Opinião

Controle de legitimidade sobre infraestrutura: implicações em concessões e PPPs

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15 de março de 2024, 14h22

O controle da administração exercido pelos Tribunais de Contas pode ser visualizado sob duas óticas: o micro e o macrocontrole externo [1].

No microcontrole externo, tem-se a fiscalização atomizada, casuística, e que incide principalmente sobre atos administrativos, com base em elementos de regularidade jurídico-formal.

No macrocontrole externo, identifica-se fiscalização sistêmica, holística, que recai principalmente sobre os impactos sociais, econômicos, fiscais e ambientais de políticas públicas, tendo como parâmetro as prioridades constitucionais, tais como o combate às desigualdades regionais, a eliminação da miséria, a consagração de um meio ambiente ecologicamente equilibrado etc.

Um exemplo na área de infraestrutura ajuda a esclarecer. O Tribunal de Contas da União (TCU) exerce o microcontrole externo quando avalia se as empresas contratadas pela administração para a execução de obras em rodovias federais mantêm as condições de habilitação do edital da licitação, tal como a regularidade fiscal e a qualificação técnica.

Executa o macrocontrole externo, quando avalia os efetivos retornos dessas obras à sociedade, apreciando seus impactos, positivos e negativos. É o caso da repercussão das obras para a logística nacional, de modo a avaliar, por exemplo, as melhorias nos fluxos de transporte de mercadorias e de pessoas, a redução na quantidade de acidentes, a redução de custos logísticos com fretes etc.

Nessa linha, um dos instrumentos centrais do macrocontrole externo é o controle de legitimidade, que encontra fundamento na Constituição [2], na Lei Orgânica do TCU [3] e na Lei nº 4.320/1964 [4].

Objetivo é evitar casuísmos e improvisos

Esse tipo de controle coloca uma lupa sobre a atividade estatal para a avaliação do cumprimento do adequado planejamento estatal. Esse planejamento perpassa pela execução das etapas do ciclo das políticas públicas, que abrange:

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1) o correto diagnóstico das necessidades públicas, baseado em evidência e dados;
2) o incentivo a instrumentos de participação popular;
3) a estipulação de estratégias e ações, com suficiente fonte de custeio;
4) a distribuição clara e coesa de funções e competências;
5) estabelecimento de metas para o curto, médio e longo prazo;
6) a utilização de indicadores de aferimento adequados, e;
7) instrumentos de monitoramento e avaliação dos resultados, que viabilizem a revisão e o aperfeiçoamento contínuo e periódico das medidas implementadas.

Com isso, ao Tribunal de Contas cabe examinar se a administração tem executado ações para alcançar objetivos e metas por ela mesmo estabelecidas por meio dos diferentes instrumentos de planejamento, como:

a) leis orçamentárias — plano plurianual (PPA), lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e lei orçamentária anual (LOA); b) planos nacionais, a exemplo do Plano Nacional de Logística (PNL 2035); c) planos regionais, como o Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste (PRDNE); d) planos setoriais, a exemplo do Plano Setorial de Transportes Terrestres (PSTT).

Não se trata de substituir órgãos formuladores de políticas públicas por órgãos de controle. A gestão pública não perde espaço.

Pelo contrário. Tribunais de Contas passam a fortalecer — e, de certa forma, a defender — as políticas escolhidas e desenhadas pela administração, preservando-as, inclusive, após as naturais trocas de gestões governamentais, até que venham a ser revisadas ou, até mesmo, substituídas por outras políticas formuladas por novos gestores.

Assim, a consequência dessa espécie de controle é evitar casuísmos e improvisos, com a aderência do executado ao que fora planejado.

Controle de legitimidade sobre a infraestrutura e a IN nº 81

Na área de infraestrutura, como visto, um país que com 14 mil obras paralisadas [5], em que novas obras são anunciadas sem a previsão de recursos para o término das ainda não finalizadas [6], é a maior evidência da falha de planejamento de suas políticas públicas.

O tema ganha especial importância no setor de infraestrutura, em que tem crescido a participação do TCU no controle das chamadas parcerias de investimentos, principalmente nas concessões comuns e parcerias público-privadas (PPPs). A atuação do TCU nesses casos ocorre por meio do procedimento de fiscalização regulamentado pela IN nº 81/2018.

