Direto do Carf

A caminho da era digital: o plenário virtual do Carf

Autores

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

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  • Semíramis de Oliveira Duro

    é vice-presidente do Carf e da 3ª Seção de Julgamento do Carf conselheira da 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf conselheira do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo juíza do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

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22 de maio de 2024, 8h00

Embora seja o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) um órgão quase centenário, certo ter, nos últimos anos, enfrentado desafios importantes, que o instigou a se reinventar. A pandemia de Covid-19, o movimento grevista dos auditores fiscais da Receita Federal, as alterações na sistemática do voto de qualidade, para enumerar alguns desses obstáculos, levaram à consolidação de um estoque que representa margem próxima a 10% do PIB brasileiro.

Esforços foram envidados, a partir de janeiro de 2023, o que permitiu a redução do estoque de cerca de 91 mil processos para 84 mil processos em 12 meses, segundo os dados abertos do Carf [1], consolidados em 25 de abril de 2024.

Diante desse contexto, na administração desse número e demonstrando a capacidade de reinvenção do Carf, foi editado o Novo Regimento Interno (Novo RICarf), aprovado pela Portaria MF nº 1.634, de 21 de dezembro de 2023, que trouxe medidas de celeridade e transparência aos julgamentos, dentre as quais: o aumento do número de colegiados e de julgadores, a redução de oito para seis julgadores em Turmas Ordinárias e Extraordinárias, bem como a previsão para a realização de sessões assíncronas, por meio do Plenário Virtual, objeto de análise desta coluna.

Experiência prévia em sessões não presenciais

Durante a pandemia do Covid-19, diante da fragilidade da vida humana no momento da aguda crise sanitário-econômica global, o Carf foi forçado a (re)pensar os caminhos para a realização de sessões. O isolamento obrigatório obstou a realização das sessões de julgamento que, em suas Turmas Ordinárias e Câmaras Superiores de Recursos Fiscais, ocorriam, exclusivamente, de forma presencial na capital do nosso país.

Na época, valendo-se de plataforma virtual de comunicação para a realização de videoconferências, o Órgão retomou as atividades paralisadas, adequando-se à nova realidade que havia sido imposta a todo globo. Essa experiência demonstrou que, na realização de julgamentos de forma remota, há também benefícios de diversas ordens:

Spacca

(1) A substancial economia no dispêndio de recursos públicos, eis que com a realização de sessões virtuais, desnecessário o gasto com despesas decorrentes de deslocamentos dos Conselheiros;

(2) Os contribuintes e patronos também deixaram de arcar com os custos de deslocamento para acompanhamento das sessões de julgamento ou realização de sustentação oral; e,

(3) Os impossibilitados de se locomoverem por motivos médicos, familiares, dentre outros, foram beneficiados, uma vez continuaram no exercício de suas funções dentro de suas respectivas residências.

Vê-se o êxito da experiência: após 95 anos de sua existência, conseguiu o órgão se transformar para viabilizar a realização de sessões não presenciais.

Novas tecnologias

Desde o século 19, assiste-se ao recrudescimento do fenômeno da globalização, evidenciando a necessidade de constantes inovações tecnológicas para o aprimoramento das atividades [2], não permanecendo o Carf estanque diante das novidades trazidas nesta era digital. Tal fato, atrelado à necessidade de atualização e incremento nos procedimentos relacionados ao julgamento não presencial, levaram ao projeto de desenvolvimento do Plenário Virtual do Carf, em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).

O Novo RICarf, aprovado pela Portaria MF nº 1.634, de 21 de dezembro de 2023, trouxe a previsão do Plenário Virtual, mudança essencial atrelada ao desenvolvimento de novas tecnologias e em consonância com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 16 da Organização das Nações Unidas (ONU), que visa “(…) proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis” [3].

A experiência do Plenário Virtual do STF [4]

Muitas foram as críticas proferidas em face da inovadora modalidade de julgamento, quando da sua implementação no âmbito da Corte Constitucional brasileira [5]. A despeito delas, a realidade – sinalizadora da existência de agigantado estoque, de pautas travadas e de lapso temporal substancial para apreciação dos processos – impôs-se. O modelo, previsto desde 2007, no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que veio a ser implementado 13 anos mais tarde, consolidou-se na mais alta corte do país.

Dentre as principais vantagens do Plenário Virtual do STF, é possível citar as seguintes [6]:

(1) Desnecessidade de suspensão dos trabalhos, em situações semelhantes à experimentada com o Covid-19;

(2) A redução das formalidades de praxe no âmbito do Pretório Excelso;

(3) A celeridade no julgamento e maior liberdade de escolha, para os ministros e ministras, acerca do momento para a confecção de seus votos e apreciação daqueles na qualidade de vogal; e,

(4) A desnecessidade de apresentação de declaração de voto, na hipótese em que aderida à posição do relator, algo pouco frequente nos julgamentos presenciais do STF, o que “reduz a quantidade de votos e permite chegar a uma posição institucional de forma mais simples” [7].

