Opinião

Recomendação do MP: limites, controle e responsabilização

Autor

  • Georges Humbert

    é advogado professor e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e pós-doutor pela Universidade de Coimbra.

6 de março de 2024, 6h07

A proposta deste artigo é analisar os limites, a possibilidade de controle e a responsabilização pelos atos de expedir recomendações, pelo Ministério Público, em especial quando utilizada como instrumento de interferência em competências de gestores públicos ou empresários, muitas vezes exarada sem o devido processo legal e em desconformidade com os princípios da administração pública.

A questão posta em outros termos, como problema jurídico a ser resolvido: a Lei Complementar nº 75/1993, em seu artigo 6º, inciso XX, bem como a Lei nº 8.625/1993, artigo 27, parágrafo único, inciso IV, atribuíram o dever-poder aos membros do Ministério Público de expedir recomendação.

Tal medida extrajudicial, especialmente reiterada, mesmo contra lei, precedentes e até diante de derrota judicial da tese contra um sujeito passivo em juízo, tem limites dados pelos contornos jurídicos constitucionais e legais, pode ser objeto de controle e o membro do Ministério Público pode ser responsabilizado quando da sua expedição de forma ilícita?

Sabe-se que a mera instauração do inquérito civil abre ao Ministério Público não somente a condição de expedir recomendações, mas, sobretudo, a possibilidade de realizar ampla atividade de investigação para esclarecimento de uma situação possivelmente violadora de direitos.

No caso, a presunção da inocência é garantia que logo se evidencia. Ressalta-se a necessidade de serem respeitados “os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado sob investigação do Estado”. Entretanto, muitas vezes, sob a falsa premissa da não sindicabilidade dos inquérito e de recomendações derivadas, ou de que não teria natureza processual, insuscetível, portanto, ao devido processo legal, contraditório, ampla defesa, leva a presunção, também equivocada, da ausência de limites, controle e mesmo responsabilização daquele que conduz um inquérito e expede recomendações.

Com efeito, figurar como investigado em inquérito traz efeitos mais gravosos à imagem e à honra. Cabe ao Ministério Público buscar, obrigatoriamente, a solução do conflito da forma menos gravosa e cuidadosa.

O simples fato de figurar como investigado produz efeitos deletérios para o acusado, podendo até mesmo corroer e destruir uma boa reputação, ofendendo o seu direito à inviolabilidade da honra e da imagem, prescrita pelo inciso X, do artigo 5º da Constituição.

Garantias processuais

Ora, não pode haver dúvida de que qualquer investigação e recomendação se submete ao “permanente controle jurisdicional”, impositivo do Estado democrático de Direito, não somente pela garantia fundamental da inafastabilidade, mas por todo o rol do artigo 5° da Constituição.

Assim, da mesma forma que as investigações presididas por autoridades policiais, os inquéritos e recomendações empenhados por membros do MP também são limitados pela lei, pois não lhes foram conferidos poderes absolutos ou ilimitados ao atuarem em substituição ou em concorrência com delegados de polícia.

A investigação, o indiciamento, a recomendação, o oferecimento de uma denúncia não podem ser vistos como atos banais, porque acarretam efeitos e prejuízos morais graves nas vidas das pessoas, com consequências até maiores do que uma condenação num processo civil ou administrativo após o contraditório e a ampla defesa. A natureza administrativa do inquérito não o blinda contra as garantias processuais próprias do sistema processual penal constitucional brasileiro.

Ora, não são lícitas nem legais as manifestações proferidas pelo poder estatal, em face do cidadão, quando os atos administrativos ou judiciais se revestem de graves irregularidades que afrontam as garantias constitucionais, leis, decisões judiciais, resoluções, possibilitando disso se extrair que as regras do Estado democrático não prevaleçam  para as investigações, quer sejam elas realizadas pela autoridade policial ou por membros do Ministério público.

A honra e a dignidade do investigado

Qualquer ato investigatório, ainda mais com pedido de ampla divulgação, uso de redes sociais, coletivos anônimos e artigos em grandes mídias tradicional, traz e implica para o investigado, sua família e pessoas próximas, grande constrangimento e graves reflexos na vida social e profissional. E, de tal forma, tem-se a gravidade da intromissão na vida do cidadão por parte do poder estatal na área criminal, sendo que no Estado democrático de Direito esse poder investigatório não é ilimitado, absoluto ou infinito, tendo que se observar as regras legais.

Indubitável que os atos realizados no inquérito que afetem a imagem, a honra e a dignidade das pessoas investigadas devem ser protegidos por meio de um controle judicial. Afirmar que o inquérito civil não causa prejuízos para o investigado simplesmente porque não há imposição de sanção é ingenuidade.

Todo o procedimento realizado pelo poder público reflete na imagem da pessoa investigada — neste caso a de terceiros e do próprio advogado da parte, ainda mais se este procedimento é revestido de publicidade, já que a simples instauração do inquérito civil, pela repercussão pública que muitas vezes merece, pode causar dano grave à imagem do suposto causador da lesão a interesse difuso.

Muitas vezes, um inquérito e suas recomendações estimulam não somente sensacionalismo na mídia — que confunde a recomendação, ato meramente colaborativo e sem força normativa e judicial, com uma sentença, uma ordem, gerando, sobretudo desinformação e fake news — como servem de base para atos de adversários, inimigos, extremistas, enfim, toda sorte de interesses escusos políticos.

