Opinião

TPI sinaliza persecução criminal de lideranças ocidentais pela primeira vez

Autor

  • Thiago Süssekind

    é advogado formado em Direito pela Uerj e membro do time de pesquisadores do grupo de pesquisa em Direito Internacional Nepedi da Uerj.

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22 de maio de 2024, 7h03

Na última segunda-feira (20/5), o procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Ahmad Khan, divulgou um comunicado à imprensa informando que o seu gabinete havia solicitado a expedição de ordens de detenção contra os líderes de Israel e Hamas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu

Os indivíduos israelenses citados são primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Defesa, Yoav Gallant. Já os palestinos são Yahya Sinwar, líder do Hamas em Gaza; Mohammed Deif, comandante-em-chefe das Brigadas al-Qassam, braço militar do grupo; e Ismail Haniya, o chefe político de todos eles, que mora no Catar.

O anúncio do gabinete da procuradoria é histórico, principalmente por marcar a primeira vez que ela requer um mandado de prisão em face de uma liderança do Ocidente na história do TPI — que ainda precisa ser aprovado pela Câmara de Pré-Julgamento I.

Em fevereiro de 2021, essa mesma câmara do TPI reafirmou a jurisdição do órgão sobre o Estado da Palestina, considerando como o seu território as fronteiras de antes de 1967 — incluindo a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e até Jerusalém Oriental. Para os juízes, independentemente do status da Palestina — se é ou não um Estado perante o Direito Internacional —, o seu processo de adesão ao Estatuto de Roma seguiu os trâmites corretos, e não seria possível superar a Assembleia dos Estados-Partes, que concordou com o novo membro.

Sendo assim, os crimes graves cometidos em Gaza de fato estão sujeitos à apreciação do TPI (artigo 4º) [1]. Afinal, o TPI pode exercer a sua jurisdição por crimes cometidos no território dos Estados-membros ou contra os nacionais daqueles que internalizaram o Estatuto de Roma (artigo 12, 2, “a” e “b”). Impende lembrar também que o standard exigido para pedir a expedição de uma ordem de detenção é “ter motivos razoáveis para crer” que o indivíduo “cometeu um crime sob a jurisdição do Tribunal”.

As acusações de crimes contra a humanidade que recaem sobre os indivíduos ligados ao Hamas, fazendo referência, em especial, aos ataques de 7 de outubro de 2023, são os de extermínio (artigo 7, 1, “b”); homicídio (artigo 7, 1, “a”); agressão sexual (artigo 7, 1, “g”), referindo-se especificamente a estupro e também a outras formas de violência da mesma natureza;  tortura (artigo 7, 1, “f”); e “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental” no contexto da manutenção em cativeiro dos reféns tomados (artigo 7, 1, “k”). Já as de crime de guerra são homicídio (artigo 8, 2, “c”, I), tomada de reféns (artigo 8, 2, “c”, III); e, especificamente no contexto do cativeiro submetido a esses reféns, estupro e outras formas de violência sexual (artigo 8, 2, “e”, VI); tortura (artigo 8, 2, “c”, I); tratamento cruel (artigo 8, 2, “c”, I); e ultrajes à dignidade da pessoa (artigo 8, “c”, II).

Os artigos selecionados para a qualificação de crime de guerra evidenciam que o gabinete da Procuradoria adotou o entendimento de que o conflito em Gaza, em geral, não é de índole internacional, como o artigo 8, “c”, particularmente demonstra. Rende uma boa discussão de Direito Internacional, já que muitos defendem que o confronto armado em questão tem sim caráter internacional. A Procuradoria justificou o posicionamento esclarecendo que, na sua visão, há um conflito internacional entre Israel e Palestina acontecendo em paralelo com uma disputa armada entre Israel e o Hamas.

No que se refere ao chefe de governo do Estado de Israel e o seu ministro da Defesa, as imputações de crimes contra a humanidade foram pelo extermínio (artigo 7, I, “b”) e/ou homicídio (artigo 7, I, “a”) de civis, incluindo por mortes provocadas pela fome; “perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado”, nesse caso por motivos nacionais (artigo 7, I, “h”); e outros atos desumanos (artigo 7, I, “k”). Além disso, outras condutas foram tipificadas como crimes de guerra, a saber: “provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra” (artigo 8, 2, “b”, XXV); “causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde” (artigo 8, 2, “b”, III) ou tratamento cruel (artigo 8, 2, “c”, I); homicídio doloso (artigo 8, 2, “a”, I ou artigo 8, 2, “c”, I); e, por fim, dirigir intencionalmente ataques contra a população civil (artigo 8, 2, “b”, I ou artigo 8, 2, “e”, I). As previsões sob o artigo 8, 2, “c” e “e” se diferenciam por serem relativas apenas aos confrontos sem índole internacional.