A norma impõe à administração a apresentação de uma série de documentos destinados a evidenciar a regularidade jurídico-formal do procedimento, com especial atenção à demonstração da adequação de seus custos e de sua sustentabilidade financeira, tais como projeções das receitas, previsão de custos operacionais e estimativas de orçamentos de obras e investimentos obrigatórios [7].

Ocorre que o ato normativo ainda carece de regras que fortaleçam o controle para o fortalecimento do planejamento estatal, com a aferição do cumprimento de diretrizes, objetivos e metas do poder público, no exercício do controle de legitimidade, inserido na esfera do macrocontrole externo. A atual redação da norma ainda demonstra uma preocupação preponderante do TCU no controle da regularidade jurídico-formal do projeto, com a efetivação do microcontrole externo [8].

Veja-se, segundo o ato normativo, que o TCU apenas exige a demonstração do planejamento orçamentário em relação às parcerias público-privadas (concessões em que há contrapartida financeira da administração para a remuneração do particular).

Assim, especificamente nesses casos, é preciso comprovar o projeto em infraestrutura está previsto no plano plurianual (PPA), está compatível com as metas da lei de diretrizes orçamentárias (LDO), e possui dotação na lei orçamentária anual (LOA) [9].

O ato normativo do TCU, aparentemente, parte do pressuposto de que a ordem financeira se limita a disciplinar a vida orçamentário-contábil do Estado. No entanto, a Constituição impõe que o PPA, a LDO e a LOA sejam considerados como efetivos instrumentos de planejamento estatal, apontando para a construção do futuro da sociedade, a fim de viabilizar o cumprimento das prioridades e das metas do poder público no curto, médio e longo prazo.

Além disso, mesmo nas concessões comuns, em que a remuneração do particular decorre das tarifas e eventuais receitas alternativas, sem aportes públicos, há diversos encargos ao poder concedente que demandam um adequado planejamento estatal, conforme o artigo 29 da Lei nº 8.987/1995.

Por isso, a demonstração da compatibilidade do projeto de infraestrutura sob análise do TCU com as diretrizes, objetivos, metas e prazos dos programas do PPA, com as metas e prioridades da LDO e com as dotações da LOA deveria ser o foco da atuação do controle externo em todos os tipos de parcerias de investimentos, e não apenas naquele em que há contrapartida financeira da Administração para a remuneração do particular (PPPs).

Além do mais, na IN nº 81/2018, não há, ao menos de forma explícita, nenhuma exigência de comprovação de que o projeto de infraestrutura está em harmonia com os planos nacionais, regionais e setoriais das diferentes áreas da infraestrutura.

Por exemplo, não se encontra dentro dos elementos elencados para a avaliação do TCU regra que imponha à Administração a comprovação da integração de eventuais projetos de transportes rodoviários com outros modais, como o aéreo, o ferroviário e o aquaviário, com vistas a implementar de forma efetiva o Plano Nacional de Logística 2035.

Noutro aspecto, a falta de compatibilidade dos projetos em infraestrutura executados por meios de concessões e PPPs com os instrumentos de planejamento do Estado também reduz a previsibilidade e, consequentemente, a segurança jurídica na relação com o parceiro privado.

Isso gera efeitos antieconômicos ao poder público e aos usuários dos serviços a serem concedidos. Sem a confiança de que a administração cumprirá com suas contrapartidas (financeiras ou não) no curto, médio e longo prazo, naturalmente, o particular absorverá esses riscos na precificação de suas propostas na licitação.

A importância do planejamento estatal em concessões e PPPs

Nesse sentido, objeto de estudos da Análise Econômica do Direito (AED) [10], a teoria dos jogos indica que os agentes econômicos (jogadores), ao traçarem suas estratégias perante um determinado mercado, em busca de resultados mais eficientes, atêm-se não apenas aos movimentos dos jogadores concorrentes, mas também de jogadores externos, como o Estado [11]. Sob esse prisma, a influência estatal sobre o jogo e, logo, sobre as estratégias dos demais jogadores, ocorre principalmente pelo estabelecimento de normas jurídicas que incidem sobre o mercado em disputa.

