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Abrangência exagerada e menção a ilícitos prejudicam proposta de direito à desindexação

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9 de março de 2024, 9h51

Apresentado na semana passada, o relatório da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil contém previsões polêmicas sobre dois conceitos de Direito Digital que caminham juntos e estão relacionados a conteúdos na internet: os direitos ao esquecimento e à desindexação.

computador laptop notebook

Comissão responsável por revisar Código Civil sugeriu artigo sobre direito à desindexação

O direito ao esquecimento é a ideia de impedir a divulgação de informações consideradas irrelevantes ou desatualizadas. Quando aplicado à internet, isso significa remover tais conteúdos dos seus sites de origem. Já a desindexação consiste em excluir apenas das plataformas de busca (como o Google) o link que direciona para essas informações.

Especialistas no tema consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico identificam diversos problemas nas sugestões da comissão para ambos os conceitos. Eles se referem tanto à forma de incluir o assunto na legislação brasileira quanto à redação dos artigos propostos.

No caso do direito à desindexação, as principais controvérsias estão relacionadas à inclusão de ilícitos nas hipóteses de remoção do conteúdo dos mecanismos de buscas — já que a exclusão, em situações do tipo, deve ser feita não só nessas plataformas.

Outra preocupação é a grande abrangência das regras sugeridas, o que pode abrir espaço para abusos na aplicação do conceito.

Proposta

A ideia da desindexação é remover apenas o resultado dos mecanismos de busca. Com isso, o conteúdo permanece disponível no seu site de origem.

O artigo proposto pela comissão diz que um indivíduo pode pedir a aplicação desse direito com relação a links de “mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais” responsáveis por direcionar a pesquisa para “informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais ao requerente e que não possuem utilidade ou finalidade para a exposição”.

Em seguida, o texto prevê que “são hipóteses de remoção de conteúdo, entre outras”, aquelas com exposição de “imagens pessoais explícitas ou íntimas”, “pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário”, “informações de identificação pessoal dos resultados da pesquisa” e “conteúdo que envolva imagens de crianças e de adolescentes”.

Jurisprudência

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em um julgamento de repercussão geral, que o direito ao esquecimento, baseado na passagem do tempo, é incompatível com a Constituição.

A análise dizia respeito a um programa de televisão. Ou seja, a discussão no STF não abordou mecanismos de busca na internet, nem tratou do direito à desindexação. Mas, a partir da decisão do Supremo, alguns casos sobre os temas voltaram a ser discutidos no Superior Tribunal de Justiça.

O STJ, então, passou a entender que, mesmo com a decisão do STF contrária à existência de um direito ao esquecimento, pode ser aplicado o direito à desindexação.

A ideia da corte superior é que a informação, ainda que verdadeira, não traz mais benefícios à sociedade para permanecer exposta de forma tão explícita nos mecanismos de busca. Assim, é possível reduzir o alcance do conteúdo.

Formato

Desindexação se refere apenas aos links em mecanismos de busca, como o Google

Para o advogado Francisco Brito Cruz, diretor executivo do centro de pesquisas InternetLab (voltado às áreas de tecnologia e direitos humanos), a comissão que propõe alterações no Código Civil “parece trazer um tema que encontra diálogo ou repercussão em outros países para nossa realidade jurídica de uma forma que não é ideal”.

Ele acredita que o formato escolhido para resolver o problema da desindexação não é o mais indicado, pois despreza “o funcionamento de coisas que dão certo”.

Cruz se refere principalmente ao Marco Civil da Internet, que já prevê, em seu artigo 21, a responsabilização das plataformas caso não removam conteúdos de terceiros com violação da intimidade dos usuários.

Ele não é contrário a uma reforma do Marco Civil, mas considera problemático “simplesmente inventar um jeito novo de fazer, desprezando o histórico do que deu certo”.

Pertinência

O advogado Rafael Maciel, especializado em Direito Digital, não se sente seguro em dizer que a inclusão dos direitos ao esquecimento e à desindexação no Código Civil é necessária. Mas, “se fosse para incluir algo”, ele sugere prever que a desindexação é possível em determinadas situações de análise de direitos colidentes no caso concreto.

