Opinião

Aspectos controvertidos do fim do direito à saída temporária

Autor

  • Arthur Corrêa da Silva Neto

    é defensor público do estado do Pará e membro do Conselho Superior da DPE-PA. É coordenador-geral da comissão de execução penal do Condege membro do Conselho Penitenciário do Estado do Pará e do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária. É coautor do livro Execução Penal - Novos Rumos Novos Paradigmas. 1ª ed. 2ª tiragem rev. Manaus: Aufiero.

4 de março de 2024, 6h32

A saída temporária (doravante abreviadamente) encontra previsão legal nos artigos 122 a 125, da Lei 7.210/84, constituindo-se em um direito do preso que cumpra pena no regime semiaberto de sair do estabelecimento prisional sem vigilância direta, para fins de visita familiar, frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na comarca do Juízo da Execução e/ou participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Tal possibilidade acontece para aqueles custodiados que possuam bom comportamento e se dá cinco vezes ao ano pelo prazo de sete dias, findo o qual o preso deve retornar ao estabelecimento prisional.

Tem-se que o instituto em tela é um importante instrumento no desenvolvimento da autodisciplina da pessoa presa — sendo fundamental para quem irá experimentar o reconvívio com o meio social — e também de gestão prisional na medida em que a existência desse instituto incentiva o cumprimento das regras da prisão, a fim de em algum momento o encarcerado poder fruir desse direito.

Não obstante, recentemente, o parlamento aproveitando o PL nº 583/2011, oriundo da Câmara dos Deputados, e transformado no PL 2.253, no Senado, está em vias de produzir alterações no instituto, afastando os significativos ganhos que ele enseja.

Será apenas mantido na lei a saída para fins de frequência em cursos (cuja a oferta é pequena) e com impedimento de fruição para condenados que cumprem pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa, ou seja, uma parte ínfima do que se circunscreve o instituto atualmente.

Assim, pretende-se neste artigo analisar a aludida revogação pelo caminho das evidências e sob o prisma da constitucionalidade, haja visto que o PL busca efetivar verdadeira supressão do núcleo do direito.

Inconstitucionalidade com fim da saída temporária
Nessa medida, a partir da compreensão da necessidade de uma política criminal e penitenciária de evidências, bem como da necessidade de que leis interventivas em direitos devem observar o princípio da proporcionalidade, visa-se demonstrar não só o equivoco, mas a inconstitucionalidade que o fim da ST determinada pelo PL 2.253/2022, representa.

Suscitar a consecução de uma política criminal e penitenciária de evidências é sugerir a elaboração racional da legislação penal e penitenciária, calcada, portanto, em estudos empíricos, a fim de nos permitir confrontar êxitos e fracassos.

Com isso, para qualquer análise, deve-se considerar os dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do 1⁰ semestre de 2023 [1], os quais, apontam que apenas 6,3% das pessoas presas que fruíram do direito a saída não retornaram.

Antonio Cruz/Agência Brasil

Ademais, à luz da prática, a pequena minoria pratica crimes no período da saída temporária ou são recapturados com delitos fora do prazo.

Nesse diapasão, claramente o número de pessoas que não retornam já é ínfimo. Soma-se ainda a ausência de dados daqueles que posteriormente retornam fora do prazo sem delito ou são recapturados posteriormente sem delito.

Desse modo, o texto do relatório do senador Flávio Bolsonaro que justifica a revogação do instituto, quando assinala que “contribuirá para reduzir a criminalidade e são recorrentes os casos de presos detidos por cometerem infrações penais durante as saídas temporárias”, não se sustenta.

Tal afirmação, também pode ser confrontada a partir do recorte de gênero e de unidades da federação, pois o supramencionado relatório da Senappen [2] demonstra que há unidades da federação nas quais existe 0 (zero) de evasão masculina e feminina e outras em que há 0 (zero) de evasão feminina. Logo, sem evasão, as práticas delitivas no período de saída não acontecem, pois sequer houve não retorno.

Evasão feminina
Como exemplo em relação ao recorte de gênero, tem-se que as mulheres no Pará, onde saíram 168, e houve 0 (zero) de não retorno; Pernambuco, onde saíram 85, e houve 0 (zero) de não retorno; Maranhão, onde saíram 128, e houve 1 (um) não retorno.

Em verdade, no que toca a esse recorte apenas SP e RS terem números que pudesse ser feita alguma avaliação em relação ao que pode ser aprimorado para se reduzir o não retorno, mas absolutamente em hipótese nenhuma no que tange ao gênero feminino pode se cogitar que esse direito esteja gerando algum problema para a sociedade ou para o sistema prisional, muito ao contrário retirá-lo ou suprimi-lo, pode gerar distorções ou impactos que sequer podem ser calculados.