Essa formulação de estratégias baseadas nas jogadas e movimentações do Estado tem especial relevância perante o mercado de contratações públicas [12], principalmente na área de infraestrutura, que normalmente envolve grande volume de recursos.

Nesse mercado, o principal consumidor (Estado) detém poder de império, que lhe confere, por exemplo, prerrogativas para alteração dos contratos e criação de novas obrigações para o particular, independentemente de sua concordância ou vontade (cláusula exorbitantes).

Imagine-se que uma licitação para concessão comum na área de transportes prevê que, durante a exploração dos serviços, o particular deve aplicar investimentos para a duplicação de uma estrada, o que será precedido de desapropriações dos imóveis particulares às margens da rodovia pelo poder concedente, nos termos do artigo 29, VIII, da Lei nº 8.987/1995 [13].

Leopoldo Silva/Agência Senado

Caso não se garanta um planejamento adequado para a execução dessas ações estatais — como a previsão de recursos suficientes para as desapropriações na LOA —, é natural que, na formulação de sua proposta durante o processo de licitação, o particular compense esse risco de inadimplemento estatal por meio da diminuição do valor de outorga e/ou do aumento do valor da tarifa oferecida (a depender do critério de julgamento da licitação).

Além disso, também é o Estado que decide as metas a serem atingidas pelos particulares durante a execução de uma concessão ou PPP. Essas metas, geralmente, impactam na remuneração do concessionário, que costuma ser variável para o estímulo a uma melhor performance na execução do contrato.

Por isso, a definição das metas precisa ser equalizada perante diversos fatores: atual estágio da qualidade e da abrangência dos serviços que serão concedidos, existência de métricas e indicadores fidedignos para aferição de resultados durante a concessão, avaliação da capacidade financeira e operacional dos potenciais interessados em participar da licitação etc. Isso só é possível por meio de um adequado planejamento do poder concedente.

Metas mal calibradas geram ineficiência e esvaziam o propósito das concessões e PPPs. Por exemplo, considere-se um contrato de concessão de serviço público em que um dos indicadores para o cálculo da remuneração do particular é o índice de satisfação dos usuários do serviço. A fixação de meta muito baixa (imagine-se um indicador em torno 10% de satisfação) afastaria o objetivo da concessão de obter a melhoria dos serviços.

Mas, por outro lado, a fixação de meta inalcançável (imagine-se um indicador acima de 99% de satisfação), também iria contra a eficiência dos serviços, uma vez que não haveria incentivo para que a concessionária adotasse medidas para uma maior satisfação dos usuários.

Além disso, durante a licitação, os licitantes, ao considerar a inviabilidade de se atingir essa meta, poderão formular suas propostas com a absorção do impacto do não cumprimento desse indicador na sua remuneração, reduzindo a vantajosidade dos preços ofertados na disputa.

Conclusão

Por isso, ao fim e ao cabo, o fortalecimento do planejamento estatal em concessões e PPPs, além de viabilizar maior eficiência para a melhoria e expansão dos serviços concedidos, aumenta a atratividade e contribui para ampliar o retorno socioeconômico da licitação, com a seleção de propostas mais vantajosas (como a maior outorga e/ou menor tarifa), em um jogo de ganha-ganha, com benefícios para o Estado, para os usuários e para os concessionários.

Com isso, não se nega a importância de se manter a fiscalização do TCU sobre o dimensionamento dos custos do projeto (controle de economicidade) ou sobre a instrução processual em conformidade com as exigências legais (controle de legalidade), no exercício do microcontrole externo.

Ocorre que mais relevante que isso é a corte exercer de forma efetiva o macrocontrole externo, especialmente por meio do controle de legitimidade: averiguar se a concessão comum ou a PPP se amolda à adequada execução do planejamento estatal, a partir da demonstração da harmonia do projeto com instrumentos como PPA, LDO, LOA, planos nacionais, regionais, setoriais, com a previsão de metas e indicadores realistas que incentivem a melhoria e a ampliação dos serviços.