Maciel explica que, quando o conteúdo tem origem ilícita, pode ser removido na origem. E, embora o STF tenha invalidado o direito ao esquecimento “pelo transcurso do lapso temporal”, ele considera que a desindexação é relevante e necessária pela exposição indevida (e não pela passagem do tempo).

Um exemplo comum são notícias sobre pessoas investigadas ou presas preventivamente. Caso elas sejam libertadas e inocentadas, o advogado defende a possibilidade de pedirem a desindexação desses textos, devido à “exposição demasiada que os mecanismos de busca fazem em detrimento de outras informações relevantes”.

Nesses casos, “a desindexação é uma medida proporcional entre preservar o conteúdo de origem e evitar danos injustos à pessoa”.

Mas há ainda casos de ilícitos em que os usuários só conseguem recorrer à desindexação. Embora o correto, nessas situações, seja a remoção na origem, existem, por exemplo, sites estrangeiros, sem representante legal no Brasil.

Ou seja, em alguns casos, é possível que a vítima encontre apenas o caminho de solicitar a desindexação para amenizar seu prejuízo.

André Zonaro Giacchetta, advogado sócio da área de tecnologia do escritório Pinheiro Neto Advogados, entende que a inclusão do direito à desindexação no Código Civil, dentro da ideia da comissão, é pertinente porque a proposta segue a orientação das decisões mais recentes do STJ e traz segurança jurídica.

Hoje, os usuários dependem “exclusivamente da interpretação de cada juiz e de cada tribunal”, que seguem diferentes parâmetros. Assim, ter regras claras sobre o assunto “é melhor e mais saudável” do que o “casuísmo extremo” atual.

O receio de Giacchetta é que as regras fiquem desatualizadas em pouco tempo: “O cuidado com a linguagem é importante para evitar que ela fique ultrapassada com a evolução tecnológica”.

Membros da comissão de atualização do Código Civil durante reunião

Abrangência

Mesmo na opinião de quem entende ser pertinente a mudança, o texto sugerido pela comissão tem diversas falhas. Uma delas é a abrangência exagerada.

A proposta diz que a desindexação deve ser aplicada às situações listadas, “entre outras”. Cruz classifica essa previsão como “um absurdo”, pois abre a possibilidade de juízes declararem outras hipóteses.

Para ele, a redação “dá um cheque em branco para o Judiciário decidir sem parâmetro quando uma pessoa pode apagar o registro ou um resultado de uma pesquisa”.

Na sua visão, a decisão do STF sobre direito ao esquecimento teve um sentido mais amplo de que ninguém pode editar ou apagar a história. Segundo Cruz, embora o julgamento tratasse de outro tema, essa ideia também é aplicável à desindexação. Por isso, ele acha muito arriscado o uso da expressão “entre outras”.

Giacchetta concorda que a redação proposta pela comissão, como um todo, é muito ampla e geral, o que pode abrir espaço para grandes discussões. Uma delas é: o que exatamente são informações “inadequadas” e “não mais relevantes”?

“O uso de expressões abrangentes trará como consequência a necessidade de se debruçar caso a caso para saber se há ou não a caracterização do direito à desindexação.”

Um grande receio dos especialistas é que o direito à desindexação seja usado de forma abusiva, para encobrir ou reduzir a exposição de fatos importantes e relevantes.

Redação problemática

“Essas redações, ainda em anteprojeto, estão bastante imaturas”, aponta Maciel. “Elas precisam de uma discussão um pouco mais aprofundada. E justamente percebe-se uma falta de tecnicidade do próprio Direito Digital.”

Para ele, o principal problema é que o artigo proposto sobre o tema fala não só em mecanismos de busca, mas também em “websites ou plataformas digitais”. Isso pode gerar grande confusão, já que a desindexação não envolve a remoção de conteúdo nos sites de origem.

Já Cruz destaca a falta de previsão sobre eventual necessidade de ordem judicial. Segundo ele, não está claro se o direito à desindexação “é exercido mediante o acesso à Justiça”.

Na sua interpretação particular do texto da comissão, os pedidos não seriam levados ao Judiciário, mas, sim, ao próprio provedor de buscas, “gerando uma obrigação imediata de desindexação daquele conteúdo”.

