Opinião

Revogação da saída temporária seria retrocesso na execução penal

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5 de março de 2024, 20h52

No último dia 20 de fevereiro, o Senado aprovou o Projeto de Lei (PL) 2.253/2022, que propõe alterações na Lei de Execução Penal para, dentre outras mudanças, revogar a previsão de saídas temporárias. Com a aprovação, o PL retorna à Câmara dos Deputados, para nova votação, em razão de alterações no texto.

A matéria vem sendo apresentada como uma panaceia aos problemas de criminalidade e conta com maciça aprovação da população, aflita com as questões de segurança do país. A sua principal justificativa é o “desconforto” gerado pela alta taxa de não retorno ao estabelecimento prisional e a prática de novos crimes pelos beneficiados.

Invocou-se, nos debates parlamentares, o sentimento de impunidade do povo brasileiro, o que culminou em sua aprovação unânime na Câmara, em primeira votação, e amplamente majoritária no Senado (62 votos a favor, dois contra e uma abstenção).

No entanto, essa linha argumentativa possui severa deficiência na medida em que não encontra base empírica. Um sistema de justiça constitucional e democrático não pode se pautar em considerações subjetivas, mas em dados objetivos e critérios científicos, evitando medidas populistas.

Para a correta avaliação da proposta e de seus reflexos, é indispensável revisar os elementos jurídicos e criminológicos envolvidos, com base em dados concretos.

Tratando-se de políticas públicas relativas ao sistema prisional, devemos ter em foco o motivo da existência de penas privativas de liberdade. Por que se prende?

As finalidades atribuídas à pena pela lei são a repressão e a reincorporação do condenado à comunidade, ou seja, sua ressocialização. Não basta, assim, excluir temporariamente o criminoso do convívio social, aplicando-lhe um “castigo”.

É necessário dar incentivos e condições para que ele retorne melhor à sociedade e não volte a delinquir, sendo a saída temporária uma das formas de buscar efetividade a essa previsão, ao lado de outros “benefícios” executórios.

Há evidente contradição entre o que o ordenamento jurídico prevê (plano do “dever ser”) e a realidade do sistema penitenciário brasileiro (plano do “ser”), que é superlotado, sucateado, muitas vezes sob influência de organizações criminosas, com condições insalubres e desumanas, razão pela qual o STF reconheceu o seu “Estado de coisas inconstitucional” (ADPF 347).

Nesse contexto, a concessão de saídas temporárias é ainda mais relevante como medida de reintegração, pois permite ao preso manter vínculo com a sociedade e com a família e serve de estímulo à boa conduta no cárcere e em liberdade.

O instituto encontra correspondência em diversos países e é amplamente reconhecido como benéfico para a ressocialização da pena, evitando a reincidência. Portanto, ao menos em teoria, a saída temporária mostra-se positiva, gerando mais segurança para todos.

Desvirtuamento dos beneficiários
Para avaliar a pertinência do projeto de lei, deve-se, então, verificar se as premissas apresentadas pelos parlamentares estão corretas, ou seja, se o instituto vem sendo desvirtuado por aqueles que usufruem do benefício e se isso está resultando, ao contrário do que se propõe, em piora da criminalidade e aumento da reincidência.

Spacca

Essa análise pode ser feita a partir de dados objetivos do BNMP [1] (Banco Nacional de Monitoramento das Prisões) e do Infopen [2] (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), nos quais o CNJ e o Departamento Penitenciário Nacional sintetizam informações dos estabelecimentos prisionais do país.

De acordo com esses levantamentos, a quantidade de presos no Brasil supera 900 mil, com déficit de 200 mil vagas e mais de 360 mil mandados de prisão em aberto.

Proporcionalmente à população, o Brasil está entre os 10% dos países que mais aprisionam, sendo o terceiro país em número absoluto de presos.

Menos de metade das prisões refere-se a crimes com violência [3] e somente 34% decorre de condenações definitivas. O restante é composto por presos provisórios (45%) ou em execução provisória (21%). Não há, portanto, impunidade: prende-se muito e prende-se mal.

Quem tem direito à saidinha
Para que tenha direito à saída temporária, o preso deve estar em regime semiaberto, não ter praticado crime hediondo com resultado morte e possuir bom comportamento carcerário, dentre outros requisitos analisados por um juiz.

As saídas são de até sete dias e podem se repetir quatro vezes por ano. O magistrado também pode impor outras obrigações, como recolher-se à residência no período noturno, em endereço declarado, não frequentar bares e casas noturnas, e outras que considere compatíveis com cada caso. O descumprimento ou a nova prática de crime acarretam a imediata perda do direito e podem levar ao retorno do apenado ao regime fechado.

Os apenados em regime semiaberto — que têm direito ao benefício — cumprem pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, no qual trabalham durante o dia e permanecem em isolamento à noite. Tal regime é reservado para não reincidentes, com penas intermediárias, ou para quem, após cumprir parte da pena em regime fechado, comprove aptidão pessoal para a progressão prisional.

Em 2019, menos de 20% da população carcerária estava no semiaberto e somente uma em cada três saídas temporárias possíveis foi concedida. Logo, a diminuta população carcerária que tem acesso ao benefício já goza de relativo direito de ir e vir e demonstra evolução em seu processo de reinserção social, além de haver rigor na análise do preenchimento dos requisitos legais para sua concessão, afastando-se a falácia de que as saídas temporárias são concedidas indiscriminadamente.

O pretenso aumento da criminalidade nos períodos de saídas temporárias não encontra embasamento fático. Em sentido oposto, os dados divulgados por cidades que realizam tal controle revelam uma variação normal nos índices criminais nessas ocasiões, com pequenos aumentos ou mesmo reduções em suas taxas [4].

Também ao contrário do que se propala, é baixa a taxa de “não retorno”: dentre os Estados que divulgaram dados recentemente, os índices de evasão oscilam entre 0,78% e 5,5% [5] e a taxa de recaptura dos que se evadem é bastante alta. Em suma, os alegados malefícios das saídas temporárias não se confirmam.

Ainda que nosso sistema prisional não dê as melhores condições para atingir o fim de ressocialização da pena, a saída temporária representa importante instituto de reinserção social do condenado, incentivo a seu bom comportamento carcerário e contraestímulo à reincidência, servindo como instrumento em prol da segurança de todos. Por todas essas razões, espera-se que, após a já esperada a nova aprovação do texto pela Câmara, o presidente Lula vete o PL 2.253/22.


[1] Portal BNMP. Disponível em: https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatísticas.

[2] Infopen. Disponível em: https://dados.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias1.

[3] Infopen, gráfico. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMTMwZGI4NTMtMTJjNS00ZjM3LThjOGQtZjlkZmRlZTEyMTcxIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9.

[4] Portais do TJPI e da AGEPEN. Disponíveis em: https://www.tjpi.jus.br/portaltjpi/tjpi/noticias-tjpi/vep-divulga-dados-relativos-a-criminalidade-durante-saidas-temporarias/ ; https://www.agepen.ms.gov.br/estudo-aponta-que-nao-ha-elevacao-na-criminalidade-em-periodos-de-saidas-temporarias-de-detentos-em-dourados/.

[5] Rede Justiça Criminal. Disponível em: https://redejusticacriminal.org/entidades-se-posicionam-contra-pl-que-acaba-com-saida-temporaria-de-presos-em-regime-semiaberto/.

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