Outrossim, mister salientar que o magistrado da execução penal em praticamente 100% das saídas temporárias aplicam a monitoração eletrônica, mecanismo inserido por meio da Lei nº 12.258/2010 e que teve o condão de agravar a punição perpetrada pelo Estado, e agora mesmo com o reforço do acompanhamento tecnológico, ainda assim, quer-se revogar o instituto.

Nessa senda, fica latente que a possível supressão do direito, se de fato acontecer, tão somente se realizará por populismo penal.

Outrossim, estudos empíricos, como o estruturado por Daniel Nicory [3], demonstram que deve manter-se na legislação o direito à saída temporária, porquanto relevante instrumento para o sistema progressivo de pena.

Segundo o mencionado autor, o número de não retornos (evasões) de presos quando da fruição do direito em nível nacional na saída do Natal de 2011 foi de 5,3%, ou seja, de 2.300 evadidos em um total de 43.344 internos que obtiveram a autorização.

Já na casa penal analisada localizada na Bahia, Colônia Penal de Simões Filho (CPSF), considerando o período de 2010-2011, na qual foi concedida 993 saídas temporárias, tendo havido 83 evasões, o percentual de não retornos foi de 8,35% do total das concessões.

Assim pela proximidade dos números da média nacional e o fato da casa penal em análise possuir dificuldades como: ser distante de um município da região metropolitana de Salvador; está localizada em território que para chegar as opções de transporte coletivo são caras; e também ter em sua população carcerária custodiados vindos de diversas cidades do interior da Bahia.

Esses ingredientes tornam o retorno mais difícil, por isso para o objetivo da pesquisa a casa penal escolhida pelo pesquisador faz dela um universo de análise representativo de um universo mais amplo, o universo prisional brasileiro. [4]

Então, em razão dos números consignados acima, Daniel Nicory indaga: “o instituto da saída temporária, é, na prática, uma iniciativa de reintegração social bem sucedida?” [5]

Buscando responder o questionamento realizado, expõe que considerando o retorno de 91,65% dos internos em saída temporária na CPSF somente considerará insatisfatório o instituto quem assimile que seja suficiente para descredenciar o direito de “saidinha” toda e qualquer evasão.

Porém, afirma o autor que tal compreensão não é plausível na medida em que desconhece a essência humana dirigida a liberdade e que, portanto, mostra-se irremediavelmente radical. [6]

Mas, compreendendo pertinente formular uma resposta a indagação inicial, contudo de maneira racional, entendeu por bem encontrar um parâmetro de comparação.

Assim, optou por estabelecer as taxas de comparecimento e abstenção nas eleições como parâmetro para o sucesso ou insucesso do instituto da saída temporária.

O paradigma encontrado, anota o autor não ter sido arbitrário, sendo devido em função da obrigatoriedade do voto, além do que possui como ônus tão somente o eleitor se dirigir no domingo de votação a um local que tenha uma urna e votar, perdendo com isso alguns segundos.

Porém, se descumprir a obrigação, terá como sanção a restrição provisória de diversos direitos perante o Estado até que haja regularização, seja por meio da apresentação de uma justificativa ou pagamento de uma multa.

Após o manejo dos dados de forma comparativa entre as evasões na saída temporária e as abstenções nas eleições Daniel Nicory, conclui “a saída temporária é, sim, uma iniciativa bem sucedida de integração social e de exercício da liberdade e da autodisciplina”. [7]

Outrossim, evoluindo na análise, o autor passou a identificar o perfil dos poucos internos que evadiram-se, tendo feito a partir das respectivas variáveis comuns presentes na ocorrência, a fim de que se pudesse trazer à tona fatores de risco para o descumprimento do dever de retorno.

Causas da evasão
Nesse contexto, encontrou dois principais fatores de risco que entendeu poderem ser generalizados ao sistema prisional brasileiro: ser o evadido marinheiro de primeira viagem (cerca de 65% das evasões acontece na primeira e segunda saída) e ter experimentado morosidade judicial em seu processo. [8]

Entende-se, mister acrescer a análise do autor que sendo constatado que dentre aqueles que evadem, a concentração é maior na primeira e segunda saída, o que de alguma maneira é natural, pois como explicita Daniel Nicory ainda não arraigaram em si a vivência do retorno, poderia se realizar trabalho com equipe multidisciplinar com este apenado que fruirá do direito nas primeiras oportunidades e respectivas famílias que deseje participar do programa, a fim de fortalecer naquele interno o senso de autodisciplina e na família para que contribua no incentivo de retorno para a continuidade do cumprimento da pena.

Como se verifica, a revogação da “saidinha” mostra-se inadequada [9], porquanto os números demonstram ser o instituto da saída temporária uma medida exitosa, assim automaticamente demonstra a mencionada inidoneidade do meio (lei revogadora), haja vista que em nada soma ou ao menos fomenta para atingir os fins que se pretende.

Da mesma forma, fica evidenciado a desnecessidade [10] da extinção do direito, pois referido direito potencializa a própria segurança pública, quando prepara o custodiado para o reconvívio e funciona como instrumento de gestão prisional, logo, a sua supressão no anverso da moeda implicará em onerosidade ao apenado sem atingir o fim que almeja como já foi amplamente verificado.

