Opinião

Lei de Improbidade Administrativa: como o STF decide o trâmite das ações

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  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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24 de maio de 2024, 13h20

Conforme recentemente noticiado [1], o Supremo Tribunal Federal suspendeu no último dia 16 o julgamento que discute a constitucionalidade de dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), alterados pela Lei 14.230/2021. O ministro Gilmar Mendes pediu vista. O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, entendeu pela inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei de Improbidade.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Há também trechos aos quais o relator deu interpretação conforme a Constituição, e aqui residirá a discussão deste artigo. O ministro votou por dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 21, parágrafo 4º, segundo o qual a absolvição na esfera criminal, por decisão colegiada, mesmo sem trânsito em julgado, impede o trâmite da ação de improbidade. Entendeu o ministro Alexandre que só absolvições em que ficar comprovada a inexistência do fato (artigo 386, I, do Código de Processo Penal) ou que o réu não tenha concorrido para a infração (artigo 386, IV, do CPP) impedem o andamento do processo. O mesmo não ocorre, no entanto, nas demais hipóteses previstas no CPP, como a absolvição por ausência de provas.

Para o relator, entender que toda e qualquer absolvição por decisão colegiada impede o andamento das ações de improbidade, como foi estabelecido na LIA, viola a independência e a autonomia das diferentes instâncias. A lei exige decisão absolutória colegiada, independentemente do trânsito em julgado. Pois bem.

Aristóteles (2016, p. 20) [2], em “Ética a Nicômaco”, inicia seu raciocínio mencionando que as grandes questões podem ser definidas da seguinte forma: a partir ou em direção a um princípio. Aqui, iremos partir de um princípio, qual seja, de que existem alguns princípios constitucionais comuns ao que chamaremos de direito sancionador, que seria o gênero, dos quais o direito penal, o direito administrativo sancionador e o direito tributário, por exemplo, seriam espécies.

Inegável, pois, que a discussão sobre a aplicação dos princípios do direito sancionador às suas variadas espécies ganhou força após as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/21, em que se intensificou a discussão sobre a (não) aplicação das garantias constitucionais penais aos processos de improbidade administrativa.

A lógica, portanto, seria de que deve haver um maior diálogo entre estas duas espécies, quais sejam o direito penal e o direito administrativo sancionador, de modo a garantir a integridade e a coerência do direito sancionador.

Aqui, ademais, faz-se uma breve (embora necessária) digressão: conforme dito recentemente pelo professor Pedro Serrano, qualquer crítica atual às decisões do Supremo Tribunal Federal, deve-se antes fazer a crítica da crítica. Isto porque, atualmente, conforme já explicara Georges Abboud [3], costumou-se transformar o STF em um inimigo ficcional da democracia, simplificando um debate extremamente complexo, apresentando uma resposta rápida, simples.. E completamente errada para o problema. Venho, pois, nos dizeres do professor Lenio Streck, como amicu da Corte, e não como inimicu.

Continuando, conforme reputado por Andres Serra Rojas (1949, p. 1.125) [4], o instituto que se poderia denominar de direito penal administrativo, seria o que “tende ao estabelecimento das infrações administrativas, necessárias para o funcionamento da administração pública e o seu adequado regime de sanções”.

Spacca
Distingue-se do direito penal comum em função do ilícito a que visa a punir. Enquanto este almeja a prevenção e a repressão da delinquência, considerada como conduta violadora dos bens jurídicos em geral (vida, integridade física, patrimônio etc.), a administração pune, basicamente, comportamentos que infringem deveres de obediência ou de colaboração dos indivíduos para com a atividade dos entes públicos na busca do interesse geral.

O direito penal

Embora não possa configurar uma disciplina autônoma, o estudo do direito penal administrativo e, também, do direito penal econômico, cresce de prestígio à medida que se toma cada vez mais necessário o conhecimento dos parâmetros a autorizar o administrador, em nome do interesse coletivo, a submeter o particular, servidor público ou não, a consequências que sempre vêm representar um limite à sua liberdade.

Conforme Nobre Júnior (2000, p. 128) [5], a primeira indagação que se nos afigura condiz com a possibilidade ou não de aplicação dos cânones cristalizados, após larga elaboração histórica, pelo direito penal ao direito administrativo sancionador. Faz-se, pois, imprescindível indagar se os cânones, de aplicação inconteste no direito penal, também encontram guarida para modular a postura sancionatória da administração.

