discussão sobre limitações aos Poderes, dentro do limite permitido pela Constituição Federal, é salutar em uma democracia constitucional. O problema é o timing. O porquê. Ou melhor, o recado político que estas movimentações buscam transmitir.

Trata-se, inicialmente, do já estudado e amplamente debatido tema do efeito backlash, expressão que traduz espécie de efeito colateral das decisões judiciais em questões polêmicas, implicando reversão legislativa de um julgamento da corte. O efeito pode consistir, ainda, em reação majoritária contra uma decisão contramajoritária, dada a constatação de que, não raras vezes, o Judiciário, para tutela dos direitos das minorias, acaba contrariando o interesse da maioria [2].

Com este avanço legislativo, não obstante, estaríamos já adentrando na problemática do Court‐Curbing, temática esta já tratada por nós e pelo professor Abboud anteriormente [3], ou seja, tentativas pelo Legislativo de limitar o poder judicial, através de uma posição mais hostil, buscando diminuir aos poucos o poder desta instituição, até minar por completo sua independência.

Como sabe-se, a base de um Estado democrático de Direito está pautada na clássica noção teórica de tripartição de poderes, fundada em uma ordem constitucional social e política que representa o critério fundamental de atuação e importância de todos os poderes constituídos, em que poder deveria limitar poder, nos moldes proposto por Montesquieu e John Locke, bem como freios e contrapesos (check and balances), proposto também por Alexis de Tocqueville e pelos clássicos Federalistas John Adams e Thomas Jefferson.

Tocqueville [4] aduzira, séculos atrás, que o maior objetivo da justiça é substituir a ideia de violência pela ideia de direito, sendo esta a função histórico-civilizatória desenvolvida pelo próprio direito e, em especial, pelo constitucionalismo, servindo a Constituição como um documento que busca limitar e racionalizar o poder, gerando consequentemente o "processo civilizador", típico dos Estados Modernos.

Neste sentido, caberia ao poder judiciário nas democracias constitucionais contemporâneas exercer o poder contramajoritário, à luz dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Caberia também ao poder judiciário aplicar corretamente os meios constitucionais de estabilização democrática, garantindo não apenas a manutenção do mínimo civilizatório através da proteção de direitos e garantias fundamentais, mas também, em última análise, a própria existência da democracia.

A democracia brasileira, por sua vez, não é uma democracia consolidada. Samuel Issacharoff [5] usa o conceito "democracia frágil" para se referir à nossa democracia. Desta forma, ao estudar as principais democracias emergentes (entre elas, a brasileira), concluiu Issacharoff que democracias frágeis seriam caracterizadas por: a) vir após um regime de exceção; b) apresentar o que o autor chama de "três c's", quais sejam: clientelismo, corrupção e coleguismo; c) partidos e instituições tradicionalmente fracas.

Em síntese, chegou-se a conclusões bem similares a democracia delegativa de O'Donnell [6]. Assim, Issacharoff advoga a tese da essencial importância do poder judiciário neste tipo de democracia, uma vez que este seria, na perspectiva de um Estado Constitucional, o principal garantidor das regras do jogo democrático, e de direitos e garantias fundamentais.

As regras do jogo democrático, por sua vez, necessitam do respeito aos direitos e garantias fundamentais para existir. A democracia constitucional, portanto, não se confunde com a mera "contagem de cabeças". O poder contramajoritário, exercido pelo poder judiciário, evita a chamada ditadura da maioria, utilizando os direitos fundamentais como "trunfos contra a maioria".

Neste sentido, uma das principais características de uma democracia forte e consolidada seria o respeito às regras do jogo, especialmente no que se refere ao comprometimento e aceitação sobre a alternância de poder e respeito às liberdades institucionais, enquanto de uma democracia frágil seria a constante presença de uma ruptura democrática, por uma maioria que, em dado momento, conseguiu capturar a maioria parlamentar, contando com o apoio de parcela da população. A noção de uma democracia frágil passa necessariamente pela ideia ou pressuposto de que estas sociedades seriam incapazes, pelo menos em um primeiro momento, de organizar seu destino racionalmente. O espírito autoritário permanece ali, ainda que adormecido temporariamente.

