Processo Tributário

Fiança bancária e seguro garantia na execução fiscal (parte 2)

Autor

  • Danilo Monteiro de Castro

    é advogado doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professor do Ibet juiz do TIT-SP pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e integrante do grupo de trabalho de Direito Processual Tributário do IBDP.

10 de março de 2024, 8h00

No final do ano passado tratamos deste assunto, em artigo veiculado nesta coluna [1], focados: [1] no veto presidencial ao § 7º a ser inserido, pela Lei 14.689/2023, ao artigo 9º da Lei de Execuções Fiscais (que impedia a liquidação das chamadas “garantias pessoais” — fiança bancária e seguro garantia – antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal); [2] na afetação do tema, independentemente da mencionada inovação legislativa, pelo Superior Tribunal de Justiça (para definir quanto à possibilidade, ou não, de referida liquidação antecipada); e, ainda, [3] pela possibilidade de o tema ser revisitado no Projeto de Lei federal 2.488/2022 (nova Lei de Execuções Fiscais).

Mesmo com pouco tempo transcorrido desde a publicação do supracitado artigo, muitas novidades tivemos perante esse tema, a ensejar não só um complemento ao que restou lá afirmado como, também, importantes desdobramentos necessários ao novel cenário legislativo, já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça.

No mencionado artigo veiculado em novembro de 2023, consideramos como superada a possibilidade de “derrubada” do veto presidencial pelo Congresso Nacional, uma vez que a Lei 14.689 já havia sido promulgada, e devidamente publicada, cenário incompatível, em nosso entender, com possível afastamento deste veto, a teor do que prevê o §§ 4º a 7º do artigo 66 da Constituição [2].

Não é esse, entretanto, o entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal, que permite a promulgação/publicação da parte incontroversa do texto, ficando o trecho vetado, se houver posterior “derrubada” do veto, para futura publicação, com integração no texto normativo já em vigor. [3]

Foi exatamente isso que tivemos em relação à Lei 14.689/2023, a derrubada dos vetos impostos a determinados dispositivos (dentre eles o § 7º atribuído ao artigo 9º da Lei 6.830/1980) implicou na posterior promulgação destes regramentos, em 20 de dezembro de 2023, que passaram a integrar o texto já em vigor da Lei 14.689/2023 (cuja redação original foi promulgada três meses antes).

Superadas estas questões jungidas ao processo legislativo, o fato é que temos agora texto normativo que impede a chamada “liquidação antecipada” destas modalidades de garantia:

“Art. 9º – Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá:
[…] II – oferecer fiança bancária ou seguro garantia;
[…] § 7º – As garantias apresentadas na forma do inciso II do caput deste artigo somente serão liquidadas, no todo ou parcialmente, após o trânsito em julgado de decisão de mérito em desfavor do contribuinte, vedada a sua liquidação antecipada.”

Decisão do STJ e três pontos que demandam reflexão

O tema ganhou tanta importância que, em 6 de fevereiro de 2024, a ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça, desafetou a matéria [4] e, 20 dias depois (26/2/2024), resolveu o caso concreto (em que o contribuinte questionava exatamente decisão que validou a liquidação antecipada de garantia) da seguinte forma:

“[…] Contudo, a legislação de regência foi modificada.
Com efeito, o Congresso Nacional derrubou o veto do Presidente da República a dispositivo da Lei n. 14.689/2023, ensejando a inclusão do § 7º no art. 9º da LEF, norma voltada para a vedação da liquidação prévia do seguro-garantia: […]
Trata-se de legislação processual, aplicável aos processos em cursos, cuja publicação ocorreu em 22.12.2023.
Considerando a novel legislação, a 1ª Turma desta Corte, na assentada de 20.2.2024, quando do julgamento do AgInt. no AREsp n. 2.310.912/MG de Relatoria do Sr. Ministro Sérgio Kukina, acórdão pendente de publicação, reviu, por maioria, vencido o Relator, o posicionamento para reconhecer a impossibilidade de intimação da empresa seguradora a depositar o valor do seguro garantia antes do trânsito em julgado da sentença.
Nesse cenário, impõe-se o provimento do recurso especial para, reformando o acórdão recorrido, indeferir a pretensão da Exequente, ora Requerida, de liquidar o seguro garantia antes do trânsito em julgado da sentença.” (STJ. REsp 2.077.314/SC. Pronunciamento monocrático da ministra Regina Helena Costa. DJe 26/2/2024)

Diante deste novo cenário legislativo, acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça a impactar todo e qualquer processo em trâmite, três pontos demandam maior aprofundamento: [1] possibilidade de substituição de depósito por fiança bancária ou seguro garantia; [2] como cobrar o terceiro (banco ou seguradora) em caso de não realização espontânea do depósito, quando instado a assim proceder; e [3] a decisão de mérito em desfavor do contribuinte, cujo trânsito em julgado permite a liquidação da garantia pessoal não necessariamente precisar ser em embargos à execução fiscal.