Não é exagero afirmar que um projeto com preços vantajosos e em absoluta regularidade jurídico-formal, porém desconexo com as prioridades definidas no planejamento estatal, pode ser mais prejudicial ao interesse público do que projetos mais custosos e com irregularidades sanáveis, mas que produzam os resultados de curto, médio e longo prazo necessários para o alcance dos objetivos e metas planejadas.

Desse modo, a concepção de controle de legitimidade aqui defendida demanda uma priorização das atividades dos tribunais de contas para o reforço do planejamento estatal e, consequentemente, a implementação de políticas públicas eficientes.

 

 


[1] Os conceitos têm como inspiração a ideia de análise macro e microjurídica de políticas públicas desenvolvido por Fernando Facury Scaff (cf. SCAFF, Fernando Facury. Uma introdução à análise macro e microjurídica e as políticas públicas. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 21, n. 83, p. 89-108, jul./set. 2023).

[2] No art. 70, caput, da CF, ao prever a competência do controle externo para fiscalizar a legitimidade dos atos da Administração; o art. 71, I e II, da CF, ao versar sobre análise das contas, o que pressupõe uma avaliação de metas e resultados da gestão; o art. 71, IV, da CF, ao tratar das auditorias operacionais sobre a atividade administrativa.

[3] Art. 1º, §1º, art. 8º, art. 16, I e II, “b” e “c”, art. 43, II, art. 58, III, da Lei nº 8.443/1992.

[4] O art. 75, III, da Lei nº 4.320/1964 fundamenta o controle em prol do planejamento, ao estipular que a execução orçamentária se submeterá ao controle sobre o cumprimento dos programas governamentais, tanto em termos monetários (execução das dotações previstas) como em termos de resultados à sociedade (finalização de obras e efetiva prestação de serviços). Além disso, o art. 81 do referido diploma prevê expressamente que cabe ao controle externo verificar a execução da lei do orçamento.

[5] Como identificado no Acórdão nº 1.079/2019 do TCU.

[6] Em afronta ao art. 45 da LRF, segundo o qual “(…) a lei orçamentária e as de créditos adicionais só incluirão novos projetos após adequadamente atendidos os em andamento e contempladas as despesas de conservação do patrimônio público, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias”.

[7] Art. 3º da IN nº 81/2018.

[8] Sobre o macro e microcontrole externo, ver o item 2.2 deste trabalho.

[9] Art. 5º, VI, da IN nº 81/2018.

[10] A metodologia da Análise Econômica do Direito (AED), ou Law and Economics, como é chamada nos Estados Unidos, guia-se pela ideia de que, de um lado, os fenômenos econômicos devem ser parâmetros para a resolução de problemas jurídicos, e, ao mesmo tempo, reconhece a importância do Direito para influenciar a economia. Com isso, a relação Direito e Economia deve pautar-se, principalmente, na eficiência, de modo que normas jurídicas devem ser elaboradas, interpretadas e aplicadas de modo a conferir a maior eficiência econômica possível. Autores como Richard Posner vinculam a própria noção de justiça à eficiência econômica, ver: POSNER, R. The Problems of Jurisprudence. Cambridge: Harvard University Press, 1990.

[11] ULEN, Thomas; COOTER, Robert. Direito & Economia. 5ª edição. Porto Alegre: Bookman, 5a Ed., 2010, p. 56.

[12] Sobre a aplicação da teoria dos jogos em contratações públicas, ver: CAMELO, Bradson; NÓBREGA, Marcos; TORRES, Ronny Charles L. de. Análise econômica das licitações e contratos: de acordo com a Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações). Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022, p. 79-93.

[13] O art. 29, VIII, da Lei nº 8.987/1995, prevê que incumbe ao poder concedente “declarar de utilidade pública os bens necessários à execução do serviço ou obra pública, promovendo as desapropriações, diretamente ou mediante outorga de poderes à concessionária, caso em que será desta a responsabilidade pelas indenizações cabíveis”.

Autores

  • é doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito do Estado, Tributação Indutora e Regulação, procurador estadual, advogado e consultor jurídico. E-mail:

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