Público & Pragmático

Benefícios e pressupostos do julgamento antecipado na Lei Anticorrupção

Autores

  • André Castro Carvalho

    é bacharel mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo com estudos em nível de pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology - MIT (em 2016) e na Faculdade de Direito da USP (2017-2018) professor de pós-graduação e educação executiva em diversas escolas de negócios como Insper Ibmec-SP Trevisan FIPE FIA e Fipecafi ex-vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (2019-2023) e atualmente membro do seu Comitê de Ética membro de Comitê de Auditoria em duas companhias em São Paulo consultor e advogado em São Paulo.

  • Daniel Falcão

    é controlador geral do município e encarregado pela proteção de dados da Prefeitura de São Paulo advogado cientista social professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor mestre e graduado pela Faculdade de Direito da USP pós-graduado em Marketing Político e propaganda Eleitoral pela ECA/USP e graduado em Ciências Sociais pela FFLCH/USP.

  • Eri Rodrigues Varela Filho

    é advogado do Barral Parente Pinheiro Advogados graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP).

  • José Mauricio Linhares

    é mestrando FGV-SP coordenador de de Promoção a Integridade da Controladoria Geral do Município de São Paulo pós-graduado em Direito Penal Empresarial e Criminalidade Complexa no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e membro do Comissão de Governança e Integridade OAB-SP.

28 de janeiro de 2024, 8h00

O combate a ilícitos econômicos e financeiros costuma sofrer críticas em razão da falta de celeridade, o que pode levar a uma percepção de injustiça por parte da sociedade, que acompanha os escândalos divulgados pela imprensa, mas acaba não vendo, pari passu, o enforcement das respectivas regras.

Tendo em vista este contexto, o Brasil, por meio da Lei Anticorrupção (Lei 12.846, de 2013), introduziu no ordenamento jurídico o acordo de leniência e, desde então, tem-se visto uma proliferação de mecanismos de soluções consensuais e de autocomposição de litígios no âmbito da aplicação do Direito Sancionador.

A iniciativa brasileira, cumpre mencionar, é parte de um esforço multinacional contra a corrupção, incluindo acordos e tratados no âmbito de organismos internacionais, como a Convenção da ONU contra a Corrupção, de 2003, e também, a introdução de normas nacionais sobre o tema em diversos países, como o Bribery Act do Reino Unido, que entrou em vigor em 2010 [1].

Pois bem, o acordo de leniência é um instrumento jurídico consensual que as pessoas jurídicas podem firmar, admitindo, destarte, a prática de algum ato ilícito e, ao mesmo tempo, comprometendo-se a cessar com a ilicitude, além de colaborar com a investigação e com a acusação no desenrolar do processo resultante, bem como implementar melhorias organizacionais em termos de compliance.

Requisitos e incentivos da leniência
Assim, sumarizando, conforme o artigo 37 do Decreto Federal nº 11.129/2022, o acordo de leniência possui cinco requisitos: (1) que a pessoa jurídica seja a primeira a notificar o interesse na cooperação relativa ao conhecimento do ato ilícito e seus aspectos peculiares; (2) que a pessoa jurídica cesse sua participação no ato infracional desde a propositura do acordo; (3) a admissão de sua responsabilidade objetiva na ilicitude; (4) a colaboração plena e permanente na investigação e no processo administrativo, com o fornecimento de documentos e informações, inclusive com a identificação de outros participantes quando for o caso e (5) a reparação integral do dano (6), isto é, perder, em favor do ente lesado ou da União, conforme o caso, os valores correspondentes ao acréscimo patrimonial indevido ou ao enriquecimento ilícito direta ou indiretamente obtido da infração, nos termos e nos montantes definidos na negociação.

Para as pessoas jurídicas beneficiárias da leniência, o grande interesse está em mitigar os impactos decorrentes do cometimento do ato ilícito. Conforme a Lei Anticorrupção, o Acordo de Leniência ainda implica a necessidade de reparar o dano, mas possibilita a redução da multa em até dois terços e isenta o signatário das sanções de publicação extraordinária da condenação e da proibição de contratar com o poder público (previstas, respectivamente, no inciso II do art. 6º e no inciso IV do art. 19 da Lei Anticorrupção).

Para o poder público, a leniência facilita a detecção de ilicitudes e a responsabilização dos agentes envolvidos, ao mesmo tempo que permite, de maneira acelerada, reaver os valores dos danos causados e a aplicação de multa, embora reduzida.