O ataque do Hamas em 7/10/23

Ao expor os motivos para as imputações típicas contra autoridades israelenses, Karim Khan citou o fechamento de todos os pontos de passagem na fronteira da Faixa de Gaza por longos períodos, e depois a restrição arbitrária da entrada de suprimentos essenciais, incluindo alimentos e medicamentos; bem como o corte do fornecimento de água, principal fonte de água potável dos civis palestinos. Esses atos teriam sido cometidos no mesmo contexto de outros ataques contra civis, incluindo aqueles na fila para receber comida; a obstrução ao envio de auxílio humanitário por agências humanitárias; e as mortes de agentes humanitários, que forçaram agências a interromperem ou limitarem a atuação delas em Gaza.

Crime de guerra

Chama a atenção a ausência do crime de guerra consistente em dirigir intencionalmente ataques contra bens civis — aqueles que não são objetivos militares. Um representante do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) assinalou que, para a retomada de qualquer normalidade em Gaza, seria preciso retirar 37 milhões de toneladas de destroços para permitir a construção de abrigos e, eventualmente, a reconstrução de casas. Isso porque 70% das habitações foram destruídas, ainda de acordo com o órgão da Organização das Nações Unidas (ONU). Sem contar os bombardeios contra instituições de ensino; 90% dos prédios de escolas foram atingidos e apenas 10 dos 36 hospitais de Gaza estão funcionando.

Sobre os delitos como um todo, vale destacar que crimes contra a humanidade, para serem considerados como tais, devem ser cometidos no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil, ao passo que os crimes de guerra não exigem esse requisito — um ato isolado pode constituir o delito. Além disso, enquanto a configuração do primeiro depende de os alvos serem civis, a maioria dos crimes de guerra podem ser cometido tanto contra civis quanto contra militares.

Por fim, crimes contra a humanidade podem ser praticados tanto em tempos de paz quanto de guerra, ao contrário daqueles que são específicos a contextos belicosos; e podem ter como alvo nacionais de qualquer Estado, inclusive os nacionais do próprio Estado que tiver conduzido o ataque, a depender do caso.

O crime de genocídio exige um elemento subjetivo específico, a intenção de extermínio, e por isso o standard probatório exigido para prová-lo é o mais alto de todos. Na Corte Internacional de Justiça (CIJ), que julga apenas Estados, e não indivíduos, sem a atribuição criminal do TPI, o caso da África do Sul contra Israel segue em tramitação. Os sul-africanos acusam o Estado de Israel de violar a Convenção contra o genocídio, que exige a tomada de medidas de prevenção ao delito.

Ao tomar decisão de caráter liminar, a Corte afirmou que era plausível que os direitos protegidos pelo tratado estivessem sendo violados. Um órgão não tem nada a ver com o outro, e a comprovação de mens rea, o estado subjetivo do responsável por genocídio, é uma tarefa difícil e que exige evidências robustas no Direito Penal.

Política significativa

Politicamente, uma eventual decisão pela ordem de detenção contra Netanyahu seria mais significativa que o processo na CIJ. Em primeiro lugar, pelos efeitos práticos. Pode-se observar, pela experiência de Vladimir Putin, presidente da Federação da Rússia, que essa decisão limitaria a capacidade de realizar viagens para o exterior, já que o risco de ser preso — ou então o custo de submeter um aliado ao constrangimento de desrespeitar um tribunal interacional — é alto.

Além disso, o fato de o TPI ter o poder de iniciar uma persecução criminal tanto contra Israel quanto contra o Hamas confere ao órgão mais credibilidade. Por fim, seria um evento histórico: o Tribunal ainda não atuou em um caso contra um grande aliado do Ocidente, e há muitos anos é acusado de parcialidade contra o Sul Global.

A postura do Procurador-Chefe do TPI, que é britânico, é fundamental para restaurar a reputação do órgão perante os países do grupo. Essa reputação, por sua vez, é o instrumento pelo qual o TPI pode ser efetivo – dado que, diante da ausência de uma polícia global, ele depende da colaboração dos Estados-membros para deter e extraditar os procurados pelo órgão.

Um impacto disso pode vir a ser sentido no Brasil. O governo Lula, lamentavelmente, vinha tentando driblar a ordem de detenção contra Putin para recebê-lo no encontro do G20, em novembro. Como o presidente brasileiro faz ferrenha oposição a Netanyahu, é possível que a postura do país perante o TPI mude a partir desta semana.

No passado, quando a antiga chefe do Gabinete da Procuradoria, a gambiana Fatou Bensouda, buscou investigar norte-americanos e israelenses por crimes de guerra em solo afegão e palestino, respectivamente, a reação dos Estados Unidos foi imediata e capaz de interromper as investigações por anos.

Diante das represálias, que incluíram a remoção de visto dos envolvidos na investigação e a abertura de um inquérito contra o próprio TPI, a Câmara de Pré-Julgamento II decidiu, em 2019, de modo contrário à instauração de uma investigação sobre os crimes cometidos no Afeganistão, valendo-se de um detalhe pequeno do Estatuto de Roma.