Ademais, o STF no julgamento da ADPF 347 determinou em linhas gerais, o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sistema carcerário brasileiro, e que após a publicação do acórdão que está em vias de acontecer, seja elaborado os planos de atuação pela União, estados e Distrito Federal que será acompanhado pelo próprio STF visando solucionar o ECI do sistema prisional pátrio.

Nesse cenário, embora, se observe que nenhuma das medidas fixadas pela Suprema Corte tenha sido dirigida ao Poder Legislativo, compreende-se que, se não houver interação do legislativo para solução desse problema estrutural que é o alusivo ao sistema prisional, dificilmente haverá êxito.

Com isso, minimamente o legislativo deve se abster durante o saneamento do ECI de editar leis que tornem a legislação criminal e prisional mais rigorosa como a que consubstancia o PL 2.253/2022.

Assim, diante do que fora declinado, tem-se como inconstitucional a revogação da “saída temporária”, por ofensa a observância de uma política criminal e penitenciária de evidências.

O PL em questão desconsidera dados oficiais produzidos por órgãos governamentais, bem como pesquisas acadêmicas, além também de considerando o recorte de gênero atingir as mulheres que não se tem sequer notícia de estarem envolvidas em nenhum incidente, e igualmente unidades da federação que estão em plena normalidade sem nenhuma intercorrência.

Em verdade, a se considerar os números, a ST é uma política pública absolutamente exitosa em todo o país não podendo fatos e casos contingentes infirmarem o todo. Aqueles que mais evadem, sabe-se, são os chamados marinheiros de primeira viagem, desse modo, fazer um trabalho multidisciplinar com estes e suas famílias é a medida mais correta e não acabar com o instituto.

Por conseguinte, essa ordem de ideias atinge ao princípio da proporcionalidade [11] já que a medida interventiva no direito das pessoas que cumprem pena, por todo os fundamentos supramencionados se mostrou inadequada e desnecessária. Tal perspectiva sobreleva-se considerando o quadro de reconhecido ECI do sistema carcerário brasileiro pelo STF.

Nesse contexto, a Câmara dos Deputados deve, ao receber o PL 2.253/2022, debatê-lo de forma mais ampla, a fim de ao final rejeitá-lo, ou em sendo aprovado naquela casa legislativa, mister seja vetado pela Presidência da República.


[1] SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS – SENAPPEN/MJSP. Relatório de Informações Penais – RELIPEN. Brasília, 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2023.pdf> Acessado em: 18.02.2024.

[2] Ibid.

[3] PRADO, Daniel Nicory do. Evasões durante as saídas temporárias: estudo empírico do desempenho do instituto e do perfil do evadido. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 21, vol., 104, set.-out./2013, p. 307-346.

[4] Ibid, p. 312.

[5] Ibid, 312-313.

[6] Ibid, p. 313.

[7] Ibid, p. 317.

[8] Ibid, p. 341.

[9] Acerca dos contornos do teste da adequação conferir SILVA NETO, Arthur Corrêa da. Tornozeleira Eletrônica: análise comparada (Brasil x EUA x Portugal) dos parâmetros e limites constitucionais da utilização da monitoração eletrônica. Curitiba: Juruá Editorial, 2021, p. 47-52.

[10] Sobre o conceito do teste da necessidade cf. Ibid, p. 52-53.

[11] Tem-se neste texto a compreensão do princípio da proporcionalidade na sua versão contemporânea, relativa aos três testes, associada a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCFA), sendo marcos históricos os casos “Farmácia e Luth”, ambos de 1958, e consistindo o triplo teste na aplicação pelo tribunal, conforme aponta Robert Alexy, nas “três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), cf. Ibid, p. 46. Nesse sentido, mister destacar que embora seja adotada a expressão “princípio da proporcionalidade” a denominação “princípio” não é feita sob a concepção, por exemplo, a que alude Robert Alexy (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 2ª. tir. São Paulo: Malheiros, 2012. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã, Theorie der Grundrechte, publicada pela Suhrkamp Verlag (2006), p. 90), sendo em verdade concebido cada teste como uma regra (Ibid, p. 91 e 117, nota de rodapé 84), logo, não atendendo a medida que intervém em direito fundamental ao respectivo teste será considerada inconstitucional, é dizer, a medida interventiva tem que ser adequada, necessária e proporcional em sentido estrito.

Autores

  • é defensor público do Estado do Pará – Titular da 4ª Defensoria Pública de Execução Penal da Capital, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC); membro do Grupo de Trabalho de Alternativas Penais do CNJ (2022-2024) e conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária — CNPCP (2016-2020), conselheiro do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE/PA) no biênio 2022-2024 e conselheiro-diretor do Ibep (Instituto Brasileiro de Execução Penal) biênio 2023-2025.

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