Processo Tributário

Conflituosidade no IBS e a competência originária do STJ na EC 132/2023

Autor

  • Lázaro Reis Pinheiro Silva

    é assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça procurador do estado de Goiás em Brasília mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pelo Ibet professor do curso de extensão "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

3 de março de 2024, 8h00

Veículo de substancial transformação no sistema constitucional tributário brasileiro, a recentíssima Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, tem ensejado grande controvérsia.

Conquanto os aspectos elementares do novo modelo de tributação sobre o consumo de bens e serviços ainda dependam da edição de lei(s) complementar(es), a partir da disciplina constitucional introduzida já é possível entrever diversos pontos de tensão, cuja reflexão detida afigura-se indispensável para que a reforma possa proporcionar, efetivamente, a prometida racionalização do sistema tributário nacional.

Dentre as mudanças positivadas pelo constituinte reformador, talvez a mais disruptiva — e, também, desafiadora —, seja a substituição dos atuais ICMS e ISSQN, de competência dos estados, Distrito Federal e municípios, respectivamente, pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), mediante a atribuição, às sobreditas pessoas políticas, de uma competência tributária compartilhada, cujo ato inaugurador do processo de positivação dar-se-á, majoritariamente, mediante lei complementar a ser editada pelo Congresso, e não através de produções normativas emanadas dos seus respectivos poderes legislativos, que apenas estarão incumbidos da fixação da alíquota do imposto.

A mudança é disruptiva porque a atribuição de competência tributária compartilhada, substancialmente desguarnecida do poder para legislar sobre o tributo e dotada de exercício necessariamente integrado com as demais pessoas políticas, rompe completamente com o tradicional esquema adotado em nossa ordem constitucional para a repartição das competências impositivas, compreendidas, sobretudo, como uma aptidão para legislar sobre o tributo, bem como para promover, autonomamente, os atos necessários à sua arrecadação, fiscalização e cobrança.

Ademais, as transformações implementadas são desafiadoras, porque instauram um verdadeiro consórcio federativo para o exercício dos poderes decorrentes da atribuição de competência tributária, o qual dar-se-á de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor (CG-IBS), entidade dotada de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, e incumbida de coordenar as atividades de fiscalização, lançamento, cobrança e representação administrativa e judicial das pessoas políticas em matéria de IBS.

O paradigma de exercício integrado dos poderes inerentes à competência tributária no IBS, adotado pelos artigos 156-A e 156-B da Constituição, bem revela a tônica do princípio de cooperação convocado pelo novo § 3º do artigo 145 do texto constitucional, o qual está endereçado não apenas às relações entre Fisco e Contribuintes, mas, sobretudo, às relações e crises que inevitavelmente estabelecer-se-ão entre as pessoas políticas, tendo como foco a tributação sobre o consumo.

Conquanto a operacionalização do novo IBS esteja a pressupor efetiva atuação concertada, mediante uma frutuosa convivência federativa, cumpre não esquecer que a contingencial conflituosidade das relações jurídicas é inerente ao sistema de direito positivo, o qual, embora tenha por objetivo imediato a alteração dos comportamentos nas relações intersubjetivas, opera mediante linguagem prescritiva daquelas condutas tidas como aptas à implementação dos valores perseguidos pela sociedade, o que supõe, evidentemente, a possibilidade de descumprimento dos deveres jurídicos nelas versados.

Assim, embora se espere uma conjugação de esforços das pessoas políticas, mediante o estabelecimento de um plexo de deveres e sujeições a serem fixados pelo legislador complementar, é seguro e inevitável afirmar que os conflitos entre as pessoas políticas ou entre estas e o próprio Comitê Gestor fatalmente surgirão.

Cenário que descortina a crucial importância, para a efetividade das inovações ao sistema tributário nacional, da competência atribuída ao Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, “os conflitos entre entes federativos, ou entre estes e o Comitê Gestor do Imposto sobre bens e serviços, relacionados aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V”, constante do art. 105, I, alínea j da CR.

De plano, ao divisar-se o preceito constitucional atributivo da nova competência jurisdicional ao STJ, é inevitável estabelecer um paralelo com a competência do Supremo Tribunal Federal, constante do artigo 102, I, f da CR, para julgar

as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta.”

Tal aproximação, conquanto intuitiva, há de ser tomada com reservas, sob pena de restar irremediavelmente comprometida esta nova incumbência da Corte, essencial à edificação do novo sistema de tributação sobre o consumo de bens e serviços.

Competência
Inicialmente, parece interessante captar a lógica de se atribuir tal competência ao STJ, uma vez que, como visto, o texto constitucional já prevê uma competência originária, atribuída ao Supremo Tribunal Federal, para dirimir conflitos federativos, o que leva a refletir se as eventuais controvérsias federativas atinentes ao IBS e à CBS não poderiam ser equacionadas pela Corte Suprema.

Ocorre que, como se sabe, a nova tributação sobre o consumo de bens e serviços encontrou no texto da EC 132/2023 apenas algumas de suas linhas mestras, estando ainda a demandar definição, mediante lei(s) complementar(es), de diversos aspectos indispensáveis ao seu desenho normativo.

