Opinião

Persistem as inconstitucionalidades na Lei do Planejamento Familiar

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25 de janeiro de 2024, 15h29

Alterada recentemente, a Lei nº 9.263/96 continua, em grande parte, contrária à Constituição da República, como demonstra a análise seguinte, baseada em pesquisa bibliográfica e documental.

1. A liberdade reprodutiva na Constituição
A Constituição tem regra especial sobre o tema:

“Art. 226 – …

§7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.” (g.n.)

Logo, o planejamento familiar é direito da pessoa e dever do Estado.  A vedação de “qualquer forma coercitiva” determina a neutralidade do Estado na  matéria.

2. A lei modificadora
A primeira inovação é a contida no § 2º do artigo 9º:  a fixação do prazo máximo de 30 dias para disponibilização de qualquer método e técnica de contracepção.  O escopo da lei é acabar com as “filas de espera”, sobretudo no Sistema Único de Saúde [1].

O revogado § 5º do artigo 10 dispunha que, “na vigência da sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges”. Tal regra foi contestada no Supremo Tribunal Federal por meio das ADIs 5.097 [2] e 5.911 [3].

Quanto ao inciso I do artigo 10, a idade mínima para a esterilização cirúrgica baixou de 25 para 21 anos de idade.

Persistem na Lei 9263/96, contudo, violações à Constituição.

3. As contrariedades à Constituição
Confira-se o artigo 10, com a redação dada pela Lei nº 14.443/2022:

“Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:

I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e um anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;

II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.

§1º. É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.

§2º. A esterilização cirúrgica em mulher durante o período de parto será garantida à solicitante se observados o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o parto e as devidas condições médicas.

§3º. Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.

§4º. A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia.

§5º. (Revogado)

§6º. A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei.”

Avulta a primeira contrariedade à Constituição:  ao dizer, “somente será permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações (…)”, o caput do artigo 10 restringe o direito em desacordo com o § 7º do artigo 226 da Constituição, para o qual basta a vontade da pessoa interessada.

O inciso I do artigo 10 estabelece idade mínima de 21 anos ou dois filhos vivos. Porém, a maioridade civil e penal é alcançada aos 18 anos (artigo 5º do Código Civil e artigo 228 da CF), idade na qual o voto é obrigatório e a pessoa passa a ser elegível como vereadora (artigo 14 da CF).  Logo, não há amparo constitucional para vedar a esterilização após os 18 anos.

A exigência alternativa de que a pessoa tenha dois filhos vivos revela preferência pela fecundidade, o que fere a liberdade individual e o dever de neutralidade estatal insculpidos na regra-matriz constitucional.

O prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico, bem como o aconselhamento por equipe multidisciplinar, restringem o direito. A nosso ver, o aconselhamento multidisciplinar deve ser oferecido (“propiciado”), mas não imposto como condição para o exercício do direito. Porém, o Ministério da Saúde interpreta tal aconselhamento como obrigatório, conforme a Nota  nº 34/2023-COSMU/CGACI/DGCI/SAPS/MS [4].

Prosseguindo com o inciso I do artigo 10, a previsão do desencorajamento da esterilização viola o dever de neutralidade do Estado na matéria, em desacordo com o § 7º do artigo 226.

Nesse passo, o artigo 2º da Lei de Esterilização nº 44, de 1998, República da África do Sul exemplifica o respeito à liberdade individual e à neutralidade estatal, ao prever a esterilização voluntária como direito de toda pessoa maior e capaz [5].

Nessa linha, o inciso II do artigo 10 da lei, ao elencar o risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto como uma das condições para a esterilização, trata a cirurgia não como um direito, e sim uma quebra do “dever” de fecundidade, violando também o § 7º do artigo 226.

Não satisfeito com as condições extravagantes, o legislador tornou a manifestação de vontade de esterilizar-se um ato jurídico solene:  exige seu registro em documento escrito e firmado (artigo 10, § 1º).  As condições da lei praticamente inviabilizam a esterilização às pessoas com baixa escolaridade, mais presentes na faixa de renda que mais sofre gestações indesejadas.  Segundo o IBGE, entre as mulheres sem instrução ou com fundamental incompleto a média de fecundidade chega a 3,9 filhos por mulher, contra 1,4 entre as mais instruídas [6].

