Opinião

Crime de poluição ambiental e a dispensa de prova pericial em crimes de perigo abstrato

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21 de janeiro de 2024, 13h14

Neste trabalho será analisado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que a perícia é dispensável à comprovação do crime de poluição ambiental, quando se trata de causar poluição em níveis tais que possam resultar em danos à saúde humana, previsto no artigo 54, primeira parte, da Lei 9.605/1998. O equívoco do entendimento se baseia em um duplo erro: primeiro, considerar que o delito em questão é de perigo abstrato; segundo, considerar que delitos de perigo abstrato dispensam a prova pericial para sua comprovação.

O exame da questão é feito a partir do acórdão do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.418.795/SC, julgado pela 5ª Turma do STJ no ano de 2014 e que estabeleceu os parâmetros que vieram a informar a jurisprudência do STJ em relação ao tema.

Consideração da poluição ambiental como crime de perigo abstrato
O primeiro erro no STJ no julgamento do AgRg no REsp 1.418.795/SC foi considerar que estava evidenciada a “natureza formal ou, ainda, de perigo abstrato” em relação ao crime tipificado na parte inicial do artigo 54 da Lei 9.605/1998, conforme o voto da ministra Regina Helena Costa, que foi acompanhada no entendimento pelo ministro Moura Ribeiro. Se a natureza formal do crime é correta, o mesmo não se pode dizer quanto a ser de perigo abstrato.

O STJ cometeu o mesmo erro de parte da doutrina. É citado no voto da ministra Regina Helena Costa a obra de Guilherme de Souza Nucci, que classifica a primeira hipótese do delito de poluição ambiental como de perigo abstrato. Por sua vez, o ministro Moura Ribeiro cita Ana Maria Moreira Marchesan e Nelson Bugalho, para quem “o tipo não exige para sua consumação a ocorrência de dano, tampouco a ocorrência de perigo concreto”. Apesar da importância dos autores citados, cujo mérito e contribuições para o direito penal brasileiro são indiscutíveis, neste ponto específico eles se equivocaram.

Os delitos de perigo podem ser classificados como de perigo concreto ou de perigo abstrato. Nucci (2022, p. 326) explica que “considera-se o primeiro como a probabilidade de ocorrência de um dano que necessita ser devidamente provada pelo órgão acusador, enquanto o segundo significa uma probabilidade de dano presumida pela lei, que independe de prova no caso concreto. O legislador, neste último caso, baseado em fatos reais, extrai a conclusão de que a prática de determinada conduta leva ao perigo, por isso tipifica a ação ou omissão, presumindo o perigo”.

O exemplo clássico de crime de perigo concreto é o delito de incêndio, previsto no artigo 250 do Código Penal: “causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem”. A conduta típica vai além de causar um simples incêndio. É preciso também que ocorra um perigo efetivo e real. Haverá incêndios dos quais não decorrerá nenhum perigo e, logo, serão penalmente irrelevantes; haverá outros que trarão perigo para a vida, integridade física ou patrimônio de outrem e serão penalmente relevantes, conforme o artigo 250 do Código Penal. Como a aferição do perigo deve ser feita caso a caso, o delito é de perigo concreto e depende de que o perigo seja efetivamente provado pelo órgão acusador, como pontuado por Nucci.

Quanto aos crimes de perigo abstrato, podemos novamente tomar exemplo dado por Nucci, do delito de tráfico de drogas previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006: “os delitos de tráfico e porte de entorpecentes (artigos 33 e 28 da Lei de Drogas) consistem em punir o sujeito que traz consigo substância entorpecente, porque tal conduta quer dizer um perigo para a saúde pública. Assim, para a tipificação desses delitos, basta a acusação fazer prova do fato (estar portando a droga), prescindindo-se da prova do perigo, que é presumido” (2022, p. 326). A redação do tipo penal criminaliza o simples porte da substância entorpecente proibida, presumindo desse fato o perigo à saúde pública.

Portanto, a classificação de um crime como de perigo concreto ou abstrato dependerá da redação dada ao tipo penal. É o legislador que, redigindo o tipo penal de uma forma ou outra, determina se o crime é de perigo abstrato ou de perigo concreto.

Analise-se, então, a redação do artigo 54 da Lei 9.605/1998. A primeira parte do delito criminaliza “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana”. Se da poluição resultar danos à saúde humana, o crime será de resultado; se não sobrevier dano, mas for criado um risco, o crime será de perigo. Porém, nesse caso, o perigo criminalizado é abstrato (presumido pela lei) ou concreto (que deve ser comprovado no caso)?