Nossa Constituição Federal de 1988 trouxe, de maneira incontroversa, o Supremo Tribunal Federal (STF) como guardião da Constituição. Em outras palavras, dentro de nossa democracia frágil, seria ele o principal garantidor institucional das regras (e continuidade) do jogo democrático. Discussões que buscam controlar o poder judiciário seriam, portanto, juridicamente inférteis, vez que tais discussões fazem sentido (dentro do limite constitucional, deixando-se claro) apenas em democracias consolidadas, com instituições fortes e tradicionais, bem como por uma sociedade que já tivesse minimamente embutida a noção do espírito democrático.

Sabemos que o protagonismo judicial, fenômeno que não é de hoje e nem é específico do Brasil, vem causando conflitos institucionais. Neste sentido, a professora e cientista política alemã Ingeborg Maus, já em 1989, apontava para o possível ativismo do poder judiciário, sendo este apontado como "superego da sociedade", dada a expansão de seu controle normativo e crescente protagonismo na intervenção de políticas públicas alemã. Ran Hirschl, por sua vez, fala em juristocracia. No Brasil, fala-se em supremocracia e ministocracia.

Entretanto, o fortalecimento do poder judiciário é um sintoma (ou consequência) de uma democracia frágil, falha. À medida que a democracia se consolida, os outros Poderes passam a exigir um diálogo institucional, de modo que a "teoria da última palavra" vai perdendo força. Mas, para isso, precisamos de maturidade institucional.

Lunardi [7] demonstrou que parte do aumento de poder político que o STF adquirira nestes últimos tempos decorrera de espontânea manifestação dos outros poderes, seja por questões de estratégia política, seja como formas de se omitirem de tomar decisões impopulares. Neste sentido, contando com o apoio do Poder Executivo e Legislativo, o que é importante frisar, o judiciário se tornou o controlador de políticas públicas sociais no Brasil. Infelizmente, dentro de um cenário excessivamente politizado e polarizado, a Justiça brasileira se colocou, em determinados momentos, no lugar da administração pública e do Legislativo. Certamente haveria contra-ataque.

Não obstante, o STF, independente e legítimo, é o espaço imprescindível para prolongar a vida minimamente saudável de nossa frágil democracia constitucional. Na visão dos teóricos que estão preocupados em assegurar a democracia, precisamos garantir eleições livres e justas, liberdades de expressão e de associação — que permitam a proliferação de ideias contrárias e o accountability democrático —, e ainda respeitar a legalidade vigente, a independência do Judiciário e os direitos fundamentais.

Na realidade, diferentemente do que vem sendo propagado, parece-nos que a saída para as crises da democracia constitucional brasileira passa por uma defesa do STF como espaço de restauração institucional da legalidade, bem como a compreensão de que ele representa um local privilegiado de proteção dos direitos fundamentais de cada jurisdicionado, seja contra o Estado ou maiorias ocasionais.

Por fim, entendemos a importância desta discussão. Mas, deve esta ser realizada no tempo e modo adequado. Concordando com o professor Georges Abboud, não é este o momento correto para discutir estas medidas. Em momentos de crise, precisamos que as instituições mostrem seu valor, bem como a Constituição atue conforme sua força normativa. Devemos, pois, estar atentos ao efeito paradoxal destas medidas. O remédio não se pode converter em doença. Como dito na bela canção em epígrafe, a história se repete, mas a força deixa a história mal contada.

 

 


[4] TOCQUEVILLE, A. de. 2003. A democracia na América. Belo Horizonte,Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 597 p.

[5] ISSACHAROFF. Samuel. Fragile Democracies: Contested Power in the Era of Constitutional Courts. Cambridge University Press, 2015.

[6] O’DONNELL, Guillermo. Democracia delegativas? Novos Estudos. Cebrap, São Paulo, nº 31, out./nov., 1991.

[7] LUNARDI, Fabrício Castagna. Judicialização da política ou "politização suprema"? O STF, o poder de barganha e o jogo político encoberto pelo constitucionalismo. Pensar-Revista de Ciências Jurídicas, v. 24, nº 1, p. 1-12.

Autores

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada, juíza leiga do TJ-PB, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri, ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!