O § 4º, do artigo 10, veicula restrição, pelo Estado, dos métodos cirúrgicos, indiferente aos avanços da Medicina e aos casos concretos que podem, a critério médico, recomendar ooforectomia ou histerectomia. Além disso, tal proibição somente às mulheres atinge, violando o artigo 5º, I da CF.

A exigência de que a esterilização em pessoas absolutamente incapazes dependa de autorização judicial (parágrafo 6º do artigo 10) carece de adequação entre os fins supostamente buscados – a proteção de incapazes – e o meio escolhido.  Nesse passo, a autorização dos responsáveis legais e o parecer de equipe de saúde salvaguardariam de forma adequada a dignidade da pessoa, como aliás dispõe o artigo 3º do Sterilisation Act 44 of 1998, da República da África do Sul [7].

Em síntese, o artigo 10 da lei é inconstitucional na sua totalidade, pois nos termos do § 7º do artigo 226 da Constituição, a decisão de esterilizar-se cabe exclusivamente à pessoa interessada, vedado ao Estado nela intervir.  A única possiblidade aberta à lei ordinária brasileira seria dispor tal qual a lei sul-africana, permitindo a esterilização a toda pessoa maior e capaz.

O artigo 11 da lei, impõe a notificação compulsória de toda esterilização ao Sistema Único de Saúde. Pergunta-se:  acaso todas as cirurgias feitas no país são de notificação compulsória? Essa norma avança na intimidade das pessoas.

O artigo 12 dispõe:

“Art. 12. É vedada a indução ou instigamento individual ou coletivo à prática da esterilização cirúrgica.”

Se, no artigo 10, I, a lei manda “desencorajar” a esterilização, aqui proíbe “encorajar”. Ambos os dispositivos ferem a neutralidade estatal.  Além disso, o texto da norma enseja sua interpretação equivocada, segundo a qual qualquer conduta se enquadraria como “indução ou instigamento”. Melhor seria redigir o dispositivo pela vedação do constrangimento à esterilização cirúrgica.

Outra norma inconstitucional é a do artigo 14, especialmente o seu parágrafo único:

“Art. 14. Cabe à instância gestora do Sistema Único de Saúde, guardado o seu nível de competência e atribuições, cadastrar, fiscalizar e controlar as instituições e serviços que realizam ações e pesquisas na área do planejamento familiar.

 Parágrafo único. Só podem ser autorizadas a realizar esterilização cirúrgica as instituições que ofereçam todas as opções de meios e métodos de contracepção reversíveis. (Parágrafo vetado e mantido pelo Congresso Nacional – grifamos)”

Não cabe ao Estado preferir os “métodos de contracepção reversíveis”. A regra viola a liberdade individual (quase sempre da mulher) [8]. Mais:  os métodos reversíveis, notadamente os hormonais, trazem riscos à saúde, como trombose, glaucoma, AVC [9]. Coagir mulher que não quer engravidar a tratamentos arriscados viola o princípio da isonomia.

4. Conclusões
Como demonstrado, a despeito das alterações recentes, as normas da Lei 9.263/96 que restringem as esterilizações cirúrgicas violam o §7º do artigo 266 da Constituição, para o qual basta a livre manifestação de vontade da pessoa interessada, devendo o Estado manter-se neutro em face das escolhas individuais.

 


Referências:

BRASIL.  IBGE.  2010.  Nupcialidade, fecundidade e imigração.  Resultados da Amostra, pág. 80.  Disponível em:  https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/98/cd_2010_nupcialidade_fecundidade_migracao_amostra.pdf.  Acesso em 25/09/2018.

BRASIL.  Ministério da Saúde.  Disponível em:  https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-tecnicas/2023/sei_ms-0033574409-nota-tecnica-laqueadura-vasectomia.pdf/view.  Acesso em 19/01/2024.