Logo, é de fácil constatação o avanço que o Plenário Virtual representou em termos de celeridade nos julgamentos ocorridos no STF.

No contencioso administrativo fiscal, no qual já impera o princípio da formalidade moderada, segundo o qual há de ser adotadas “formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito ao direito dos administrados”ex vi do inciso IX do parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 9.784/99 –, o Plenário Virtual representa também uma mudança de paradigma rumo ao aumento da eficiência nos julgamentos administrativos.

Passará o Carf a contar, assim como o Supremo Tribunal Federal, com um Plenário Virtual.

Plenário Virtual do Carf

O artigo 92, do Novo RICarf, prescreve que as sempre públicas reuniões poderão ser realizadas na modalidade síncrona, empregada desde os primórdios do conselho, e na novel modalidade assíncrona, “por meio do depósito de relatório e votos em sistema eletrônico, aprovado e regulamentado por ato do Presidente do Carf” – cf. §§1º e 2º.

Nas sessões síncronas, os conselheiros do Carf participam de maneira simultânea nas sessões de julgamento, nas seguintes formas, nos termos do §1º, do artigo 92, do Novo RICarf:

(1) presencial (todos no mesmo espaço físico);

(2) não presencial (todos participam por meio de videoconferência ou tecnologia similar); e,

(3) híbrida (há a participação tanto de forma presencial como não presencial dos integrantes do colegiado).

Por sua vez, as sessões assíncronas serão realizadas no Plenário Virtual, no qual, em tempo real, será possível acompanhar o teor do relatório e voto do relator, dos demais conselheiros, a votação e o resultado do julgamento, que serão postos no sistema eletrônico, disponíveis para visualização pública, desde o início da reunião de julgamento – ex vi dos §§ 2° e 3º do artigo 92 do Novo RICarf.

O artigo 103 do Novo RICarf, ao seu turno, assegura o direito à sustentação oral dos patronos, de quinze minutos em arquivo de áudio ou de áudio e vídeo, também postada no sistema eletrônico e disponível publicamente, bem como o envio de memoriais.

A utilização do Plenário Virtual poderá ser feita por qualquer colegiado do Carf, desde que observadas as regras dos artigos 93 e 94, ambos do Novo RICarf.

Dessa forma, nos termos do §1º do artigo 93 do Ricarf, em reunião síncrona, presencial ou híbrida, ou no caso de Turma Extraordinária, em reunião síncrona na forma não presencial, serão julgados os processos com tramitação prioritária [8]; e, os que tratem de exigência de crédito tributário de valor igual ou superior ao determinado em ato do presidente do Carf ou os relativos a outras hipóteses previstas também em ato do seu presidente – vide artigo 94.

Da leitura da Portaria Carf/MF n° 8, de 4 de janeiro de 2024, alterada pela Portaria Carf/MF n° 416, de 12 de março de 2024 e da Portaria Carf/MF n° 9, de 4 de janeiro de 2024, alterada pela Portaria Carf/MF n° 420, de 12 de março de 2024, temos atualmente a seguinte situação: até 30 de junho de 2024, serão julgados, em sessão síncrona, os processos com valor igual ou superior a R$ 60 milhões pela 1ª Seção de Julgamento;  pela 2ª Seção de Julgamento, aqueles que ultrapassem R$ 7,5 milhões; e, os que superem R$ 30 milhões, cuja competência repousa na 3ª Seção de Julgamento.

Por sua vez, serão julgados em reunião assíncrona, preferencialmente, os processos de Turmas Extraordinárias, que apreciam, em regra, os processos de até dois mil salários mínimos – vide artigo 65, do Novo RICarf – [9], e aqueles não classificados nas hipóteses previstas acima para as reuniões síncronas [10].

O artigo 104 prevê ainda possibilidade de requerimento para exclusão de recurso da reunião assíncrona, nos casos de controvérsia jurídica relevante e disseminada (§3º do artigo 16, da Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020), ou de elevada complexidade de análise de provas. São legitimados para requerer o julgamento em reunião síncrona:

(1) o Relator, antes de aberta a reunião;

(2) qualquer outro Conselheiro [11]; ou,

(3) as próprias partes, dentro do prazo para apresentar sustentação oral, vindo o pleito a ser decidido pelo presidente da Turma.

O procedimento das sessões assíncronas é previsto no artigo 105 do Ricarf, que envolve: a disponibilização de ementa, relatório e voto, sustentações orais e memoriais, no início da reunião; a manifestação dos votos dos demais conselheiros até o final do período da reunião assíncrona; o cômputo dos votos à medida da apresentação; pedido de vista admitido na primeira reunião assíncrona; a proclamação do resultado do julgamento tão logo proferidos todos os votos, independentemente do fim do período da reunião assíncrona; a transferência do julgamento para sessão síncrona nas hipóteses previstas nos §§  6° e 7° do artigo 105 do Ricarf.