Neste sentido, aduz ainda Nobre Júnior (2000, p. 128) que não se duvida que crime ou delito e infração administrativa são entidades distintas em sua essência. Prova disso, portanto, são os vários critérios que foram sugeridos pela doutrina para diferençá-las, dos quais sobressai o de adorno prático, formulado por Guido Zanobini, no sentido de que a infração administrativa não integra o Direito Penal, porque a responsabilização do infrator não é tomada concreta pela função jurisdicional, mas pelo Estado no desempenho de uma competência administrativa.

Essa distinção ontológica, no entanto, não pode olvidar que, tanto no ilícito criminal como no administrativo, está-se ante situação ensejadora da manifestação punitiva do Estado, ou seja, no âmbito do direito sancionador. Segue-se, em linha de princípio, nada haver a obstar, antes a recomendar, serem os postulados retores da aplicação das punições criminais, cuja sistematização doutrinária e legislativa é bem anterior à ordenação das sanções administrativas, a estas aplicáveis.

Há necessidade, porém, de restarem sempre consideradas as peculiaridades das últimas. Em semelhante sentido, aduzem Mudrovitsch e Nóbrega (2022, p. 24) [6] que, mesmo que não se identifique o direito criminal com o direito administrativo sancionador, à falta de identidade bastante à sobreposição, não há falar em que não haja entre eles ponto de contato, sendo este ponto de contato identificado no artigo 5º, XL, da Constituição.

Neste sentido, e à luz de um pensamento principiológico que sirva de anteparo racional ao direito sancionador, aduz Nobre Júnior (2000, p. 130) que não é despiciendo sustentar que as garantias constitucionais implícitas, inerentes ao Estado democrático de direito (artigo 5, §2, CF), conduzem à aplicação, o quanto possível, dos postulados penais às fltas administrativas, sendo alguns deles: legalidade; tipicidade; culpabilidade; proporcionalidade; retroatividade da norma favorável; non bis in idem; non reformatio in pejus.

Ademais, com as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/21, estabelece a Lei de Improbidade Administrativa em seu artigo 1º, §4º, a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, que, conforme já mencionado, em paralelo com o direito penal, abrangem o conjunto do poder punitivo do Estado.

Nesse sentido, expressamente, preceitua-se atualmente que a ação de improbidade é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal (artigo 17-D), e que não se constitui de ação civil. Conforme Bezerra Filho (2022, p.107) [7], assenta-se aqui a natureza penal da sanção de improbidade, ao excluir a sua índole de ação civil para ser considerada de repressão e de penalidade.

Com efeito, aduz Bezerra Filho (2022, p. 107), tratar-se de ação cível com cunho penal diante da veiculação inegável de seus efeitos sancionatórios que são próprios da jurisdição penal em razão da perda ou suspensão de bens jurídicos tutelados pelo direito.

Essa é a posição, também, de Heraldo Garcia Vitta (2013, p. 678) [8], para quem os princípios estabelecidos para o direito penal, em especial no artigo 5º, XL, da CF, “consubstanciam ‘regramentos’ absolutos, não relativizáveis; e devidos aos valores, ou princípios constitucionais, aplicam-se na seara das sanções administrativas, decorrendo, portanto, do regime democrático de direito, e se legitimam na dignidade da pessoa humana, fundamento da República.

Direito administrativo sancionador

Não obstante, mesmo antes da Lei 14.230/21, na Rcl 41.557 (15/12/2020), o ministro Gilmar Mendes já afirmara que a Lei de Improbidade Administrativa era, de fato, uma importante manifestação do direito administrativo sancionador no Brasil. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, essa posição foi adotada no REsp 1.153.083, relator ministro Sérgio Kukina, 1ª Turma, Dje de 19/11/2014, no qual a redatora para o acórdão, a ministra Regina Helena Costa, inaugurando a divergência, defendeu a existência no direito administrativo sancionador de um princípio implícito da retroatividade da lei mais benéfica, extraído do artigo 5º, XL, da CF.

