STJ não fez a melhor aplicação do direito em caso de poluição de óleo no mar
7 de maio de 2023, 11h27
O STJ (Superior Tribunal de Justiça), ao negar provimento ao AgInt no REsp nº 2032619–PR, relatado pela ministra Regina Helena Costa, deu margem à reabertura da discussão relativa à aplicação de multas administrativas, simultaneamente, pela Capitania dos Portos e pelo Ibama.
No caso concreto, o STJ manteve a decisão proferida pelo TRF-4 que entendeu aplicável cumulativamente as multas de ambas as entidades federais. A Corte decidiu com base em dois argumentos fundamentais: 1) entendimento consolidado no sentido de que a multa aplicada pela Capitania dos Portos, em decorrência de derramamento de óleo,
não exclui a possibilidade de aplicação de multa pelo Ibama e 2) a revisão do entendimento do TRF-4, o qual afastou a ocorrência de bis in idem em relação às multas aplicadas, implicaria em reexame de matéria fática demandaria necessário revolvimento de matéria fática, o que vedado no recurso especial.
O STJ, no caso concreto, não fez a melhor aplicação do direito, pois partindo de uma premissa equivocada (1), concluiu inadequadamente que a matéria era de natureza fática (2).
O direito ambiental brasileiro, a partir da Constituição de 1988, passou por importantes transformações, com ênfase para a sua especialização por setores próprios formados por normas voltadas para a proteção diferentes aspectos dos recursos naturais.
Em primeiro lugar, não se deve perder de vista que a distinção entre matéria de fato e matéria de direito não é simples. Os fatos narrados no processo dizem respeito a derramamento de óleo no mar por parte de navio que foi simultaneamente multado pela Capitania dos Portos e pelo Ibama.
A duplicidade das multas foi impugnada sob o argumento de que a 1) embarcação adotou as medidas cabíveis para minimizar os
danos, que 2) não foram consideradas as provas produzidas e não foi oportunizada a produção de outras, que 3) a elaboração de planos de contingência e emergência não são obrigações do proprietário do navio e da 4) ausência de motivação da autuação.
A parte autuada alegou a existência de apenas uma infração (derramamento de óleo no mar) e que a multa do Ibama se constitui em bis in idem, haja vista que a capitania dos portos já havia autuado o navio.
O núcleo do acórdão proferido pelo TRF-4 aponta as seguintes razões para o reconhecimento da legitimidade das autuações:
A legitimidade do Ibama para fixar a multa decorre dos artigos 70 e 72 da Lei nº 9.605/1998, enquanto a da Capitania dos Portos, do disposto na Lei 9.966/2000. Tanto é assim, que a multa aplicada pelo Ibama tem caráter repressivo do dano ambiental causado, ao passo que a multa aplicada pela Capitania é vinculada ao Fundo Naval e destinada ao cumprimento de manutenção dos serviços necessários à fiscalização da observância da lei, não estando relacionada propriamente à repressão do dano ambiental causado. Sobre a matéria, o §1º do artigo 72 da Lei nº 9.605 estabelece que se o infrator cometer, simultaneamente, duas ou mais infrações, ser-lhe-ão aplicadas, cumulativamente, as sanções a elas cominadas.
Observe-se, ainda, que o artigo 25, §3º, da Lei nº 9.966/2000 é expresso em afirmar que "a aplicação das penas previstas neste artigo não isenta o agente de outras sanções administrativas e penais previstas na Lei no
9.605, de 12 de fevereiro de 1998, e em outras normas específicas que ratem da matéria, nem da responsabilidade civil pelas perdas e danos causados ao meio ambiente e ao patrimônio público e privado", o que demonstra o caráter autônomo das multas aplicadas pela autoridade marítima e pela autoridade ambiental.
A efetuada pelo Ibama teve por fundamento a omissão da autuada na adoção de medidas para conter/minorar o dano ambiental, após o acidente (Lei nº 9.605/1998).
Tratando-se, portanto, de infrações diversas, não há como se sustentar a
alegação de ocorrência de duplicidade de multas pelo mesmo fato, nem que o Ibama apenas poderia atuar em caso de inércia da Autoridade Marítima, pois, conforme já mencionado, a legislação ambiental não veda a atuação da autoridade ambiental nesta hipótese.
Em primeiro lugar, parece que a matéria é mais complexa do que a mera discussão sobre fatos, pois não há fatos contestados na discussão. O derramamento de óleo é incontroverso, assim como é incontroversa a responsabilidade do proprietário do navio ou do armador, caso seja outro que não o proprietário do navio [1]. Portanto, a matéria, no caso, é de definição da lei aplicável.
Julgo ser relevante que se perceba que a especialização do direito ambiental em diversas leis voltadas para a proteção de diferentes bens ambientais tem consequências práticas e jurídicas que devem ser observadas pelos profissionais do direito. A Lei nº 9966/2000 é lei especial voltada para a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional. Esta lei dispôs inteiramente sobre a matéria, possuindo inclusive um conjunto de infrações administrativas e as sanções aplicáveis aos violadores da norma [2], tendo sido regulamentada pelo Decreto nº 4.136/2002. Assim, toda a matéria está devidamente disciplinada por normas próprias.