O primeiro deles nos parece corolário lógico da regra prevista no artigo 835, § 2º, CPC [5], cuja aplicação subsidiária à Lei de Execuções Fiscais está estampada em seu artigo 1º [6].

Ora, se não há vedação na lei especial, evidente que ela tem de ser interpretada à luz do comando processual geral, situação já aceita pelo próprio Superior Tribunal de Justiça [7], antes mesmo deste novel regramento sobre a impossibilidade de liquidação antecipada.

Até porque, o maior problema em se aceitar essa substituição (reconhecida, insista-se, pelo Superior Tribunal de Justiça) decorria da possibilidade de retorno ao status quo (garantia em dinheiro) mediante liquidação antecipada da garantia pessoal [8], cenário não mais possível pelo novo comando normativo anteriormente mencionado.

O segundo ponto levantado, relativo à possível dificuldade no recebimento do valor garantido pelo terceiro (banco ou seguradora), em caso de recusa em espontânea liquidação quando instado a assim proceder, passa pela espécie de garantia que estamos tratando, qual seja, pessoal ou fidejussória.

Nessa específica classe, o terceiro não apresenta um bem em garantia, mas se compromete em adimplir a dívida, com todo o seu patrimônio, caso o devedor não o faça. É uma situação similar à figura corriqueira, em âmbito civil, do aval/fiador.

Portanto, se isso chegar a ocorrer (instituição financeira, ou seguradora, recusando-se em cumprir a ordem judicial para realização do depósito), atos de constrição (penhora de ativos financeiros, por exemplo) poderão ser manejados em desfavor destes terceiros, cuja solvabilidade é inconteste [9].

Por fim, o terceiro ponto trazido também merece reflexão, para que não tenhamos conflitos desnecessários no futuro. Há muito o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que embargos à execução fiscal e ação anulatória de débito fiscal, se propostos em conjunto, geram litispendência (portanto, possuem mesmas partes, mesma causa de pedir e pedido) [10].

Ora, se tivermos uma execução fiscal em curso, garantida por fiança bancária ou seguro garantia, e, concomitantemente, uma ação anulatória voltada à invalidação, formal ou material, do mesmo crédito tributário em cobrança, evidente que será necessário aguardar o trânsito em julgado deste feito para, só então, e se o pronunciamento for desfavorável ao contribuinte, termos a liquidação de referida garantia.

Entendo, outrossim, que essa garantia pode ser manejada nos próprios autos da ação anulatória, cenário que, inclusive, afastaria a necessidade do ajuizamento da execução fiscal [11] (esse tema demanda artigo próprio, especialmente para reforçar a importância de se reconhecer determinados efeitos a essa garantia, mormente no cenário legislativo atual que impede a adoção de outros atos de cobrança, como a sua prévia liquidação, enquanto pender litígio em torno da exigibilidade do crédito tributário cobrado).

Em suma, estamos diante de um grande avanço normativo, já reconhecido como tal pelo Superior Tribunal de Justiça, a findar conflitos em torno de questões meramente procedimentais, mas de repercussões econômicas consideráveis.

De toda sorte, esse assunto não está “morto”, ele exige reflexões mais profundas (acima pontuamos apenas três delas), especialmente para que a literalidade da lei, ou a análise isolada de determinados comandos, não impliquem em novos conflitos (procedimentais, processuais ou, até mesmo, de cunho material) desnecessários diante de uma garantia que deve ser vista com bons olhos pelo credor (Fazenda Pública), já que ao final do litígio, se favorável ao Fisco, o depósito em juízo no prazo concedido, para posterior conversão em renda e extinção do crédito tributário (com ingresso de receita aos cofres públicos), é a regra.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2023-nov-19/fianca-bancaria-e-seguro-garantia-na-execucao-fiscal/.

[2] CF/88: “Art. 66 – A casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República que, aquiescendo, o sancionará.

[…] § 4º O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar do seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores.

§5º Se o veto não for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente da República.

§6º Esgotado sem deliberação o prazo previsto no § 4º, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até a sua votação final.

§7º Se a lei não for promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Presidente da República, nos casos dos § 3º e § 5º, o Presidente do Senado a promulgará, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente do Senado fazê-lo.”

[3] Tese fixada (Tema 595/STF): “É constitucional a promulgação, pelo Chefe do Poder Executivo, de parte incontroversa de projeto da lei que não foi vetada, antes da manifestação do Poder Legislativo pela manutenção ou pela rejeição do veto, inexistindo vício de inconstitucionalidade dessa parte inicialmente publicada pela ausência de promulgação da derrubada dos vetos”.