Na mesma linha, Nobre Júnior (2000, p. 69) indaga se, “sobrevindo à imposição de penalidade administrativa lei mais benéfica, ora por deixar de considerar o fato perpetrado como infração, ora por amenizar as consequências do ilícito, haverá de lograr incidência retrooperante?” A esse questionamento responde afirmativamente, argumentando que “a Constituição em vigor não deixa dúvida a respeito, asseverando ainda que o dispositivo sobranceiro, com carradas de razão frisara Régis Fernandes de Oliveira, quando ainda vigente o artigo 153, § 16, da Constituição pretérita, não tem o seu conteúdo limitado a albergar o fato criminal, abrangendo também o administrativo.

Fato é que, conforme aduzira Bezerra Filho (2022, p. 108), a repressão à improbidade administrativa objetiva a mesma reprovação aos crimes contra à administração pública, porquanto se trata de direito sancionador.

Dessa maneira, arremata Bezerra Filho (2022, p. 108) afirmando que se mostra induvidosa que as sanções por ato de improbidade são de natureza penal pela definição constitucional das penas  que  exigem  individualização  para  suas  aplicações, vez que estão inseridas no rol  da Constituição por sua própria descrição, de modo que o direito administrativo sancionador se embasa nos mesmos princípios instrumentais de controle do poder punitivo estatal, em situação idêntica aos regramentos do direito penal.

Seguindo este caminho, o §4º, do artigo 21, da LIA, incluído pela Lei 14.230/21, foi um dos dispositivos que mais inovou no ordenamento, ampliando de sobremaneira a margem de comunicabilidade/repercussão de decisões criminais sobre ações de improbidade referidas aos mesmos fatos.

Na esfera criminal, a absolvição por ausência de provas não impede o trâmite da ação de improbidade administrativa. No entanto, há vinculação a todas as instâncias nas decisões absolutórias em que seja comprovada a inexistência do fato (artigo 386, I, do Código de Processo Penal) ou que o réu não concorreu para a infração (artigo 386, IV, do CPP). Conforme já mencionado, esse foi o entendimento apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes.

Ao que se indica, a dúvida sobre a (in)constitucionalidade da referida disposição reside na sua amplitude. O dispositivo em exame faz expressa remissão ao artigo 386 do Código de Processo Penal, que estabelece as hipóteses em que o juiz absolverá o réu.

Discordando em partes do ministro relator, de imediato, entendemos ser possível verificar que as hipóteses elencadas nos incisos I, II, IV e V, do referido artigo 386, são aptas a autorizar, de maneira relativamente tranquila, a comunicação da decisão proferida no âmbito criminal para as demais esferas.

Tal diálogo se justifica porque presume o legislador que a jurisdição penal, como instrumento de ultima ratio de controle social, possui cognição mais profunda e exauriente que as demais esferas. Trata-se, pois, de uma análise sistêmica, íntegra e coerente do sistema sancionador.

Lado outro, pode-se argumentar, e acreditamos que com razão, que ao se determinar que a absolvição criminal impede o trâmite da ação  civil por ato de improbidade administrativa em qualquer das hipóteses acima, tem-se que estaria obstada a responsabilização do agente público pela prática de ato ímprobo, por  exemplo, no caso do inciso III (não  constituir o fato infração penal), sendo um contrassenso, uma vez que o fato de determinada conduta não constituir infração penal não significa dizer, necessariamente, que esta mesma conduta não estaria apta a constituir infração no âmbito do direito administrativo sancionador.

Absolvição penal não impede responsabilização

Argumenta-se neste sentido, portanto, que a norma em exame violaria o princípio da proporcionalidade, em sua vertente de proibição de proteção deficiente dos bens jurídicos (Untermass verbot), pois o constituinte veicula imperativo de tutela ao Estado na proteção da moralidade administrativa e do patrimônio público, imposição não observada, em tese, pelo legislador ordinário.

Sob outro vértice, o princípio da vedação ao retrocesso sugere que atingido determinado nível de concretização de direito fundamental não é legítima a intervenção legislativa que recue esse grau de proteção. Antes reservado ao campo dos direitos sociais, o efeito cliquet atualmente é identificado nos vários campos de interesse de tutela estatal, podendo se colher da jurisprudência da Corte Suprema, menções à vedação ao retrocesso ambiental, civil, consumerista, eleitoral, e, em especial, institucional.