CASEY, Frances E.  Métodos hormonais de contracepção.  Disponível em:  https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/problemas-de-sa%C3%BAde-feminina/planejamento-familiar/m%C3%A9todos-hormonais-de-contracep%C3%A7%C3%A3o.  Acesso em 17/01/2024.

NOVAS regras para  laqueadura e vasectomia passam a valer nesta segunda.  Disponível em:  https://exame.com/brasil/novas-regras-para-laqueadura-e-vasectomia-passam-a-valer-nesta-segunda/.  Acesso em 10/01/2024.

REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL.  Sterilisation Act n° 44 of 1998.  Disponível em:  https://www.gov.za/sites/default/files/gcis_document/201409/a44-98.pdf.  Acesso em 19/01/2024.

VEJA as 20 cirurgias com maior fila de espera no SUS.  Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2023/06/veja-as-20-cirurgias-eletivas-com-maior-fila-de-espera-no-sus.shtml.  Acesso em 10/01/2024.

[1] Segundo dados do SUS – Sistema Único de Saúde, de junho de 2023, a laqueadura era a cirurgia com a sexta maior fila de espera em todo o país, correspondendo à primeira maior fila de espera no Amapá e no Paraná.  Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2023/06/veja-as-20-cirurgias-eletivas-com-maior-fila-de-espera-no-sus.shtml.  Acesso em 10/01/2024.

[2] A única norma atacada na ADI 5097 era o § 5º do art. 10 da Lei 9.263/96, cuja revogação levou ao reconhecimento, pelo Ministro Relator, da perda superveniente do objeto da ação.

[3] A ADI 5911 tem por objeto a exigência de idade mínima distinta daquela a partir da qual o ordenamento jurídico presume a capacidade plena da pessoa, nos âmbitos civil e penal.

[4] BRASIL.  Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-tecnicas/2023/sei_ms-0033574409-nota-tecnica-laqueadura-vasectomia.pdf/view.  Acesso em 19/01/2024.

[5] 2. (1) No person is prohibited from having sterilisation performed on him or her if he or she is—

(a) capable of consenting; and

(b) 18 years or above.

(2) A person capable of consenting may not be sterilised without his or her consent.

(3) (a) Sterilisation may not be performed on a person who is under the age of 18 years except where failure to do so would jeopardize the person’s life or seriously impair his or her physical health.

(…)

[6] BRASIL.  IBGE.  2010.  Nupcialidade, fecundidade e imigração.  Resultados da Amostra, pág. 80.  Disponível em:  https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/98/cd_2010_nupcialidade_fecundidade_migracao_amostra.pdf.  Acesso em 25/09/2018.

[7] 3. (1) Sterilisation may be performed on any person who is incapable of consenting or incompetent to consent—

(a) upon a request to the person in charge of a hospital and with the consent of a—

(i) parent;

(ii) spouse;

(iii) guardian; or

(iv) curator;

(b) if a panel contemplated in subsection (2) after considering all relevant information, including the fact that—

(i) the person is 18 years of age, unless the physical health of the person is threatened; and

(ii) there is no other safe and effective method of contraception except sterilisation,

concurs that sterilisation may be performed; and

(c) if the person is mentally disabled to such an extent that such a person is incapable of—

(i) making his or her own decision about contraception or sterilisation;

(ii) developing mentally to a sufficient degree to make an informed

judgement about contraception or sterilisation; and

(iii) fulfilling the parental responsibility associated with giving birth.

(2) The person in charge of a hospital contemplated in subsection (1) must upon request, as prescribed for sterilisation, convene a panel which will consist of—

(a) a psychiatrist, or a medical practitioner if no psychiatrist is available;

(b) a psychologist or a social worker; and

(c) a nurse.

(…)

[8] Disponível em:  https://exame.com/brasil/novas-regras-para-laqueadura-e-vasectomia-passam-a-valer-nesta-segunda/.  Acesso em 10/01/2024.

[9] CASEY, Frances E.  Métodos hormonais de contracepção.  Disponível em:  https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/problemas-de-sa%C3%BAde-feminina/planejamento-familiar/m%C3%A9todos-hormonais-de-contracep%C3%A7%C3%A3o.  Acesso em 17/01/2024.

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