Opinião

Má-fé no pedido de registro de marcas: a sentença c-320/1 do TJ-UE

Autor

  • Bernardo Forlin

    é advogado especialista em Direito Civil e Empresarial e mestrando em Direito Privado Patrimonial pela Universidade de Salamanca.

13 de março de 2024, 14h17

Ementa. «Aproximação das legislações ― Diretiva 2008/95/CE ― Artigo 4°, n° 4, alínea g) ― Marcas ― Requisitos de aquisição e de conservação de uma marca ― Recusa de registo ou nulidade ― Conceito de ‘má‑fé’ do requerente ― Conhecimento da existência de uma marca estrangeira por parte do requerente»

1. Antecedentes fáticos do litígio

 A demanda que chega ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ-UE) tem origem na apresentação do pedido de registro de marca pela Malaysia Dairy Industries Pte. Ltda., referente ao design de garrafa de plástico utilizada na comercialização de bebida láctea, perante o Ankenævnet for Patenter og Varemærker (Comitê de Apelação para Patentes e Marcas) da Dinamarca.

Em resumo, a questão de fato enfrentada é que, em tese, Malaysia Dairy detinha conhecimento prévio de um registro de marca idêntico ao apresentar seu pedido de registro na Dinamarca, a marca japonesa Kabushiki Kaisha Yakult Honsha — conhecida como Yakult-.

Essa marca havia obtido o registro da garrafa nos anos 1960 no Japão e em vários estados membros da União Europeia.

Apesar de terem assinado um acordo dois anos antes sobre “os direitos e obrigações mútuos relativos ao uso e registro de suas respectivas garrafas em determinados países“, em 1995 Malaysia Dairy apresenta o pedido que gera a controvérsia perante as autoridades dinamarquesas, obtendo nesse ano o registro da garrafa como marca tridimensional.

Diante do registro, em 2000, a Yakult apresenta oposição, alegando que, com base no artigo 15 da Lei de Marcas dinamarquesa, isso não poderia ocorrer, uma vez que a empresa japonesa possuía o registro em vários países estrangeiros, e a Malaysia Dairy, sem dúvida, tinha conhecimento desses registros anteriores, demonstrando inequívoca má-fé na solicitação.

Apesar da oposição da Yakult, o Escritório Dinamarquês de Patentes confirma o registro da Malaysia Dairy, argumentando que havia um registro válido da garrafa pela oponente em seu país de origem e o simples conhecimento de uma marca registrada de propriedade estrangeira não demonstra, por si só, má-fé.

Contra a decisão de manutenção do registro, a Yakult leva o caso ao Comitê de Apelação, que confirma a anulação do registro e acata o apresentado pela opoente, argumentando que “o conhecimento efetivo ou presumido de uma marca usada no exterior, para efeitos desta disposição, é suficiente para concluir que há má-fé por parte do solicitante do registro de uma marca, mesmo que se possa presumir que ele tenha anteriormente obtido o registro da marca solicitada em outro país”.

Já em instância judicial, diante da anulação, Malaysia Dairy recorre ao Søog Handelsretten – Tribunal Marítimo e de Comércio que ratifica a decisão do órgão administrativo.

Diante disso, novamente recorre Malaysia Dairy, desta vez à Højesteret Suprema Corte . Esta, por razão de dúvidas concretas sobre o determinado no artigo 4, parágrafo 4, letra g), da Diretiva 2008/952 [1] e seu conceito de má-fé, suspende o julgamento e encaminha-o ao Tribunal de Justiça da União Europeia, apresentando as questões prejudiciais à corte comunitária:

1) O conceito de má-fé utilizado no artigo 4, parágrafo 4, letra g), da Diretiva 2008/95 […] é expressão de uma norma jurídica que pode ser delimitada de acordo com o direito interno dos Estados membros, ou é um conceito do direito da União que deve ser interpretado de maneira uniforme?

2) Se o conceito de má-fé [incluído no] artigo 4, parágrafo 4, letra g), da Diretiva 2008/95 é um conceito do direito da União, deve entender-se que basta, para negar o registro, que o solicitante conhecesse ou devesse conhecer a marca estrangeira no momento da apresentação do pedido, ou devem também ser considerados os elementos subjetivos presentes no solicitante?

3) Pode um Estado membro optar por estabelecer um regime específico de proteção para marcas estrangeiras que se afaste do artigo 4, parágrafo 4, letra g), da Diretiva 2008/95 em relação ao requisito da má-fé, por exemplo, estabelecendo o requisito específico de que o solicitante conhecesse ou devesse conhecer a marca estrangeira?

2. Princípios jurídicos e legislação comunitária aplicados na decisão do TJ-UE

Além dos já mencionados artigos, a sentença aponta que a Diretiva 89/104/CEE do Conselho, embora revogada, possui o mesmo conteúdo da mais recente sobre a má-fé no registro de marcas. Isso porque alguns dos fundamentos jurídicos analisados são anteriores à entrada em vigor da Diretiva ora vigente.

Também são invocados os considerandos 2, 4, 6 e 8 da Diretiva 2008/95, que, em síntese, argumentam que a) a Diretiva busca harmonizar as leis de marcas na União para eliminar disparidades e garantir a livre circulação de bens e serviços, b) não é necessária uma harmonização total, apenas uma aproximação das disposições nacionais com maior impacto e c) os Estados mantêm a liberdade para estabelecer procedimentos sobre o registro de marcas, buscando sempre a igualdade de condições para a aquisição e conservação.