Outros caminhos

Uma das hipóteses listadas para a desindexação é a de conteúdos com imagens de crianças

Cruz também considera que as hipóteses listadas pela comissão “já encontram algum tratamento, em termos diferentes, na legislação brasileira” — em sua maioria, com permissão para remoção de conteúdo de toda a internet, sem necessidade de ordem judicial.

Um exemplo é o próprio artigo 21 do Marco Civil, referente à intimidade dos usuários. Há também a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que garante ao usuário o direito de recusa ao tratamento de dados.

Assim, é possível recorrer à LGPD, por exemplo, quando o acesso a um dado pessoal do usuário é disponibilizado na internet. “Me parece que há algum tipo de operação de tratamento nesse caso”, pontua Cruz.

Na sua visão, os caminhos do Marco Civil e da LGPD, embora não se refiram exatamente às mesmas coisas, “já estão mais testados”. Segundo ele, uma reforma deveria partir do arranjo já existente, e não necessariamente criar mais opções.

Maciel concorda que parte das hipóteses listadas está mais relacionada à LGPD, pois envolve dados pessoais expostos sem finalidade. Nesses casos, o advogado também entende que a legislação “sequer precisaria de uma previsão de direito à desindexação”, pois são situações de remoção do site de origem.

“Se eu posso remover da origem, eu também posso remover o link”, explica. “Se for dado pessoal, eu tenho inclusive direito de remover pela LGPD.”

Ilícitos?

Quanto aos demais itens da lista, o advogado também acredita que não são casos de desindexação, mas de conteúdo ilícito, que deve ser removido da origem.

Giacchetta destaca a expressão “informações abusivas”. Segundo ele, se é abusivo, há ilícito. O sócio do Pinheiro Neto explica que o abuso, no caso, é diferente daquele relacionado ao direito ao esquecimento.

Neste último caso, os abusos que autorizam a análise caso a caso se referem à liberdade de expressão ou de manifestação. Já a previsão sobre desindexação se refere a qualquer abuso, sem uma definição clara.

De acordo com Giacchetta, o abuso da desindexação não necessariamente se restringe a ilícitos, mas eles estão incluídos.

“Se é um conteúdo ilícito, não é preciso aplicar nenhum desses direitos. Qualquer cidadão tem o direito de requerer a eliminação de um conteúdo que seja considerado ilícito”, aponta ele.

Outra hipótese listada é a de “pornografia falsa involuntária”

Na leitura do advogado, a proposta da comissão busca explicitar que o abuso passível de desindexação “não é só aquilo que é ilícito”.

Cruz afirma que a proposta contém termos não adequados. Por exemplo, a expressão “pornografia falsa involuntária”, que ele considera “atécnica” e “ruim”, pois atribui um sentido indevido ao conteúdo.

Segundo ele, uma imagem feita de forma artificial sobre a intimidade ou nudez de alguém não é pornografia, mas um conteúdo de exploração sexual ou que viola a dignidade da pessoa.

Na interpretação de Cruz, mesmo que a imagem seja mentirosa, uma pessoa pode ser participante da cena inventada, pois ela é retratada. Por isso, a regra do artigo 21 do Marco Civil se aplica ao caso. Ou seja, não é necessária uma ordem judicial para remover tal conteúdo.

O diretor do InternetLab também vê termos “que geram interpretações problemáticas”, pois podem abranger conteúdos que não deveriam ser removidos a partir do pedido de um usuário.

Um grande exemplo é o item “imagens pessoais explícitas ou íntimas”. Cruz indica que a palavra “explícitas” pode significar muitas coisas. Ele indaga qual seria o sentido adequado e se isso estaria limitado a imagens sexuais explícitas.

Outra redação confusa, em sua opinião, é a expressão “conteúdo que envolva imagens de crianças e de adolescentes”, que levanta diversas dúvidas:

“Qualquer imagem? Ou das crianças pelas quais a pessoa é responsável? Pode ser de qualquer criança? Se sim, não há nenhuma hipótese em que, eventualmente, uma imagem de uma criança possa ser compartilhada?”, questiona Cruz.

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