Opinião

Integridade na administração pública: entre a expectativa e a realidade

Autor

  • Rafael Carvalho Rezende Oliveira

    é visiting scholar pela Fordham University School of Law (New York) doutor em Direito pela UVA-RJ mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ especialista em Direito do Estado pela Uerj membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (Idaerj) professor titular de Direito Administrativo do Ibmec professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito — mestrado e doutorado do PPGD/UVA do mestrado acadêmico em Direito da Universidade Cândido Mendes de Direito Administrativo da Emerj e do Curso Forum pdos cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes procurador do município do Rio de Janeiro sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados árbitro e consultor jurídico.

11 de março de 2024, 20h50

A busca da governança e da integridade nas relações público-privadas integra a pauta da administração pública nos cenários internacional e nacional.

A “governança pública” compreende a busca por instrumentos de maior legitimidade (ex.: participação na formulação da decisão administrativa), eficiência (ex.: planejamento e controle de resultados) e accountability (ex.: controle social e institucional) por parte dos reguladores [1].

De acordo com o artigo 2º, I, do Decreto 9.203/2017, a governança é o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”.

Já a programa de integridade, na forma do artigo 3º do Decreto 11.529/2023, é o “conjunto de princípios, normas, procedimentos e mecanismos de prevenção, detecção e remediação de práticas de corrupção e fraude, de irregularidades, ilícitos e outros desvios éticos e de conduta, de violação ou desrespeito a direitos, valores e princípios que impactem a confiança, a credibilidade e a reputação institucional” (artigo 3º).

Não obstante as diferenças técnicas entre governança e integridade, é possível afirmar a interdependência desses conceitos.

O estudo da governança e da integridade nas relações público-privadas está intimamente relacionado com a ética na gestão pública. Sem governança e integridade, escancara-se o caminho para corrupção que, infelizmente, representa um desafio histórico no Brasil.

Superação do patrimonialismo

Com efeito, a corrupção é inimiga da República, uma vez que significa o uso privado da coisa pública, quando a característica básica do republicanismo é a busca pelo “bem comum”, com a distinção entre os espaços público e privado [2].

Entender o patrimonialismo é essencial para abordar as complexidades da governança e da integridade nas relações público-privadas. Esta noção histórica desempenha um papel crucial ao evidenciar como as práticas administrativas podem ser moldadas por tradições e relações pessoais, muitas vezes em detrimento dos princípios de transparência, meritocracia e eficiência.

Ao destacar a persistência dessas práticas, nos deparamos com o desafio de reformular a cultura organizacional e as estruturas de poder dentro das instituições públicas. A superação desse modelo patrimonialista é, portanto, um passo fundamental para instaurar uma administração pública que verdadeiramente valorize a integridade e a governança, combatendo a corrupção de maneira efetiva e promovendo uma gestão ética e democrática.

Spacca

De fato, existe uma dificuldade histórica por parte dos agentes públicos na distinção entre os domínios público e privado. Na tradição histórica brasileira, os denominados “funcionários patrimoniais” tratam a gestão pública como assunto particular e são escolhidos por meio de critérios subjetivos, laços de amizade, não importando as suas capacidades ou mérito [3].

O caráter patrimonialista do Estado relaciona-se, em grande medida, à “dominação tradicional” mencionada por Max Weber, que é marcada pela obediência à pessoa indicada pela tradição em detrimento da obediência aos estatutos, bem como pela presença, nos quadros administrativos, de pessoas tradicionalmente ligadas à pessoa dominante, por vínculos pessoais, que não possuem formação profissional adequada [4].

A corrupção, historicamente diagnosticada no Brasil, pode ser explicada pela caracterização do brasileiro como “homem cordial”, expressão utilizada pelo escritor Ribeiro Couto e citada por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra clássica Raízes do Brasil. A “cordialidade”, no caso, não é utilizada como sinônimo de “boas maneiras” ou civilidade, mas, sim, para se referir à tendência do povo brasileiro em afastar o formalismo e o convencionalismo social em suas relações [5].

Integridade pública

A preocupação crescente com o combate à corrupção integra a agenda dos países que buscam implementar instrumentos de governança capazes de garantirem o denominado “direito à boa administração”. Os padrões éticos, a eficiência administrativa e o controle da gestão pública são características indissociáveis da gestão pública pós-moderna.