Spacca

Reação às recomendações

Justamente para coibir essas práticas, recentes inovações normativas, dogmáticas e jurisprudenciais — tais como reforma da Lindb (Lei federal nº 13.655/18), Lei de Abuso de Autoridade (Lei federal nº 13.869/19), possibilidade do acordo de não persecução cível (ANPC) (Lei federal nº 13.964/19, artigo 6º) e o Enunciado nº 64/2020 do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP [1]) — reforçam sobremaneira a possibilidade jurídica de trancamento judicial de inquéritos promovidos pelo Ministério Público e demais órgãos da administração pública.

Já é preocupação do próprio Ministério Público sindicar os limites, controle e responsabilização de recomendações ilícitas, dolosas, culposas, com erros grosseiros ou desrespeitando a autoridade de leis e tribunais, por exemplo. Existem previsões infra-legais da cúpula do Ministério Público admitindo a necessidade de maior atenção à posição do investigado e concedendo, com isso, maior destaque à configuração da justa causa no caso concreto. Nestes termos, a Resolução 181/2017 e a Recomendação Conjunta Presi-CN 02/2020, ambas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

A primeira inseriu na atuação ministerial o que podemos chamar de embriões do devido processo legal adequado. Consta nos considerandos da resolução que o “diploma legal não tem o condão de afastar a natureza inquisitorial das investigações preliminares, mas sim de outorgar um viés mais garantista à investigação, buscando assegurar os direitos fundamentais do investigado”.

Há aqui um claro discurso de moderação do Ministério Público para que durante a busca pela justa causa, tanto o interesse público, quanto a atenção e proteção da posição do investigado sejam adequadamente considerados e respeitados.

A segunda previsão infralegal, publicada em tom recomendatório, sugere aos integrantes do Ministério Público maiores racionalidade e eficiência em seus atos e medidas. Sem desconhecer a essencialidade do órgão para o Estado democrático de Direito, o CNMP passou a

“recomendar aos membros do Ministério Público brasileiro que atentem para os limites de suas funções institucionais, evitando-se a invasão indevida das atribuições alheias e a multiplicação dos conflitos daí resultantes”. Também que “na fiscalização de atos de execução de políticas públicas seja respeitada a autonomia administrativa do gestor e observado o limite de análise objetiva de sua legalidade formal e material.”

A falta de justa causa e o abuso de poder

O impacto desse novo espírito eficiente e racional recomendado pelo CNMP, embora não dito expressamente, certamente afetará o modus operandi de investigações como esta ora combatida. Hoje, a justa causa não se resume mais à mera demonstração de um fato típico, ilícito e culpável, com indícios de autoria e materialidade.

O agente ministerial deve otimizar os instrumentos de que dispõe para fiscalizar o interesse público, enxergando na justa causa um meio fundamental para se inserir no inquérito mecanismos de consensualidade com vistas à resolução colaborativa do conflito, sempre respeitando o devido processo legal adequado.

A ausência da justa causa afeta não apenas o inquérito, como também a validade e a eficácia de todos os demais atos e negócios jurídicos dele decorrentes, incluindo eventual acordo administrativo de não persecução cível (artigo 16, §1º, da Lei 8.429/1992) ou termo de ajustamento de conduta (artigo 5º, §6º, Lei 7.347/1985) e, claro, as recomendações.

Há, por via de consequência, que salientar-se as expressivas palavras do ministro Victor Nunes Leal quando do HC nº 42.697/GB – STF, em que defendeu que a falta de justa causa gera abuso de poder por parte do membro do Parquet:

“Tanto o substantivo abuso como o adjetivo justo são noções que não têm delimitação precisa, exata, milimétrica, incumbindo à jurisprudência, no exame de cada caso, verificar se ocorre o pressuposto da causa justa para fundamentar a restrição imposta ao paciente, ou se, ao contrário, está configurado o abuso de poder, que a qualifica como coação ilegal.”

Como aduz o jus-filósofo da era moderna Alf Ross: “O poder não é conferido às autoridades públicas para ser exercido como elas queiram, mas para ser exercido de acordo com as regras estabelecidas ou princípios gerais pressupostos”. Isso, sem dúvidas, aplica-se às recomendações exaradas pelo Ministério Público.

Considerações finais

O Estado democrático de Direito existe, surgiu, se justifica na exata medida e de modo a combater o absolutismo, justamente em razão da prevalência da lei sobre a vontade pessoal. Portanto, recomendação expedida pelo Ministério Público, com fundamento no artigo 6º, XX, da Lei Complementar 75/93, é ato administrativo enunciativo de efeito concreto, com poder coercitivo sobre seus destinatários, passível, portanto, de ser impugnada por mandado de segurança, ou objeto de Habeas Corpus, ação popular, e outros remédios constitucionais, bem como de responsabilização civil, administrativa e criminal, notadamente nos termos da lei de abuso de autoridade e, desde que diante da fixação do dolo do agente público, eventual responsabilização do servidor do Ministério Público por ato de improbidade administrativa.

Autores

  • advogado, professor, pós-doutor em direitos humanos e democracia pela Universidade de Coimbra, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade (Ibrades, e membro da Comissão de Estudos de Improbidade Administrativa do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (Ibda).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!