Fim das saídas temporárias: vingança pública e retrocesso social
27 de fevereiro de 2024, 7h03
Como você, pai, imbuído do desejo educacional em relação aos seus filhos, age quando se depara com um erro cometido por algum deles? Vejamos um pequeno caso hipotético:
Três filhos, João, Maria e José. Uma regra. Sempre guardar os brinquedos na devida caixa após o uso, sob pena ficar duas semanas sem o benefício do acesso à brinquedoteca.
Numa determinada época, os pais chegam à seguinte constatação: José nunca guarda os brinquedos após o uso, sendo a regra respeitada pelos demais irmãos.
Neste cenário, três opções são colocadas aos detentores do poder pátrio: 1) manter do jeito que está, fazendo vista grossa à desobediência de José; 2) alertar José sobre as falhas durante o momento de diversão e suspender temporariamente o benefício deste, mantendo o lazer dos demais irmãos ou; 3) cessar com o benefício de maneira geral, impondo a João, Maria e José, bem como a qualquer novo irmão que venha a se juntar à família, o mesmo impedimento, estendendo de forma permanente a punição que anteriormente seria destinada apenas ao indivíduo que não observou a regra pré-estabelecida.
Como você agiria?
Pois bem. Não precisa ser advogado, juiz, promotor, delegado ou ter qualquer outra posição jurídica para saber que cortar o benefício a todos os filhos (mesmo daqueles que cumprem à risca às regras) é demasiado severo, violando qualquer senso de proporcionalidade.
O exemplo ora abordado traz didática bastante interessante quando analisamos a saída temporária, consagrada pelo artigo 122 da Lei de Execução Penal (LEP) e concedida aos internos do regime semiaberto, tendo como um dos requisitos a certificação de comportamento adequado por parte da direção de onde o reeducando esteja custodiado.
No dia último dia 20, o Senado aprovou o Projeto de Lei nº 2.253/2022, restringindo o benefício a todos os presos condenados, com exceção dos que estão matriculados e frequentando efetivamente instituição de ensino [1].
Na prática, o que fora aprovado pelo Senado mantém o inciso II do artigo 122, revogando os incisos I e III, que dizem respeito à “visita aos familiares” e “participação de atividades que concorram para o retorno ao convívio social”.

Lembremos que em relação ao trabalho externo não houve alteração, já existindo regramento nos artigos 36 e 37 da LEP a respeito dessa forma de deslocamento do preso, não havendo, por isso, qualquer relação com o que fora debatido pelos senadores no último dia 20.
Sensatez ou populismo?
Sendo fixadas as premissas, passemos ao principal ponto de discussão: o posicionamento do Senado Federal representa medida sensata, atendendo aos anseios e balizas previstas no próprio Código Penal (funções retributiva e preventiva da pena, vide artigo 59) ou foi mais uma medida populista, desajustada e totalmente contrária aos objetivos previstos na própria LEP (“proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”, vide artigo 1º)?
Ora, a cada saída temporária aparelhos midiáticos noticiam a prática de eventuais delitos que tenham sido praticados por reducandos enquanto beneficiários da saída temporária.
Não são poucas as reportagens e o tempo dedicado ao fato, o que semeia a cultura sensacionalista presente nos mais variados setores da sociedade. Sobre tal circunstância, em 1957 fora sentenciado por Francesco Carnelutti na icônica obra As Misérias do Processo Penal:
“Um pouco em todos os tempos, mas no tempo moderno sempre mais, o processo penal interessa à opinião pública. Os jornais ocupam boa parte das suas páginas para a crônica dos delitos e dos processos. Quem as lê, aliás, tem a impressão de que tenhamos muito mais delitos que boas ações neste mundo. […] uma vez, a multidão para com os gladiadores que combatiam no circo, e tem ainda, em alguns países do mundo, para a corrida de touros, o processo penal não é, infelizmente, mais que uma escola de incivilização” [2].
Números
Tal cobertura midiática em épocas de “saidinha” ignora ponto que deveria ser levado à comunidade (que certamente será influenciada e consequentemente pressionará seus representantes no legislativo por mudanças nas políticas penitenciárias): o percentual daqueles que voltam a delinquir enquanto gozam do instituto é ínfimo frente àqueles que estão compromissados em se restabelecerem perante a sociedade, cumprindo fielmente o que fora estabelecido pela direção da unidade prisional e pelo juízo da execução.
Exemplo estatístico é o que ocorreu na última “saída de Natal”, em que apenas 5% dos beneficiários deixaram de regressar às unidades prisionais. Ou seja, num universo de 52 mil reeducandos, apenas 2,6 mil violaram as regras [3] (naturalmente, o número daqueles que, além de não terem retornado, voltaram a praticar delitos, é infinitamente menor).