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Em resumo, o que está sendo tratado é a aplicação concreta do conceito de má-fé no âmbito do registro de marcas.

O TJ-UE aborda as três questões formuladas pela Suprema Corte e determina que, em geral, é necessária a avaliação abrangente da existência de má-fé nos pedidos, considerando vários fatores, ademais de negar a possibilidade de os estados membros estabelecerem proteções específicas adicionais para marcas estrangeiras ou objetivar a presunção de má-fé nos registros.

Destaca-se que, para o TJ-UE, o conhecimento ou a presunção de conhecimento por parte do solicitante de uma marca estrangeira utilizada no momento do pedido não é suficiente , por si só, para demonstrar a má-fé.

Sobre as questões concretas levantadas pelo Tribunal Supremo, manifesta-se o TJ-UE no sentido de concluir que o conceito de má-fé no artigo 4 da Diretiva constitui um conceito autônomo do direito da União que deve ser interpretado de maneira uniforme. Portanto, há necessidade de coerência na aplicação das normas de marcas em todos os países.

Já em relação à segunda questão, o TJ-UE conclui que, para demonstrar a existência de má-fé, é essencial realizar uma avaliação dos fatores relevantes no caso, incluindo a intenção subjetiva do solicitante.

Por fim, em relação à terceira questão, no sentido de harmonização das normas internas, o TJ-UE concluiu que o artigo 4 da Diretiva 2008/95/CE não autoriza aos Estados estabelecerem um regime de proteção específica para marcas estrangeiras com base no conhecimento do solicitante sobre registros anteriores.

Este caso levanta questões fundamentais sobre a interpretação e aplicação da legislação e do princípio da boa-fé no registro de marcas e sinais distintivos.

Assim o faz por se aprofundar nas possíveis implicações legais e comerciais da decisão, considerando seu impacto em litígios semelhantes. A tensão entre a proteção dos direitos de marca e a ética no processo de registro é examinada, destacando a necessidade de uma revisão abrangente dos procedimentos e da legislação vigente no campo da propriedade intelectual.

É importante, em igual medida, por evidenciar a complexidade inerente à busca de um equilíbrio justo entre a proteção dos legítimos direitos comerciais e a integridade do sistema de registro de marcas.

Pode-se dizer que o TJ-UE buscou, de maneira pragmática, estabelecer limites para a definição de má-fé, deixando para os órgãos administrativos nacionais a análise direta da incidência de cada caso, sendo sua modalidade inerentemente subjetiva, mesmo à luz da redação da Diretiva, que abriria margem para uma interpretação objetivada da má-fé nos pedidos de registro.

Embora seja verdade que o TJ-UE decidiu que o “conhecimento e/ou presunção de conhecimento por parte do solicitante estrangeiro não é suficiente por si só para estabelecer a má-fé”, no caso Malaysia Dairy e Yakult, parece-nos que o requisito de conhecimento da marca registrada pelos japoneses, anteriormente e objeto de acordo entre as partes, demonstra inequívoca má-fé por parte da solicitante.

O comportamento adotado vai contra um acordo assinado anteriormente, que sabidamente detinha o registro da referida garrafa em estados membros. Assim, analisando a intenção subjetiva do requerente, como indica a decisão, fica claro que houve má-fé.

O objetivo desse comportamento é criar uma dissidência comercial com o registro da marca, e, portanto, concorrer de forma desleal com a Yakult.

Observamos que o caso analisado está em conformidade com o entendimento doutrinário sobre má-fé e propriedade intelectual, exemplificadamente:

“Em tal sentido, o agir de forma desonesta, desleal ou com má-fé constitui um comportamento sancionado pelo ordenamento jurídico, e essa sanção se reflete por meio da nulidade do certificado respectivo. Em termos gerais, considera-se que existe má-fé na obtenção de um registro quando um titular do direito adquiriu sua posição jurídica por meio de um comportamento que contraria as normas jurídicas, a boa-fé comercial ou os bons costumes, causando desvantagens desleais a terceiros, que de outra forma não teriam surgido.” (BETOCCHI, 2004, p. 106)

Assim, a decisão é paradigmática na exata medida em que busca conformar a higidez dos registros de marcas e propriedade intelectual pelos estados membros da União Europeia sem olvidar da importância da consideração do princípio da boa-fé nos pedidos realizados, buscando indicar a análise necessariamente subjetiva do ente solicitante do registro.

 


BIBLIOGRAFIA

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA – CURIA –  Judgment of the Court (Fifth Chamber), 27 June 2013 – Malaysia Dairy Industries Pte. Ltd v Ankenævnet for Patenter og Varemærker – Request for a Preliminary Ruling from the Højesteret.

JOHANSON BETTOCCHI, P. (2004). Competencia desleal a propósito del registro de marca de mala fe. Ius Et Praxis, 35(035), 98-107.

[1] Diretiva 2008/95 do PE – Artigo 4.o (…) 4. Os Estados-Membros podem ainda prever que o pedido de registo de uma marca seja recusado ou, tendo sido efectuado, que o registo de uma marca fique passível de ser declarado nulo sempre que e na medida em que: (…) g) A marca seja susceptível de confusão com uma marca utilizada num país estrangeiro no momento em que foi apresentado o pedido e que continue a ser utilizada nesse país, desde que o pedido tenha sido feito de má-fé pelo requerente.

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