Não por outra razão, a OCDE considera que a integridade pública pressupõe o alinhamento consistente e a adesão de valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público, devendo ser observadas as seguintes recomendações para sua implementação [6]:

1) demonstrar compromisso nos mais altos níveis políticos e administrativos do setor público para aumentar a integridade pública e reduzir a corrupção;
2) esclarecer responsabilidades institucionais em todo o setor público para fortalecer a eficácia do sistema de integridade pública;
3) desenvolver uma abordagem estratégica para o setor público que se baseie em evidências e vise atenuar os riscos de integridade pública;
4) definir altos padrões de conduta para funcionários públicos;
5) promover uma cultura de integridade pública à toda a sociedade, em parceria com o setor privado, com a sociedade civil e com os indivíduos;
6) investir em liderança de integridade para demonstrar o compromisso da organização do setor público com a integridade;
7) promover um setor público profissional, baseado em mérito, dedicado aos valores do serviço público e à boa governança;
8) fornecer informações suficientes, treinamento, orientação e conselhos em tempo hábil para que os funcionários públicos apliquem padrões de integridade pública no local de trabalho;
9) apoiar uma cultura organizacional aberta no setor público que responda a preocupações de integridade;
10) aplicar um quadro de gestão de riscos e controle interno para salvaguardar a integridade nas organizações do setor público;
11) certificar que os mecanismos de cumprimento proporcionem respostas adequadas a todas as violações suspeitas de padrões de integridade pública por parte de funcionários públicos e todos os outros envolvidos nas violações;
12) reforçar o papel da fiscalização e controle externo no sistema de integridade pública; e
13) incentivar a transparência e o envolvimento das partes interessadas em todas as etapas do processo político e do ciclo político para promover a prestação de contas e o interesse público.

Atualmente, a importância da governança e da integridade em processos de contratação pública se justifica pela urgência em elevar os padrões da gestão pública. Este aprimoramento visa mitigar riscos de integridade que podem surgir em licitações e outras modalidades de contratação, além de enfrentar a profunda crise ética que marcou profundamente o cenário nacional nos últimos anos.

Legislação

Em consequência, a legislação tem sido alterada com o intuito de impor ou fomentar a cultura da governança e da integridade nas relações público-privadas, com destaque, sem caráter exaustivo, para os seguintes diplomas normativos:

a) Lei 10.257/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI): intensifica a publicidade e a cultura da transparência na Administração Pública, com a efetivação do direito constitucional à informação e desenvolvimento do controle social;

b) Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção): prevê a integridade como parâmetro sancionador (artigo 7º, VIII) e o seu regulamento (Decreto 11.129/2022) prevê a adoção, a aplicação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, como cláusula do acordo de leniência (artigo 45, IV) [7];

c) Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais): exige a governança nas empresas estatais (artigo 6º) e a elaboração de Código de Conduta e Integridade e a outras regras de boa prática de governança corporativa (artigo 9º, § 1º);

d) Lei 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras): impõe a elaboração de programas de integridade nas agências reguladoras (art. 3º, § 3º);

e) Lei 8.429/1992, alterada pela Lei 14.1230/2021 (Lei de Improbidade Administrativa): permite a previsão de mecanismos e procedimentos internos de integridade no âmbito do acordo de não persecução civil — ANPC (artigo 17-B, § 6º);

f) Lei 13.709/2018 (LGPD): os sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem ser estruturados de forma a atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança (artigo 49); regras de Boas Práticas e de Governança (artigos 50 e 51); parâmetro sancionador: adoção de política de boas práticas e governança (artigo 53, § 1º, IX); g) Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos): indica a alta administração como responsável pela governança das contratações (artigo 11, parágrafo único), a possibilidade de fixação de matriz de riscos (artigo 22); impõe a criação de programa de integridade para contratos de grande vulto (artigo 25, § 4º); incentiva a criação de programas de integridade nas demais contratações (artigo 60, IV; 156, § 1º, V; 163, parágrafo único); prevê as linhas de defesa (artigo 169); etc.

No campo regulamentar, é possível destacar, exemplificativamente, dois atos normativos voltados à governança e à integridade no âmbito da administração pública federal:

a) Decreto 9.203/2017: dispõe sobre a política de governança e indica, no artigo 3º, os princípios da governança pública (capacidade de resposta; integridade; confiabilidade; melhoria regulatória; prestação de contas e responsabilidade; e transparência);

e b) Decreto 11.529/2023: instituiu o Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal (Sitai) e a Política de Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal, com a revogação do Decreto 10.756/2021, que tratava do Sistema de Integridade Pública do Poder Executivo Federal.

Parâmetros

Não bastam leis para mudar a cultura institucional e corporativa. Afinal de contas, “as leis abundam nos Estados mais corruptos” (Tácito). Aliás, igualmente não basta a criação de programas de integridade no campo formal (“de fachada”) que não sejam efetivos. É preciso mudar a cultura das organizações públicas e privadas, com a indução de comportamentos éticos.