E, à medida em que a interposição legislativa pelo Congresso assume especial relevância no âmbito dos novos tributos, é natural que o STJ, Corte incumbida de uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional federal, também seja o foro competente para dirimir, originariamente, as controvérsias atinentes ao referido imposto, quando estabelecidas entre as próprias pessoas políticas.

A atribuição da decantada competência ao STJ, ademais de prevenir o risco de dispersão jurisprudencial, também evita o surgimento de assimetrias de tratamento entre as pessoas políticas, que certamente ocorreriam se tais demandas estivessem sujeitas a processamento perante os juízes e tribunais locais, o que se afiguraria corrosivo para o novo sistema de tributação sobre o consumo de bens e serviços, neutralizando o esforço cooperativo que necessariamente haverá de orientá-lo.

Neste ponto, aliás, temos por indispensável que a competência insculpida no artigo 105 não seja compreendida com a mesma fluidez que o STF tem empregado na interpretação do artigo 102, I, alínea f, da CR.

De há muito o STF assentou que a relação processual cujos polos sejam compostos por pessoas políticas não representa, necessariamente, conflito federativo qualificado, apto a interferir com a harmonia federativa e, portanto, suscetível de ser submetido originariamente à sua apreciação.

Ao examinar-se a jurisprudência da Corte Suprema é possível perceber significativa abertura na compreensão do que venha a ser conflito federativo qualificado.

Se, de um modo geral, perfilhou-se um entendimento restritivo, de modo a admitir-se o processamento, perante o STF, apenas daquelas demandas decorrentes de conflitos com potencial desagregador da federação, noutras oportunidades a Corte acabou por assentar sua competência em demandas de caráter predominantemente patrimonial, sem que estivesse evidente um pronunciado abalo à harmonia federativa.

Nessa linha, conquanto se reconheça ao STF uma significativa margem de discricionariedade ao definir quais relações processuais entre pessoas políticas e suas entidades da administração indireta seriam aptas a convocar o exercício da sua Jurisdição Federativa, pensamos que o mesmo espaço de apreciação não há de ser conferido ao STJ, porquanto a competência prevista no artigo 105, I, alínea j da CR, diferentemente daquela atribuída ao STF, está delimitada por um campo material específico, qual seja, o dos conflitos entre entes federativos ou entre estes e o Comitê Gestor do IBS “relacionados aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V”.

Desse modo, ao ente federativo que venha a provocar a jurisdição do STJ, mediante a tradução em linguagem jurídica — petição inicial — de um conflito com outro ente ou com o Comitê Gestor, relacionados ao IBS ou à CBS, não se poderá exigir qualquer qualidade especial da crise jurídica noticiada, bastando que ela tenha se instaurado entre os referidos entes e tenha por objeto os sobreditos tributos.

STF
Indo mais adiante, é necessário considerar ainda que, embora esteja bem delimitada a competência do STJ, não se afasta a possibilidade de que controvérsias entre as pessoas políticas, conquanto pertinentes ao IBS e à CBS, venham a ser compreendidas como conflitos federativos qualificados, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ensejando uma provável sobreposição de competências jurisdicionais.

É plausível que, em controvérsias de maior repercussão, suscetíveis de verificação em diversos outros casos, surja fundada dúvida sobre sua caracterização como um conflito federativo qualificado, descortinando-se, na mesma medida, a possibilidade de ajuizamento da demanda pela pessoa política no Supremo Tribunal Federal, e não no STJ.

É possível, ademais, que, provocado por uma das partes, o STF reconheça sua competência para solucionar determinada demanda em curso no STJ, vislumbrando potencial abalo ao pacto federativo.

A fim de viabilizar maior previsibilidade e efetividade do contencioso judicial federativo atinente ao IBS e à CBS, parece adequado que se preveja legislativamente a possibilidade de livre trânsito do processo entre as Cortes, nos moldes estabelecidos para a ação rescisória, consoante dispõe o artigo 968, § 5º e 6º do Código de Processo Civil, ou para os recursos especial e extraordinário, à luz dos artigos 1.032 e 1.033 do mesmo Código.

Ademais, será necessário o permanente diálogo entre o STF e o STJ, inclusive com a implementação de mecanismos de cooperação entre as Cortes, até mesmo porque, por se tratar de competência originária, o STJ frequentemente deparar-se-á com controvérsias de índole constitucional que, ressalvada a possibilidade de reexame pelo STF mediante recurso extraordinário, quando atendidos todos os pressupostos de admissibilidade, poderão restar definitivamente dirimidas sem apreciação pela Corte de cúpula.

Assim, ainda que a definição da Corte competente venha a se revelar nebulosa em determinados casos, sempre restará assegurada a efetividade da Jurisdição Federativa em matéria de IBS e CBS e, em última análise, do próprio modelo de competência tributária compartilhada, inaugurado pelo constituinte reformador.

Autores

  • é procurador do estado de Goiás em Brasília, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, professor do curso de extensão "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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