O interessante é que existem estados como o Espírito Santo em que o índice de regresso supera os 97,5%, sendo, do ponto de vista estatístico, plenamente satisfatório.
Populismo e inconsequência
Agora vamos ao questionamento: em razão de uma minoria de indivíduos que insistem em descumprir as regras previamente estabelecidas, sendo reincidentes na prática delitiva [4], é correto extinguir o benefício e estender tal punição a toda a grande maioria dos reeducandos que vêm seguindo à risca o que fora estabelecido como condição à saída temporária? Evidente que não.
O tolhimento de um benefício tão caro ao aprendizado do reeducando que fatalmente regressará ao seio de sua comunidade não passa de uma medida populista, imediatista e inconsequente.
Se aprovado o projeto, que ainda depende crivo da Câmara dos Deputados, estaremos diante de situação análoga (óbvio que guardadas as devidas proporções) aos pais que vedam o uso da brinquedoteca a Maria, João e a eventual novo filho que venha a nascer, tudo em razão de erro praticado por José.
A partir da aprovação do projeto, aqueles que venham a praticar delidos, ingressando no sistema prisional em momento posterior à alteração legal, irão se deparar com um sistema em que o instituto da saída temporária é uma mera lembrança, havendo cerceamento de seu convívio com a comunidade em razão de erros praticados por uma minoria de condenados que antecederam seu ingresso na penitenciária.
Inserção gradual
Não fosse somente este aspecto, estamos ainda diante de possível violação constitucional, haja vista o artigo 5º, XLVI da CRFB/88, que prevê a individualização da pena (fora o próprio princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º, III de nossa Carta Magna).
Se um dia os condenados retornarão definitivamente ao convívio social, considerando a vedação constitucional à prisão perpétua no Brasil, por qual razão não ir inserindo aos poucos os futuros egressos em atividades de sua comunidade?
Quando em liberdade, não só estará em ambiente escolar e de trabalho, mas também em ambientes de lazer, praia, shopping, comércio, via pública. Se o condenado passa toda a sua pena encarcerado, tendo contato com ambientes que se distanciam e muito daqueles que ele encontrará na saída, de que forma será cumprido o objetivo de “harmônica integração social do condenado”, previsto no primeiro artigo da LEP?
Foucault já abordou o caráter histórico das penas direcionadas aos corpos dos condenados, sendo o suplício do século 18 uma forma de mera retribuição ao mal causado pelo delinquente (caráter aflitivo da pena) [5]. Porém, nossa sociedade desenvolveu-se, afastando a figura da vingança pública e migrando para o período humanitário do Direito Penal.
Conclusão
A vedação ao instituto das saídas temporárias para fins de visita à família e demais atividades que concorram para a o bom convívio social é mais um passo em direção ao retrocesso das políticas criminais, passo este cuja consequência pode ser contrária aos interesses do próprio discurso midiático.
O encarceramento em massa, ausência de condições dignas de cumprimento de pena e o tolhimento de políticas sociais voltadas à reintegração do reeducando na sociedade geram aumento nos índices de reincidência de egressos do sistema, gerando um círculo vicioso que dificilmente será resolvido com projetos de lei imediatistas e de cunho tão afastados do vasto estudo já realizado pela Criminologia Crítica [6].
[1] SENADO NOTÍCIAS. Senado aprova restrição a ‘saidões’ de presos; texto volta para a Câmara. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/02/20/senado-aprova-restricao-as-saidinhas-de-presos-texto-volta-para-a-camara. Acesso em 21 de fevereiro de 2024.
[2] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. Tradução: Antônio Roberto Hildebrandi – 3ª edição – 6ª tiragem, EDIJUR – Leme/SP – Edição 2020, p. 6-7.
[3] G1. 95% dos presos da saída de Natal de 2023 voltaram; entenda como funciona o benefício.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/02/20/95percent-dos-presos-da-saida-de-natal-de-2023-voltaram-entenda-como-funciona-o-beneficio.ghtml. Acesso em 21 de fevereiro de 2024.
[4] Inclusive, o Projeto de Lei foi modificado para prever, caso aprovado, a denominação “Lei PM Sargento Dias”, fazendo homenagem ao agente público que fora assassinado por beneficiário da saída temporária. É evidente que o caso deve ser apurado, os apontados como responsáveis submetidos ao devido processo legal e, caso reconhecida a culpa, devidamente punidos. O que não pode ser normalizado é a punição automática, geral e discriminatória de toda a população carcerária.
[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 8.
[6] Cesare Beccaria, precursor de um movimento humanitário no século XVIII, ensinou que a finalidade das penas não é trazer de volta status anterior à prática delitiva, mas sim impedir a reiteração, devendo haver incursão no espírito nos homens, afastando condutas tormentosas aos seus corpos. “Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 4. Ed ver. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 56.”
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!