Analisando o mencionado dispositivo, Bezerra Filho (2022, p. 651) aduz ser certo que a simples absolvição penal não afasta ou impede   automaticamente que se perquira a responsabilização do agente pelo ato de improbidade administrativa que lhe é imputado, devendo a comunicação das decisões serem analisadas caso a caso.

Ato contínuo, acreditamos quem um bom parâmetro resida na Rcl 57.215, julgada em 10/08/23, pelo ministro Gilmar Mendes, que trancou a ação de improbidade administrativa em andamento contra o espólio de Eduardo Campos (PSB), candidato à presidência da República em 2014, falecido em um acidente aéreo em Santos (SP) durante a campanha. Em 2012, a 2ª Turma do STF rejeitou a denúncia contra um dos acusados, o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).

Na ocasião, o Supremo assentou inicialmente que não havia justa causa para a persecução penal. A decisão, definitiva e exauriente, teve seus efeitos estendidos para o campo do direito administrativo sancionador, levando ao trancamento da ação por improbidade da qual também era alvo o senador. Na ocasião, o STF entendeu que, se não haviam elementos mínimos à instauração da ação penal, seria inviável a continuidade de ação de improbidade em relação ao mesmo contexto fático.

Ao analisar o pedido, o ministro Gilmar Mendes entendeu que se a premissa fática envolvia o mesmo contexto objeto da ação de improbidade, autorizando inferir a equivalência, simetria e dependência dos indicadores de realidade, motivo pelo qual a compreensão adotada anteriormente para o coinvestigado deveria ser estendida, havendo equivalência da causa de pedir mediata, envolvendo o liame material, o que exige resposta jurisdicional idêntica.

Em outras palavras, fez-se uma análise sistêmica, íntegra e coerente do sistema sancionador, à luz do caso concreto. Uma vez que a premissa fática envolva o mesmo contexto fático, ou seja, equivalência, simetria e dependência dos indicadores de realidade, deve haver a comunicação entre as esferas.

Por fim, e fazendo coro com o professor Georghio Tomelin [9], devemos inicialmente partir do pressuposto que o legislador, com a Lei 14.230/21, quis tentar encerrar abusos havidos na aplicação da lei de 1992 ao longo das décadas, sendo certo, pois, que os tribunais podem operar a jurisprudência vinculante e circunscrever o direito constitucional objetivo, suprimindo ou interpretando de modo conforme as normas legais. Isto é legítimo e constitucional. Contudo, isto não significa que possa o intérprete relegislar ou agir como se houvesse um terceiro turno legislativo após a sanção presidencial. Não concordar com uma lei não a torna inconstitucional. A legislação possui sua dignidade.


[1] https://www.conjur.com.br/2024-mai-16/supremo-suspende-julgamento-sobre-lei-de-improbidade-administrativa/

[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução e notas Luciano Ferreira de Souza. São Paulo: Martin Claret,2016

[3] ABBOUD, Georges. Ativismo judicial: os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional. São Paulo: Thomson Reuters, 2022.

[4] Tiende ai estabelecimento de las infraccionesadministrativas, necessarias para el funcionamento  de la Administración Pública, y a su adequado régimen de sanciones” (Derecho Administrativo: doctrina, legislacion y jurisprudencia. 4. ed. Cidade do México: Libreria de Manuel Porrua S.A.,  1949. t. 2, p. 125).

[5] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Sanções administrativas e princípios de direito penal. Revista de Direito Administrativo, v. 219, p. 127-151, 2000

[6] MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. Lei de improbidade administrativa comentada: de acordo com a reforma pela Lei 14.230/21. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

[7] BEZERRA FILHO, Aluizio. Processo de Improbidade Administrativa. Salvador: Juspodivum, 2022

[8] VITTA, Heraldo Garcia. A atividade administrativa sancionadora e o princípio da segurança jurídica. In: Rafael Valim, José Roberto Pimenta Oliveira, Augusto Neves Dal Pozzo (org.). Tratado sobre o Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 678.

[9] https://www.conjur.com.br/2024-mai-16/relegislando-sobre-improbidade/

Autores

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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