Ademais, claramente facilita a responsabilização dos praticantes de atos ilícitos, especialmente a partir da cooperação de um dos partícipes, e ajuda a estabelecer um ambiente propício para o estabelecimento de programas de integridade, de modo que as empresas possam detectar suas irregularidades quando ocorrerem e serem as primeiras a notificar o poder público.

Há, desta maneira, um fator econômico bastante relevante nos incentivos dos acordos de leniência para os entes públicos [2], associado com a busca de efetividade e eficiência na persecução sancionadora [3].

Antes e depois da “lava jato”
Decorridos dez anos da positivação do acordo de leniência, já é possível notar que a figura se popularizou, sobretudo, claro, com sua utilização no contexto da investigação do maior escândalo de corrupção da história do país, a “lava jato”. Neste contexto, empresas envolvidas no escândalo firmaram acordos de leniência que, somados, representaram a obrigação do pagamento de mais de R$ 11 bilhões [4].

No tocante a este assunto, é necessário mencionar a decisão recente do ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, que declarou a imprestabilidade de todas as provas obtidas no bojo do acordo de leniência firmado pela Odebrecht, em razão da parcialidade no procedimento de sua obtenção, sendo que a “lava jato”, segundo o ministro, era um projeto de poder travestido de combate à corrupção [5]. É possível que esta decisão, juridicamente, usada como base para contestações de Acordos decorrentes da operação [6].

É interessante, neste diapasão, refletir sobre como isso poderá afetar as empresas, haja vista que a cooperação no processo, inclusive o fornecimento de documentos e informações que auxiliem na condenação dos demais envolvidos, é parte integral e necessária para a validade do acordo de leniência. Com base nesta decisão do STF, o TCU decidiu averiguar se havia processos em que as penalidades estavam suspensas pelo acordo, mas que poderiam ser agora executadas, enquanto que uma das empresas, o Grupo Odebrecht, peticionou ao ministro Dias Toffoli solicitando que se mantivessem os direitos e garantias acordados, uma vez que as irregularidades detectadas não são de sua responsabilidade [7].

Ainda sobre acordos de leniência, percebe-se um elemento de complexidade no arranjo institucional brasileiro decorrente da multiplicidade de agentes que podem transigir. É possível, exempli gratia, que uma pessoa jurídica seja apta, pelo mesmo ato, a firmar acordo de leniência com a CGU – órgão competente no âmbito do Executivo Federal – e com o Cade – órgão competente em infrações contra a ordem econômica. A quem deve o infrator recorrer então?

“Balcão único”
Tentando resolver esta situação, a CGU, a AGU, o Ministério da Justiça e o TCU assinaram, em 2020, um Acordo de Cooperação Técnica na tentativa de estabelecer um “balcão único” para acordos de leniência, pensando em um procedimento de negociação conjunta ou coordenada dos órgãos [8]. Aliás, a mesma CGU assim fez outro acordo em 2023 com o Cade [9].

Ante a falta de resposta legislativa, um arranjo institucional parece ser uma via de endereçar esta problemática. Ainda assim, embora louvável, a iniciativa ainda não é suficiente, pois ainda há organismos que são relevantes em negociações de acordos de leniência, como o os Ministérios Públicos, que não estão incluídos.

Julgamento antecipado
Compreendida a opção do acordo de leniência e as suas inseguranças jurídicas, é imperativo apresentar outra espécie de resolução consensual, disponível para aqueles que não são aptos para a leniência ou que preferem não ter que enfrentar as incertezas do acordo de leniência, a saber, a figura do julgamento antecipado.

O julgamento antecipado foi introduzido pela Portaria Normativa da CGU 19/2022, estando disponível no âmbito de Processos Administrativos de Responsabilização instaurados ou avocados pela CGU.

Ao pleitear o julgamento antecipado, a pessoa jurídica deve: (1) admitir responsabilidade objetiva pelos atos lesivos investigados; (2) apresentar provas e informações de que tenha conhecimento; (3) comprometer-se a ressarcir os valores do dano causado; (4) perder a vantagem auferida com o ato ilícito; (5) pagar a multa correspondente prevista na Lei Anticorrupção; (6) desistir de ações judiciais relativas ao processo administrativo e (7) concordar em não apresentar peça de defesa nem interpor recurso administrativo contra julgamento que defira os termos do julgamento antecipado.

Assim como no acordo de leniência, o julgamento antecipado concede a seu beneficiário a isenção da publicação extraordinária da condenação, o que já ajuda a mitigar o risco reputacional, haja vista a resistência das empresas em proativamente quererem divulgar que foram condenadas sob a Lei Anticorrupção [10].