Embora a decisão tenha sido revertida pela Câmara de Apelações posteriormente, os anos decorridos acabaram se traduzindo em impunidade para os ocidentais, visto que, com a mudança de Procurador-Chefe do TPI, o escopo da investigação foi alterado para não mais apurar a tortura cometida por norte-americanos durante a guerra ao terror.

A reação, hoje, é esperada, e senadores do país já inclusive ameaçaram o TPI. Mas a administração Joe Biden, que se pronunciou, em público, “firmemente contra” a investigação de líderes israelenses, foi posta em uma sinuca de bico: o presidente sempre se posiciona a favor da “ordem internacional baseada em regras” (rules-based international order), e a reatividade diante do TPI revela uma incoerência retórica grave por parte da Casa Branca.

Ao mesmo tempo, o Reino Unido adotou posição ainda pior, já que também é parte do Estatuto de Roma: afirmou que o país não reconhece a Palestina como Estado ainda, ignorando a decisão de 2021 da Câmara de Apelações, e ressaltou que Israel não é membro do TPI — o que não faz sentido nenhum, dado que o tratado constitutivo do tribunal deixa claro que nacionais de Estados não-partes podem ser responsabilizados por delitos praticados no território dos membros.

Vale destacar ainda que o acervo decisório do Tribunal é repleto de casos que confirmam o entendimento de que a imunidade conferida a autoridades dos Estados, inclusive de chefes de Estado não-membros, em virtude do descumprimento da obrigação decorrente do Estatuto de Roma de deter e entregar os procurados pelo TPI por países que receberam o então presidente do Sudão, Omar al-Bashir.

Foram, ao todo, oito decisões somando aquelas das Câmaras de Pré-Julgamento e da Câmara de Apelações, relativas a Chade, Malawi, Congo, Djibuti, Uganda, África do Sul e Jordânia — que adotaram, por sua vez, dois caminhos diferentes para justificar o posicionamento, divididos em “avenida do Conselho de Segurança” e a “avenida do Direito Internacional Consuetudinário”.

A Câmara de Pré-Julgamento I, responsável pela apreciação dos crimes cometidos na Palestina, decidiu contra Chade e Malawi, por não prenderem al-Bashir, arguindo que “o direito internacional consuetudinário cria uma exceção à imunidade do chefe de Estado quando os tribunais internacionais procuram prender um chefe de Estado pela prática de crimes internacionais”, de modo que não haveria qualquer conflito entre as obrigações dos países diante do Tribunal e as normas costumeiras internacionais. Em outras palavras, essa abordagem reconhece “que as regras costumeiras tradicionais de imunidade se estendem ao relacionamento vertical dos Estados e cortes internacionais”, mas argumenta que foi criada uma exceção a esse respeito pela prática geral e a opinio juris.

O presidente russo, Vladimir Putin

Por fim, cabe diferenciar a postura do Procurador-Chefe do TPI no caso em tela e quando solicitou a ordem de detenção contra Vladimir Putin. O pedido de detenção do presidente russo foi mantido em sigilo até a aprovação, pela Câmara de Pré-Julgamento II, da solicitação do Gabinete da Procuradoria; ao passo que o requerimento de expedição de ordem igual contra as lideranças do Hamas e Israel foi tornado público desde o primeiro momento, e a Câmara de Pré-Julgamento I ainda precisa tomar a sua decisão, podendo rejeitar o pedido inteiro ou então amenizar as acusações. Isso talvez seja uma jogada política e midiática para exercer pressão, antecipando as reações contra o TPI.

O nível de sigilo imposto ao processo que envolve a Rússia é inédito: nem sequer a decisão com a exposição de motivos para o mandado de prisão foi divulgada, o que é grave para fins de transparência, dificultando inclusive as discussões acadêmicas sobre a temática. Normalmente, há uma decisão pública e somente alguns anexos são confidenciais, com o objetivo de resguardar as testemunhas e as evidências colhidas. Resta a torcida para que, dessa vez, a publicação dos atos decisórios seja a regra.

Karim Khan também reuniu, dessa vez, um Painel de Especialistas em Direito Internacional que respaldou a sua decisão. Ele busca se blindar de eventuais acusações de parcialidade. O Painel é composto de juristas muito respeitados no meio, a exemplo de Marko Milanovic, Amal Clooney e Theodor Meron, um sobrevivente do Holocausto que, como juiz, presidiu o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia e atuou no Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. O time de especialistas publicou um artigo conjunto para coincidir com o pronunciamento do Procurador.

Finalmente concluindo, a missão de combater a impunidade dos poderosos do TPI estava em risco: muitos países vinham ameaçando denunciar o Estatuto de Roma — isto se retirarem unilateral do tratado. Ao dar sinais de que vai buscar a persecução criminal de lideranças ocidentais pela primeira vez na sua história, sem esquecer ainda a punição dos principais responsáveis pelos atos terroristas de 7 de outubro, o TPI parece estar dando um passo fundamental para resgatar a confiança da comunidade internacional no seu compromisso com os objetivos do Estatuto de Roma.

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[1] Todos os dispositivos mencionais ao longo do texto fazem referência ao Estatuto de Roma.

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