Caso se entenda que o crime é de perigo abstrato, o que se afirma é que o legislador quis tipificar todo e qualquer tipo de poluição, será crime a poluição em qualquer magnitude: do vazamento de milhares de litros de óleo de uma grande indústria à pequena chaminé da microempresa que emite alguma quantidade de CO2 pela falta de filtros. Se houve poluição, haverá crime.

Não parece ser esse o caso. O artigo 54 da Lei dos Crimes Ambientais traz uma cláusula que qualifica a poluição considerada penalmente relevante. É crime “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que possam resultar em danos à saúde humana”. Ao interpretar a redação dada ao artigo, somente podemos concluir que haverá casos em que a poluição será em níveis tais que poderá resultar em danos à saúde humana. Nesses casos ocorrerá crime de poluição. Haverá outros casos em que, apesar de ocorrer poluição, ela não será em níveis tais que ofereça risco à saúde humana, e a conduta será penalmente irrelevante (o que quer dizer apenas que não haverá crime, mas não afasta a possibilidade atuação de outros ramos do direito como o administrativo e o civil).

É antigo o adágio de que “a lei não possui palavras inúteis”. Na interpretação da lei não se pode ignorar a existência de palavras e/ou expressões, o que assume especial relevo no Direito Penal, estruturado em torno do princípio da legalidade. Afirmar que o crime de poluição ambiental é de perigo abstrato é ignorar a existência da expressão “em níveis tais” no tipo penal do artigo 54 da Lei 9.605/1998. A exigência legal de que a poluição seja “em níveis tais” só pode implicar na obrigatoriedade de que seja apurado no caso concreto tanto o nível da poluição causada quanto se essa poluição efetivamente pode resultar em danos à saúde humana.

Esse foi o posicionamento do ministro Marco Aurélio Bellizze no julgamento do AgRg no REsp 1.418.795/SC, em que ficou vencido, ao afirmar que “o crime não é poluir, mas, sim, poluir a ponto de gerar dano ou risco à saúde humana, mortandade de animar ou destruição significativa da flora. Dessa forma, imprescindível a demonstração de que a conduta do recorrente teve efetiva repercussão na seara penal”.

Ainda em relação a esse primeiro erro, destaque-se que na interpretação de um texto com a literalidade do artigo 54 da Lei 9.605/1998, considerações de política criminal em relação ao caráter preventivo do direito penal ambiental são irrelevantes para determinação da natureza do crime (se de perigo abstrato ou concreto). No voto do ministro Moura Ribeiro, Edis Milaré é citado no trecho em que afirma que “na formulação dos tipos penais não pode o legislador perder a perspectiva eminentemente preventiva que embasa todo o direito do meio ambiente”. A lição é correta. Porém, é dirigida ao legislador. O legislador, ao formular leis penais ambientais, deve ter a perspectiva preventiva em mente para corretamente endereçar os desafios dessa área. Também deve considerar outras perspectivas afeitas ao direito penal, como a legalidade e a segurança jurídica. Contudo, uma vez criado o tipo penal, a perspectiva preventiva não assume preponderância nem autoriza a desconsideração de expressões constantes da redação legal. O intérprete/aplicador da lei não tem a prerrogativa de transformar um delito de perigo concreto em delito de perigo abstrato apenas pelo caráter preventivo do direito penal ambiental, especialmente se o faz em desconsideração da redação legal.

Em suma quanto a esta primeira parte, é equivocada a interpretação de parte da doutrina e do STJ de que o delito previsto na primeira parte do artigo 54 da Lei 9.605/1998 é de perigo abstrato.

Consideração de que os crimes de perigo abstrato independem de prova pericial para comprovação
O segundo erro em que o STJ incorreu foi entender que, em se tratando de crime de perigo abstrato, o delito do artigo 54 da Lei de Crimes Ambientais dispensa a prova pericial para sua comprovação. Não há relação de causa e efeito entre um delito ser de perigo abstrato e a dispensa da prova pericial. Da circunstância de se tratar de um crime de perigo abstrato não decorre a desnecessidade da prova pericial.

O STJ confundiu a produção de dano com a geração de vestígios pela infração e, por consequência, confundiu a classificação do crime com a necessidade de perícia. As questões não se misturam.

A produção de dano é relevante para a classificação de um delito entre crime de dano e crime de perigo. Se o dano é necessário para a consumação do delito, trata-se de crime de dano; se o dano é desnecessário para a consumação, trata-se de crime de perigo. Isso poderá ter efeitos práticos para a configuração de tentativa e a própria tipicidade do fato (já que nos crimes de perigo, o momento consumativo é antecipado por razões preventivas de política criminal).