Porém, não há isenção das sanções impeditivas, que há na leniência, nem redução da multa, que ocorre na ordem de dois terços na leniência. No julgamento antecipado, há somente aplicação de atenuantes levando em conta a fase do PAR em que a proposta foi apresentada, a postura colaborativa na identificação, investigação, comprovação e prevenção de novos ilícitos.

Diferenças
De forma geral, percebe-se, pois, que o julgamento antecipado se diferencia do acordo de leniência tanto por não estar disponível somente ao primeiro a se apresentar, como por ser restrito ao âmbito de PARs e à CGU, assim como por trazer benefícios menores, entretanto, mais céleres às pessoas jurídicas envolvidas. Ainda assim, as motivações fundamentam-se nas mesmas razões para ambas as modalidades de acordo.

É importante notar que o instituto do julgamento antecipado tem se expandido, o que é demonstrado pela Instrução Normativa da CGM-SP 2/2023, a qual introduziu esta resolução consensual no âmbito de sua atuação no Município de São Paulo, nos mesmos moldes daquela existente no âmbito federal.

Essa figura se aproxima, ainda, de acordos firmados por outras autoridades federais, como o Termo de Compromisso de Cessação do Cade e o Termo de Compromisso da CVM – cada uma adaptada à realidade fática e processual à qual precisam responder.

Diante de todo o exposto, é notório que a utilização de formas consensuais no âmbito do direito sancionador tem crescido e se desenvolvido, tudo com o fito de permitir alternativas vantajosas ao Poder Público. Neste contexto, destaca-se o julgamento antecipado pelo fator novidade, com sua previsão ocorrendo apenas a partir de 2022, como uma forma de tornar a justiça menos custosa e mais célere. Com isso, as empresas têm mais um mecanismo à sua disposição para quando estiverem envolvidas em processos administrativos que apurem atos de corrupção e suborno.

 


[1] VARELLA, Marcelo Dias; ALENCAR, Carlos Higino Ribeiro de; VIANNA, Marcelo Pontes. Quando mais é menos: arranjos institucionais e acordos de leniência anticorrupção no Brasil. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 59, n. 233, p. 35-59, jan./mar. 2022.

[2] VARELLA, Marcelo Dias; ALENCAR, Carlos Higino Ribeiro de; VIANNA, Marcelo Pontes. Quando mais é menos: arranjos institucionais e acordos de leniência anticorrupção no Brasil. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 59, n. 233, p. 35-59, jan./mar. 2022.

[3] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Nota Técnica nº 2/2020 – 5ª Câmara de Coordenação e Revisão.

[4] Vide: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/empresas-da-lava-jato-ainda-devem-mais-de-r-8-bilhoes-em-acordos-de-leniencia-com-a-cgu/

[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Rcl 43007. Min. Rel. Dias Toffoli. Decisão Monocrática. Publ. DJE 08/09/2023.

[6] Vide: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/decisao-de-toffoli-ajuda-jf-a-contestar-multa-bilionaria-no-acordo-de-leniencia/

[7] Vide: https://www.conjur.com.br/2023-set-26/odebrecht-toffoli-manter-garantias-firmadas-leniencia/

[8] Vide: https://portal.tcu.gov.br/data/files/11/16/BB/03/575C37109EB62737F18818A8/ACORDO%20DE%20COOPERACAO%20TECNICA%20_1_.pdf

[9] https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/11/parceria-entre-cgu-e-cade-promete-agilizar-investigacoes-contra-empresas-que-atuam-em-carteis

[10] Vide: https://noticias.uol.com.br/colunas/natalia-portinari/2023/12/07/multinacional-de-auditoria-inventa-site-para-escapar-de-punicao-do-governo.htm

Autores

  • é bacharel, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), prêmio Capes de Tese 2014 na área do Direito, visiting researcher no Massachusetts Institute of Technology (EUA), professor no Ibmec-SP, Insper, Mackenzie e em diversas outras instituições de ensino e consultor externo do escritório Justino de Oliveira Advogados nas áreas de compliance e anticorrupção, proteção de dados, prevenção à lavagem de dinheiro (PLD), Direito Econômico e Direito Financeiro.

  • é professor, advogado, cientista social, doutor e mestre em Direito do Estado e graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD/USP), pós-graduado em marketing político e propaganda eleitoral pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), controlador geral do município de São Paulo (CGM/SP) e encarregado pela proteção de dados pessoais da Prefeitura de São Paulo.

  • é advogado do Barral Parente Pinheiro Advogados, graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP).

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