Opinião

Revisitando a lavagem de dinheiro: está na hora de uma revisão da lei?

Autor

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

5 de março de 2024, 6h00

Nos últimos anos a política expansiva do Direito Penal abarcou uma série de condutas antes não tipificadas. Muitas dessas novas rubricas ficavam a cargo apenas do Direito Administrativo sancionador — uma espécie intermediária do Direito Penal, já que não conduz às consequências jurídicas da pena nem ao estigma de processado e/ou condenado.

Este fenômeno expansivo culminou, dentre outros delitos, na criminalização da lavagem de capitais, com uma finalidade específica de tutela de um bem jurídico não bem definido pela doutrina ou pelo legislador.

Por falta de sistematização em nosso Código Penal, a lei se encontra em legislação extravagante sem nenhum indicativo de qual o objetivo de proteção do legislador, relegando este debate a doutrina.

Veja-se que a men legis em 1998 não era a de englobar todo e qualquer delito antecedente como potencial delito gerador de lavagem de capitais.

Havia uma preocupação do legislador em criminalizar delitos antecedentes graves e de transcendência internacional, conforme se verifica na exposição de motivos da Lei 9.613/98. À época da edição da referida lei houve também a preocupação legislativa de se limitar o rol dos delitos aptos a gerar bens, direitos e valores a conduta de lavagem de capitais, (segunda geração da lei de lavagem).

Porém, já em 2012, atendendo às demandas internacionais do combate à lavagem de dinheiro, houve alteração legislativa que eliminou o rol taxativo de crimes antecedentes, possibilitando que qualquer delito que gere bens, direitos e valores possa dar vez ao crime que nos traz a este artigo.

Essa alteração impulsionou, em conjunto com a Lei 12.850, de forma significativa as imputações penais a diversos sujeitos investigados, independente de qualquer outro critério objetivo, como a lesão ao bem jurídico ou valor supostamente lavado.

Spacca

De outro lado, o rol de sujeitos obrigados a reportar atividades financeira suspeitas cresce na mesma medida das imputações, inclusive transformando determinados sujeitos em garantes do Estado (crimes comissivos por omissão).

A explicação lógica é busca desenfreada pelo controle de ativos supostamente ilícitos que ingressam no mercado legal nacional. Como a descoberta pelas autoridades não é tarefa fácil, os sujeitos obrigados transformam-se numa espécie de fiscais ou “policiais” do Estado, devendo reportar as informações de atividades financeiras suspeitas.

De acordo com Feijóo Sanchez, “é evidente que a globalização está provocando uma expansão da ‘lógica da lavagem de dinheiro’”.

“Nos anos oitenta do século passado, quando se viu a necessidade de perseguir a dimensão econômica das grandes organizações criminosas, especialmente àquelas dedicadas ao narcotráfico, os países ocidentais tomaram a seguinte decisão: como era enormemente custoso criar uma polícia financeira encarregou-se a determinados particulares os deveres de quase-policiais de prevenção ou colaboração com o Estado.”

Evidentemente que o Brasil criou seus órgãos e departamentos especializados no combate à lavagem de dinheiro, porém, isso não justifica o incremento legal dos sujeitos obrigados, pois a famosa regra do “conheça o seu cliente” tem tomado outra dimensão, inclusive diante da sanha em fazer dos advogados parte desse rol.

Sobre este aspecto já escrevi dizendo que o advogado litigante, ou seja, defensor do seu cliente em processo, não está obrigado a reportar dúvida ou suspeita sobre os valores que lhe foram entregues a título de honorários advocatícios.

Feita essa digressão, há outra questão importante: a problemática não está propriamente nos sujeitos obrigados ou no eficaz combate ao escamoteamento de capitais de origem ilícita, mas na falta de limites objetivos sobre quais delitos concretamente merecem uma reprimenda em conjunto com o delito de lavagem de dinheiro.

Dito de outro modo: nem todo delito antecedente tem uma afetação ao bem jurídico tutelado que mereça um reforço de penal através de um concurso de crimes com a lavagem de dinheiro (na modalidade de concurso material).

Em muitos casos pode acontecer o paradoxo de que a pena do delito antecedente seja inferior à da lavagem, o que levaria ao critério de que o bem jurídico tutelado seria o do crime antecedente.

Isso porque a lavagem, enquanto crime acessório, seria somente um reforço de pena ao crime antecedente. Como o objeto não é a discussão do bem jurídico no presente artigo, essa questão foi posta somente a título de crítica.

A questão central é se toda e qualquer conduta que gere bens, direitos e valores através da comissão de um crime merece a tipificação de lavagem de dinheiro. Atualmente, pela alteração legislativa de 2012 a resposta é afirmativa.

O que podemos mudar sem alterar substancialmente a lei de combate à lavagem de dinheiro?
É preciso ter em mente que não se está pregando uma abolição desta moldura penal, mas apenas uma correta adequação dentro dos critérios de lesão ao bem jurídico tutelado e proporcionalidade. Assim, a pena que já começa em três anos deveria sofrer uma adequação legislativa em relação ao bem jurídico que a norma visa proteger no crime antecedente, se a ideia é, de fato, um reforço de pena.

Na Espanha, por exemplo, a pena da lavagem de capitais começa em 6 (seis) meses e é aumentada gradativamente em relação aos crimes cometidos (delitos antecedentes).

Também pode-se elencar um fator digno de nota que seria em relação ao montante produzido pela comissão do delito prévio, que, ao não ser significante, não seria necessária uma pena de reforço alta quando da aplicação da expiação da lavagem de dinheiro.

Toda essa temática é levantada em momentos que se colocam cada vez mais latentes os anseios de combate à criminalidade econômica com medidas mais duras, porém, o incremento de penas privativas de liberdade, embora possa ser uma solução no âmbito da prevenção em sua modalidade especial, não parece ser o caminho adequado dogmaticamente.

Significa dizer que está na hora de o Brasil refletir sobre a ampliação da responsabilidade penal da pessoa jurídica para crimes econômicos. Isso talvez possa incentivar as normas de integridade, compliance criminal, cooperação com as autoridades, além de evitar penas de longa duração e determinar sanções específicas as empresas.

Muitos países já adotam essas medidas como alternativas à prisão, desde que ocorra uma efetiva colaboração das pessoas físicas e jurídicas no esclarecimento do delito praticado no seio empresarial. Essa discussão encontra detratores já que nem todos admitem que as pessoas jurídicas podem delinquir diante de sua ausência de capacidade de ação. Mas este seria um tema para outro artigo.

Nesse pequeno escrito o que se buscou foi polemizar sobre o tema da lavagem de dinheiro, inclusive provocando o legislador se não está na hora de uma revisão da lei. Claro que há muitos outros pontos para o debate, mas acredito que esse já seja um bom começo.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal no IDP-Brasília, sócio fundador do Callegari Advocacia Criminal e coordenador do Grupo Criminalistas.

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