A Lei nº 9966/2000 em seu artigo 27 estabelece o rol de autoridades responsáveis pela sua fiscalização, cabendo à 1) autoridade marítima a a) fiscalização de navios, plataformas e suas instalações de apoio, e as cargas embarcadas, de natureza nociva ou perigosa, autuando os infratores na esfera de sua competência; o 2) levantamento de dados e informações e a apuração de responsabilidades sobre os incidentes com navios, plataformas e suas instalações de apoio que tenham provocado danos ambientais; o 3) encaminhamento de dados, informações e resultados de apuração de responsabilidades ao órgão federal de meio ambiente, para avaliação dos danos ambientais e início das medidas judiciais cabíveis; a 4) comunicação ao órgão regulador da indústria do petróleo das irregularidades encontradas durante a fiscalização de navios, plataformas e suas instalações de apoio, quando atinentes à indústria do petróleo; ao 2) órgão federal de meio ambiente, compete a) realizar o controle ambiental e a fiscalização dos portos organizados, das instalações portuárias, das cargas movimentadas, de natureza nociva ou perigosa, e das plataformas e suas instalações de apoio, quanto às exigências previstas no licenciamento ambiental, autuando os infratores na esfera de sua competência; b) avaliar os danos ambientais causados por incidentes nos portos organizados, dutos, instalações portuárias, navios, plataformas e suas instalações de apoio; c) encaminhar à Procuradoria-Geral da República relatório circunstanciado sobre os incidentes causadores de dano ambiental para a propositura das medidas judiciais necessárias; d) comunicar ao órgão regulador da indústria do petróleo irregularidades encontradas durante a fiscalização de navios, plataformas e suas instalações de apoio, quando atinentes à indústria do petróleo [3].
A decisão ora analisada, indica que o derramamento de óleo no mar foi feito por um navio. Ora, a competência do Ibama, segundo a Lei nº 9966/2000 não inclui os navios, conforme fica muito claro no seu artigo 27, II. É importante observar que o §3º do artigo 25 da Lei nº 9966/2000 que estabelece que a aplicação das penas previstas no artigo 25 "não isenta o agente de outras sanções administrativas e penais previstas na Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, e em outras normas específicas que tratem da matéria, nem da responsabilidade civil pelas perdas e danos causados ao meio ambiente e ao patrimônio público e privado". Segundo consta, a autuação do Ibama se deu em função de que a embarcação não teria tomado as medidas de contenção do dano após o derramamento de óleo [4].
De fato, no caso concreto não há o chamado bis in idem, pois a autuação do Ibama se deu não pelo derramamento de óleo em si mesmo, mas pela falta de medidas mitigadoras após o fato ter ocorrido. Para a nossa argumentação, é irrelevante se o navio deveria, ou não, providenciar as primeiras medidas de combate ao derramamento de óleo no mar.
A questão que se coloca é de atribuição administrativa. O Ibama, em matéria de poluição por óleo das águas de jurisdição nacional tem a sua competência fixada pelo artigo 27, II da Lei nº 9966/2000 que, basicamente, dize respeito ao controle ambiental e a fiscalização dos portos organizados, das instalações portuárias, das cargas movimentadas, de natureza nociva ou perigosa, e das plataformas e suas instalações de apoio, quanto às exigências previstas no licenciamento ambiental, autuando os infratores na esfera de sua competência.
Esta competência se exerce sobre as atividades licenciadas pelo Ibama, o que exclui os navios, pois estes não são passíveis de licenciamento ambiental. Este entendimento é reforçado pelo artigo 17 da Lei Complementar nº 140/2011 que define competir ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.
Em relação aos navios, a competência do Ibama é avaliar os danos ambientais por eles causados em caso de derreamento de óleo ou outros incidentes [5]. A Lei nº 9966/2000 é pouco clara, pois abusa de termos como autoridade competente e outros, dificultando a sua implementação. É importante lembrar que o Tribunal Marítimo está aparelhado para a aplicação de penas relativas ao derramamento de óleo no mar e que a capitania dos portos deve exercer plenamente as suas atribuições. A jurisprudência do STJ confronta com dispositivos expressos da lei aplicável.
[1] Lei nº 9966/2000. Artigo 25. §1o, I e II
[2] Artigos 25 e 26.
[3] A competência de outros órgãos não será mencionada, por irrelevante para o caso.
[4] Decreto nº 6514/2008 Artigo 61. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da biodiversidade: Multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000.000,00. Parágrafo único. As multas e demais penalidades de que trata o caput serão aplicadas após laudo técnico elaborado pelo órgão ambiental competente, identificando a dimensão do dano decorrente da infração e em conformidade com a gradação do impacto. Artigo 62. Incorre nas mesmas multas do artigo 61 quem: VII – deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução ou contenção em caso de risco ou de dano ambiental grave ou irreversível;
[5] Lei nº 6699/2000, artigo 27, II, a.
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