Digna de nota é a medida de obrigatoriedade de explicitação das razões de decidir, sempre que o Conselheiro acompanhar ou divergir do relator pelas conclusões, conforme o §4º do artigo 105, §§8º e 9º do artigo 114 e §10 do artigo 133 do Novo RICarf. Isso porque, imperioso que sejam os julgadores capazes de não só de explicar como também justificar suas decisões, em sintonia com o ordenamento jurídico [12], em garantia da devida motivação das decisões, corolário da segurança jurídica.

O que o futuro reserva

Parece ser bem verdade que “[t]oda boa ideia passa por três etapas: primeiro é ridicularizada, depois é violentamente antagonizada e por último é universalmente aceita como autoevidente” [13]. Sequer entrou o modelo em funcionamento e críticas têm sido prematuramente postas quanto ao Plenário Virtual do Carf. O momento é de cautela para apreender a realidade que ora se descortina, cujos mecanismos nem ainda são apreensíveis aos nossos olhos, porquanto o sistema permanece em desenvolvimento, na parceria firmada com o Serpro.

Se tudo correr bem, a expectativa é que o Plenário Virtual comece a funcionar já no segundo semestre deste ano. A torcida é que seja a experiência no Carf – assim como foi no STF – exitosa, porquanto tem a ferramenta vocação para gerar redução do acervo de feitos e minorar a temporalidade geral do iter processual no âmbito do contencioso administrativo fiscal em 2ª instância. Mormente quando, em consulta aos Dados Abertos do Carf, conclui-se pela existência de substancial acervo de baixa complexidade e valor pendente de julgamento: cerca de 20.540 processos trazem exigências tributárias inferiores a R$ 84,7 mil.

Quiçá, negligenciam os precoces críticos as prescrições dos artigos 104 e 105 do Novo RICarf, do Ricarf, que versam sobre a transferência do julgamento de processos para a sessão síncrona. Tais dispositivos representam, em justa medida, o atendimento aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Quando inexistirem obstáculos operacionais para o funcionamento do Plenário Virtual do Carf, comprovar-se-á ser a ferramenta capaz de potencializar os esforços no cumprimento do papel fundamental do órgão: julgar os litígios tributários com imparcialidade, celeridade, eficiência e transparência.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido por suas colunistas.

 


[1] Disponível em: https://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-2024/dados-abertos-202404-final.pdf. Acesso em: 20 maio 2024.

[2] Nesse sentido: CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. Malden, EUA: Wiley-Blackwell 2010 (The information age: economy, society, and culture, v. 1), p. 101.

[3] Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/16>. Acesso em: 10 abr. 2024.

[4] As colunistas agradecem ao caríssimo colega Lucas Bevilacqua por ter, gentilmente, compartilhado achados sobre o funcionamento do Plenário Virtual do STF, que foram de grande valia para a confecção deste texto.

[5] ADAMY, Pedro. Plenário virtual em matéria tributária: déficit deliberativo e violações constitucionais. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 46, p. 512-533, 2020. Disponível em: <https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/1113/35>. Acesso em: 10 abr. 2024.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Segundo o dispositivo, a tramitação prioritária refere-se aos processos que contenham circunstâncias indicativas de crime, objeto de representação fiscal para fins penais; com preferência tenha sido requerida pela PGFN ou pela Receita Federal do Brasil. O art. 86, do RICARF, dispõe de outras hipóteses de processos prioritários, não citadas no art. 93.

[9] As Turmas Extraordinárias julgam, preferencialmente, recursos voluntários relativos à exigência de crédito tributário ou de reconhecimento de direito creditório, até o valor em litígio de dois mil salários mínimos, assim considerado o valor do principal mais multas ou, no caso de reconhecimento de direito creditório. E processos que tratem: de exclusão e inclusão do Simples e do Simples Nacional, desvinculados de exigência de crédito tributário; de isenção de IPI e IOF em favor de taxistas e deficientes físicos, desvinculados de exigência de crédito tributário; e, exclusivamente, de isenção de IRPF por moléstia grave, qualquer que seja o valor.

[10] Enquanto não estiver em funcionamento o Plenário Virtual, as reuniões assíncronas serão realizadas apenas pelas Turmas Extraordinárias, no rito sumário e simplificado de que trata o art. 132, do RICARF.

[11] O requerimento por Conselheiro, após iniciada a reunião, caso deferido, será convertido em pedido de vistas e o julgamento continuará em reunião síncrona.

[12] RAWLS, John. Political liberalism: expanded edition. Nova Iorque: Columbia University Press, 2005 [e-book].

[13] SCHOPENHAUER, Arthur Apud WAHL, Peter. From concept to reality: on the present state of the debate on international taxes. Friedrich Ebert Stiftung Briefing Paper, jun. 2006, p. 8. Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/iez/global/50422.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2024.

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.

  • é vice-presidente do Carf e da 3ª Seção de Julgamento do Carf, conselheira da 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf, conselheira do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo, juíza do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

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