Interessante trazer à baila trecho do voto proferido pelo Ministro Relator Luiz Fux atinente ao ponto central que importa ao tema em análise: “(…) Em caso de veto parcial – como o do caso paradigma da presente repercussão geral –, a parte não vetada é desde logo promulgada e publicada, momento a partir do qual já passa a ter vigência (respeitado eventual prazo de vacatio legis). Em relação à parte vetada, abre-se nova fase do processo legislativo, relativa à manutenção ou derrubada do veto aposto. Se mantido o veto, este estará concluído, persistindo vigente apenas parte não vetada, cuja promulgação já terá se dado anteriormente. De outro lado, se derrubado o veto, o projeto será novamente enviado ao Chefe do Executivo para necessária promulgação (artigo 66, §5º), providência a ser tomada em quarenta e oito horas (§7º). Findo tal prazo sem que tenha ocorrido a promulgação da parte relativa ao veto derrubado, deverá o Presidente do Poder Legislativo fazê-lo em igual prazo, após o qual a atribuição de promulgação transmuda-se ao Vice-Presidente do Poder Legislativo (§ 7º), para o qual não há indicação de prazo específico ou de outra consequência para o caso de omissão.”

(STF. Pleno. Recurso Extraordinário n. 706.103/MG (Tese 595). Ministro Relator Luiz Fux. DJe 14/05/2020).

[4] “Nesse contexto, verifica-se que a questão ora controvertida recebeu disciplina legislativa específica e exauriente, prejudicando, assim, o prosseguimento da afetação.” (STJ. REsp 2.077.314/SC. Pronunciamento monocrático da Ministra Regina Helena Costa. DJe 06/02/2024).

[5] CPC: “Art. 835 – […]

§2º – Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento”.

[6] LEF: “Art. 1º – A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.”

[7] “…tornou-se claro que o dinheiro, a fiança bancária, bem como o seguro garantia são equiparados para os fins de substituição da penhora ou mesmo para a garantia do valor da dívida ativa, seja ela tributária ou não tributária, sob a ótica absolutamente alinhada do § 2º do art. 835 do Código Fux c/c o inciso II e § 3º do art. 9º da lei 6.830/1980, alterado pela Lei 13.043/2014…” (STJ. 1ª Turma. Recurso Especial n. 1.381.254/PR. Trecho do voto do Ministro Relator Napoleão Nunes Maia Filho. DJe 28/06/2019).

[8] “Insista-se, se me é facultado substituir o depósito em dinheiro por fiança bancária ou seguro garantia, o exercício desse direito não pode futuramente me levar ao status quo ante (via conversão destas garantias em novo depósito), sob pena de gerar uma cadeia cíclica irracional (já que sempre será possível substituir esse novel depósito por nova fiança bancária ou novo seguro garantia).

É por isso que se o devedor tem o direito de substituir o depósito em dinheiro por fiança bancária ou seguro garantia, os efeitos daquela espécie de garantia têm de restar preservados a estas, sob pena de inviabilizar tal permissão explicitada em lei, que traz a segurança necessária de satisfação do crédito em favor do exequente…” (CASTRO, Danilo Monteiro de. Os efeitos dos Embargos à Execução Fiscal e o Código de Processo Civil de 2015. In: CONRADO, Paulo Cesar [Coord.]. Processo Tributário Analítico. Vol. 3. São Paulo : Noeses, 2016, p. 293).

[9] “Não se trata, portanto, de um terceiro qualquer, tem de ser um Banco ou uma Seguradora, remunerado a figurar como fiador (em sentido amplo – já que o seguro garantia também se amolda a esse conceito de terceiro a responder, com todo o seu patrimônio, perante débito que não lhe pertence), nos moldes da legislação pertinente.” (CASTRO, Danilo Monteiro de. Garantias ao cumprimento da obrigação tributária: uma proposta de classificação partindo dos peculiares efeitos da garantia prestada em contextos tributários. São Paulo : Noeses, 2022, p. 207).

[10] “A litispendência é causa de extinção do processo (art. 267, V, do CPC/1973), não de suspensão, de modo que, na pendência de decisão na ação anulatória, eventual suspensão processual, se preenchidos os requisitos legais, opera-se no processo executivo, e não nos embargos do devedor, que devem ser extintos.” (STJ. 1ª Turma. AgInt no AgInt no AREsp 1.041.483/SP. Relator Ministro Gurgel de Faria. DJe 15/12/2017).

[11] “…não há problema algum na transformação destas garantias em efetivo pagamento, mesmo quando prestadas em ambiente antiexacional. Assim como o depósito feito em ações deste timbre será convertido em renda se, ao término da ação, o vencedor for o Estado-Fisco, similar cenário teremos se a garantia prestada, a gerar suspensão da exigibilidade do crédito tributário, for fiança bancária ou seguro garantia. Bastará intimar o terceiro (Banco ou Seguradora) para a realização do depósito e, então, convertê-lo em renda.” (CASTRO, Danilo Monteiro de. Garantias ao cumprimento da obrigação tributária: uma proposta de classificação partindo dos peculiares efeitos da garantia prestada em contextos tributários. São Paulo : Noeses, 2022, p. 221).

No mesmo sentido, vale ver artigo de Luis Cláudio Ferreira Cantanhêde, disponibilizado aqui.

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do Ibet, juiz do TIT-SP, pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do IBET e integrante do grupo de trabalho de Direito Processual Tributário do IBDP.

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