Escritos de Mulher

O Injusto Penal sofre bullying: reflexões sobre o novo tipo penal previsto na Lei 14.811

Autores

  • Julia Thomaz Sandroni

    é advogada criminalista sócia do escritório Moraes Pitombo Advogados e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal).

  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

24 de janeiro de 2024, 10h15

No último dia 12 de janeiro, o presidente da República sancionou a Lei Federal nº 14.811, a qual, voltada à maior proteção da criança e do adolescente, (1) institui novas medidas contra violência praticada nos estabelecimentos educacionais ou similares, (2) prevê política nacional de prevenção e combate ao abuso e exploração sexual e (3) realiza alterações no Código Penal, na Lei dos Crimes Hediondos e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

As razões que fundam a proposição dessa lei são louváveis, decorrentes da intensificação dos problemas de violência dentro de estabelecimentos de ensino brasileiros. Trata-se, desse modo, a priori, de elaboração jurídica fruto da necessidade e do interesse da sociedade, que merecem resposta e cuidado daqueles que possuem competência constitucional para legislar a matéria.

Lei Federal 14.811 tipifica o bullying e endurece punição por crimes contra menores

Ocorre que, quanto às alterações no Código Penal, em específico quanto à definição das novas condutas criminosas de bullying e cyberbullying, um olhar atento e técnico não gosta do que vê.

Na realista colocação de Zaffaroni, o tipo penal é figura que, ao fim e ao cabo, resulta da imaginação do legislador [1]. Mas não deveria o ser.

A tarefa de elaborar leis penais é muito séria e, muitas das vezes – principalmente em projetos de leis esparsos -, os parlamentares deixam de se socorrer de comissões técnicas para que, antes do envio ao presidente da República, sejam apontados eventuais equívocos no descritivo de conduta penalmente relevante.

O legislador criminal, ao elaborar um tipo penal, deve seguir um caminho, que Mestieri assim triparte: captação – adequação – precisão. Para a captação, deve-se verificar a relevância de determinada realidade social para o Direito Criminal. Constatado positivamente isso, deve-se buscar a adequação dessa realidade a uma categoria determinada, no elenco de infrações, tendo em vista o bem ou interesse jurídico que pretende proteger, de modo precípuo, pela criação do tipo. Por fim, deve-se precisar, de forma absoluta, o exato significado do injusto [2]. Ao que parece, no afã de corresponder às expectativas de uso populista do direito penal, pecou-se na terceira etapa.

Veja-se os elementos objetivos e subjetivos do novo tipo penal, que, dentro do capítulo dos crimes contra a liberdade individual, foi denominado Intimidação sistemática (bullying): Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais: Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

De plano, verifica-se que a norma penal possui ampla gama de elementos descritivos, o que não significa melhor delimitação entre o poder de intervenção do Estado e a liberdade individual. Ao contrário, a  criação jurídica no Direito Penal se traduz mediante fórmulas precisas e absolutas, pois, estas, sim, correspondem a uma melhor previsibilidade da atuação do ius puniendi do Estado. Não é sem razão que Fragoso sempre ressaltou a característica bifronte do tipo penal, de garantia e fundamentação do fato punível, visando ao binômio certeza e segurança do Direito Penal, com redução do arbítrio estatal [3].

Quanto ao principal elemento descritivo objetivo, o verbo nuclear “intimidar”, chama a atenção que este coexista, em redundância, com outro elemento descritivo relacionado ao modo de execução, qual seja, de que tal intimidação deve ocorrer “por meio de atos de intimidação”. Apenas desse exemplo, já se verifica a absoluta falta de cuidado na elaboração da norma que pretensamente se dispõe a proteger bem jurídico fundamental ao indivíduo.

Veja-se, ainda, que no que concerne às características subjetivas do fato punível, não obstante o legislador tenha feito questão de afirmar que a intimidação deva ocorrer “de modo intencional” – o que já se mostra desnecessário, eis que não se intimida alguém de modo culposo –, descreve, por outro lado, que não deve haver “motivação evidente”. Trata-se de novidade jurídica-penal, que consiste em um “não fim específico de agir”. Juarez Tavares deve estar de cabelo em pé.