De nossa parte, apresentamos alguns parâmetros para maior efetividade da integridade nas relações público-privadas:

a) Integridade como via de mão dupla: a concretização da governança e da integridade nas relações público-privadas é uma via de mão dupla, já que pressupõe a atuação coordenada dos atores estatais e da iniciativa privada, além da necessária mudança de cultura organizacional, destacando-se a necessidade de estruturação e implementação de procedimentos e práticas que assegurem a integridade na Administração Pública e nas entidades da iniciativa privada;

b) Normas impositivas e indutivas: é imprescindível a elaboração de normas que exijam ou induzam a instituição de estruturas de governa e programas de integridade, com destaque para a utilização preferencial de normas indutivas (sanções premiais), em substituição a um modelo rígido e coercitivo, que, em vez de impor determinados padrões, procura induzir o comportamento dos agentes envolvidos em direção a práticas socialmente desejáveis, lançando mão de mecanismos de coordenação estratégica de interesses e cooperação voluntária, o que pode melhor atender aos objetivos de eficiência, racionalidade e legitimidade da atividade estatal.

c) Institucionalização da governança e da integridade na Administração Pública e nas entidades privadas: é fundamental a instituição de órgãos dotados pessoal capacitado para monitorar o cumprimento das regras de governança e de integridade, de forma a potencializar o alcance das ações implementadas (exs.: Comitê Interministerial de Governança – CIG, previsto no Decreto 9.203/2017; Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal – Sitai, indicado no Decreto 11.529/2023; Secretaria Municipal de Integridade, Transparência e Proteção de Dados – SMIT, no Município do Rio de Janeiro).

d) Evitar integridade apenas formal (compliance fake ou integridade de fachada), intensificação da transparência, fiscalização e responsabilização: a simples estruturação de programas de integridade, que ficam no papel, e criação de órgãos voltados à integridade, sem a necessária independência e qualificação, não se revelam soluções suficiente para implementação efetiva de uma cultura de integridade, o que demonstra a relevância das certificações (exs: ISO 19600 – Sistema de Gestão de Compliance e ISO 37001 – Sistemas de gestão antissuborno), com a intensificação da transparência, da fiscalização (institucional e social) e da responsabilização efetiva dos autores de desvios éticos;

e) Capacitação dos atores públicos e privados que atuam, direta ou indiretamente: revela-se fundamental a contínua capacitação de servidores, empregados e gestores, públicos e privados, com o objetivo de garantir qualificação, atualização e a internalização da cultura a integridade, por meio de ações de sensibilização e solidificação do compromisso desses agentes em relação ao comportamento íntegro.

Naturalmente, não se muda a cultura do dia para noite. Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, afirmava que a virtude moral requer o hábito de praticar ações virtuosas. É preciso, portanto, praticar aquilo que a legislação vem estabelecendo nos últimos anos no Brasil, criando-se o hábito da governança e da integridade.

Nesse contexto, a modernização da legislação, a institucionalização de mecanismos de controle (preventivo e repressivo), a transparência pública, a educação, entre outros fatores, representam importantes avanços no processo de implementação da governança pública.

 


[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação estatal: Administração Pública de resultados e análise de impacto regulatório, Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 184.

[2] RIBEIRO, Renato Janine. A república. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 41-52.

[3] No diagnóstico preciso de Sérgio Buarque de Holanda: “No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146.

[4] WEBER, Max. Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: UNB, 2004. v. 1, p. 139-167.

[5] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146 e 205.

[6] OCDE, Recomendação do Conselho da OCDE sobre integridade pública. Disponível em: <https://www.oecd.org/gov/ethics/integrity-recommendation-brazilian-portuguese.pdf>. Acesso em: 27/02/2024.

[7] A definição do programa de integridade é apresentada pelo art. 56 do Decreto 11.129/2022: “Art. 56.  Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de: I – prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II – fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.”

Autores

  • é visiting scholar pela Fordham University School of Law (EUA), pós-doutor pela Uerj, doutor em Direito pela UVA-RJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ, especialista em Direito do Estado pela Uerj, professor Titular de Direito Administrativo do Ibmec, professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito do PPGD/UVA, do mestrado acadêmico em Direito da Universidade Cândido Mendes, professor de Direito Administrativo da Emerj, do curso Forum, dos cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes, ex-defensor público federal, procurador do município do Rio de Janeiro, sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados, árbitro e consultor jurídico.

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