Questão distinta é a necessidade de exame de corpo de delito ou perícia, que é estabelecida por disposição legal e tem como norte a geração de vestígios pela infração. O artigo 158 do Código de Processo Penal estabelece que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. O que determina a necessidade de perícia é a geração de vestígios, não a produção de dano pela infração penal.

Dano e vestígio da infração penal são conceitos distintos e pode ser que uma infração não produza dano, mas deixe vestígio. Vale novamente o exemplo do tráfico de entorpecentes: embora de perigo abstrato, o crime deixa vestígio e sua comprovação demanda a realização de exame de corpo de delito. O vestígio do delito é justamente a droga cuja posse é criminalizada. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que a perícia é necessária para comprovação do delito de tráfico de drogas (ainda que o laudo toxicológico seja provisório em alguns casos): “consoante a jurisprudência majoritária desta Corte Superior, o laudo toxicológico definitivo, em regra, é imprescindível para a comprovação da materialidade do crime de tráfico de drogas. Admite-se, excepcionalmente, o laudo de constatação provisório como prova, desde que tenha sido elaborado por perito oficial e permita o mesmo grau de certeza ao do laudo definitivo” (AgRg no REsp 2.033.058/MG).

A prova pericial é necessária para a comprovação do delito porque a infração deixa vestígios, e isso independe do fato de ela ser de dano, de perigo concreto ou de perigo abstrato. O ministro Rogerio Schietti Cruz expõe de forma clara o motivo da exigência legal nesses casos, explicando que “o processo penal tem compromisso com a verdade, mas não de forma absoluta, pois há outros valores protegidos pelo Estado durante a persecução penal. A busca da verdade sujeita-se, portanto, a limites epistemológicos e éticos, relacionados à necessidade de se observarem regras de maior confiabilidade e idoneidade da prova, bem como de se protegerem garantias e direitos do acusado” (HC 776.101/SP).

A mesma lógica aplicada pelo STJ ao crime de tráfico de drogas é válida para o delito ambiental: via de regra, o crime de poluição deixa vestígios, consistente na contaminação causada. Assim, em regra, deverá ser realizada a perícia técnica para que se avalie se houve poluição e qual seu nível. Em relação ao crime ambiental, na mesma obra citada no julgado aqui estudado, Nucci (2014) esclarece que “é fundamental nesses casos, para que seja cumprido o disposto no art. 158 do CPP (crimes que deixam vestígios precisam de exame pericial), a realização da perícia para a formação da materialidade”.

Assim, ainda que se incorra no equívoco de considerar o delito de poluição ambiental como crime de perigo abstrato, disso não deriva a prescindibilidade de perícia. Mesmo que não se exija a demonstração de dano ou de perigo concreto para consumação do delito, o Ministério Público ainda necessita comprovar a materialidade do fato, a ocorrência de poluição, o que demanda prova técnica.

A diferença entre crime de perigo concreto e de perigo abstrato não repousa na prescindibilidade da perícia, mas no objeto da prova técnica. Se o crime é encarado como de perigo abstrato, a perícia precisa demonstrar que houve apenas a emissão de agente poluente e que foi causada a poluição. Se o crime é interpretado como de perigo concreto, a perícia deve indicar a ocorrência da poluição e também o seu nível, além do risco efetivamente causado à saúde humana. A quesitação será necessariamente mais complexa nessa segunda hipótese, que é a que se reputa correta.

Conclusão
Conclui-se que o STJ incorreu em dois erros que somados importaram na criação de uma inadequada orientação jurisprudencial pela prescindibilidade da perícia nos crimes de poluição ambiental e, de forma mais ampla, nos crimes de perigo abstrato. O erro consiste em interpretar que nos crimes de perigo, seja de perigo abstrato ou concreto, a perícia é dispensável. Pode-se ainda dizer que o equívoco vem se alastrando, pois hoje o entendimento é aplicado a outros crimes de perigo abstrato, como o porte ilegal de arma de fogo. Também no caso do delito de armas, o entendimento decorre de uma suposta correlação entre crime de perigo abstrato e desnecessidade de perícia. A revisão desses posicionamentos e sua adequação à legalidade é medida que se impõe, em homenagem à função do STJ de dar adequada interpretação às normas infraconstitucionais.


Referências

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

STJ. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.418.795/SC. Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Relatora para acórdão Ministra Regina Helena Costa, 5ª Turma. Julgado em 18/6/2014, DJe de 7/8/2014.

STJ. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 2.033.058/MG. Relator ministro Messod Azulay Neto, 5ª Turma. Julgado em 20/3/2023, DJe de 27/3/2023.

STJ. Habeas Corpus nº 776.101/SP. Relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma. Julgado em 21/11/2023, DJe de 28/11/2023.

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