Mas seguem as imprecisões. No demasiado rol de modos de execução da intimidação, destacam-se os elementos descritivos “ações morais” e “ações sociais”. Veja-se que, a princípio, considerando a significado sociológico e filosófico de tais expressões, concluímos que o legislador, inadvertidamente, acabou por incluir qualquer ação praticada por um ser humano.

Por fim, merece distinção o elemento descritivo de modo de execução “por meio de ação virtual”. A inclusão deste elemento traz evidente confusão com a modalidade prevista no parágrafo único, denominada cyberbullying. Afinal, qual seria a diferença entre uma “ação virtual” e uma “conduta realizada por meio da rede de computadores”? O problema disto é a desproporcionalidade das sanções previstas para cada um dos tipos, eis que, para o primeiro, há somente previsão de pena de multa, ao passo que, para o segundo, além de multa, é prevista – em absoluta desproporção – pena de reclusão de 2 a 4 anos. Nos parece que, se o tipo penal de bullying terá difícil aplicação, a modalidade cyber restará inócua.

Como se verifica, a compreensão do tipo pelo sujeito ativo e a viabilidade de aplicação da norma são muito prejudicadas pela deficiência técnica desta. Assim, mesmo que o intuito tenha sido  a proteção da liberdade individual, tendo em vista traumas tão relevantes que decorrem da conduta denominada bullying, infelizmente, ao que parece, a iniciativa do legislador pode ter sido em vão. O tipo não vai desempenhar sua função de garantia.

O que se vê é que o legislador se inspirou nas previsões da Lei 13.185, de 2015, que instituiu o admirável Programa de Combate à Intimidação Sistemática. Talvez isso explique a ausência de rigor técnico, pois a lei anterior trazia apenas diretrizes sobre o tema, não versava sobre novos tipos penais. Logo, não precisava do mesmo rigor descritivo de uma norma penal. É essa má utilização do direito penal, sem a técnica adequada, que ora criticamos. E isso não é novidade.

No livro Por Que o Legislador quer Aumentar Penas?, André Mendes sinaliza que, dentre as proposições legislativas no período entre 2006 e 2014 na Câmara dos Deputados, “63,35% dos PLs não fizeram quaisquer referências extrapenais a dados, estudos e estatísticas relacionadas à norma que pretende alterar. Isso confirma o processo de desestatisticalização do populismo penal, a ausência do conhecimento técnico e a supremacia do senso comum” [4]. Vê-se que o quadro continua o mesmo, uma década depois.

Ainda de acordo com a pesquisa, somente “17.26% dos PLs referiram-se a dados empíricos, audiência pública, cenário internacional, ou decisão judicial. Menos de 1/5 das proposições preocupou-se em trazer elementos que robustecessem a medida proposta” [5]. Um tema tão importante como o bullying e o cyberbullying, que não é exclusividade brasileira, merecia uma previsão legal elaborada em bases mais aprofundadas.

No mais, nos resta torcer que a norma penal deixe de ser intimidada, reiteradamente, por meio de atos de intimidação. Ou adotemos a célebre frase de BISMARK: “Quanto menos as pessoas souberem como se fazem as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite” [6].

 


[1] ZAFARONI, Eugencio Raul, Tratado Vol II, p.172

[2] MESTIERI, João Teoria Elementar do Direito Criminal, Parte Geral, p.154.

[3] FRAGOSO, Heleno Claudio, Conduta Punível, p.132

[4 e 5] MENDES, André Pacheco Teixeira.  Por que o Legislador quer aumentar penas?  p. 261.

[6] BISMARK, Otto Von, Oxford Dictionary of Quotations, p.255.

 

Autores

  • é advogada criminalista, sócia do escritório Moraes Pitombo Advogados e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal).

  • é advogada criminalista, sócia do escritório Maíra Fernandes Advocacia, mestre em Direito e especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora convidada da FGV Rio, presidente da Comissão de Crimes Digitais da OAB-RJ e coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCRIM.

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