Opinião

A ADI 6.446 e a proteção da Mata Atlântica

Autor

  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

21 de junho de 2023, 18h29

A ADI 6.446 foi ajuizada pelo presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) com o objetivo de ver declarada a "nulidade parcial, sem redução de texto, do conjunto normativo formado pelos artigos 61-A e 61–B da Lei nº 12.651/2012 e artigos 2º, § único da Lei nº 11.418/2006, de modo a excluir do ordenamento jurídico interpretação inconstitucional dos referidos dispositivos que impede a aplicação do regime ambiental de áreas consolidadas a áreas de preservação permanente inseridas no bioma Mata Atlântica, e com isso esvazia o direito de propriedade e afronta a segurança jurídica". O STF (Supremo Tribunal Federal), em decisão liderada pelo ministro Luiz Fux, por unanimidade, não conheceu da ação.

Infelizmente, a discussão sobre a questão é recorrente. Em outra oportunidade já me manifestei sobre o tema, sustentando a prevalência da lei especial sobre a lei geral [1] , no caso a prevalência da Lei da Mata Atlântica sobre o impropriamente denominado Código Florestal nas áreas de incidência desse tipo de vegetação que são aquelas definidas artigo 2º da Lei especial,

Ecovias
Sistema de rodovias Anchieta-Imigrantes, que corta a Serra do Mar, em São Paulo
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"Artigo 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se integrantes do Bioma Mata Atlântica as seguintes formações florestais nativas e ecossistemas associados, com as respectivas delimitações estabelecidas em mapa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), conforme regulamento: Floresta Ombrófila Densa; Floresta Ombrófila Mista, também denominada de Mata de Araucárias; Floresta Ombrófila Aberta; Floresta Estacional Semidecidual; e Floresta Estacional Decidual, bem como os manguezais, as vegetações de restingas, campos de altitude, brejos interioranos e encraves florestais do Nordeste.

Parágrafo único. Somente os remanescentes de vegetação nativa no estágio primário e nos estágios secundário inicial, médio e avançado de regeneração na área de abrangência definida no caput deste artigo terão seu uso e conservação regulados por esta Lei."

A questão diz respeito ao princípio da especialidade das leis, mediante o qual as leis especiais derrogam as leis gerais. No caso específico, dado que a Lei da Mata Atlântica e anterior ao Código Florestal, é aplicável o §2º do artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro [2]. A jurisprudência nacional é pacífica no sentido da prevalência da lei especial sobre a lei geral. "Predomina em nosso sistema jurídico o princípio da especialidade, segundo o qual, diante de conflito aparente entre normas, a regra especial deverá prevalecer sobre a geral." [3]

O sistema brasileiro de proteção ao meio ambiente é constituído por leis 1) específicas voltadas para a proteção de determinados recursos naturais e espaços territoriais e por 2) leis gerais. Como exemplo de leis especiais podem ser citadas, dentre outras, a 1) Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação [4], a 2) Lei sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional [5].  Esta modalidade é compatível com o artigo 7º, I da Lei Complementar nº 95/1998 [LC 95/1998] que determina que "excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto". Aqui cabe ressalta que, embora a Lei nº 12.651/2012 seja conhecida como "Código Florestal", do ponto de vista da técnica legislativa ela não é um código.

Os códigos, como se sabe, possuem procedimento próprio para a sua elaboração (Regimento Interno do Senado, artigo 374 e seguintes [6] e artigo 205 e seguintes do Regimento da Câmara dos Deputados [7]). A Lei nº 12.651/2012 em sua tramitação não observou o procedimento próprio para a elaboração dos códigos.

Ora, a LC 95/1998 estabelece nos incisos III e IV do artigo 7º é clara ao determinar que "o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva" e que "o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa". Este conjunto de disposições demonstra a impossibilidade de aplicação de normas do impropriamente denominado Código Florestal (CFlo) ao Bioma Mata Atlântica.

O tema das relações entre lei especial e lei geral em matéria ambiental tem sido objeto de minhas preocupações há algum tempo [8]. Em recente artigo publicado nesta ConJur [9], a questão relativa à aplicação de lei especial em relação à lei geral também foi tratada, no caso em relação à poluição do mar por óleo:

Julgo ser relevante que se perceba que a especialização do direito ambiental em diversas leis voltadas para a proteção de diferentes bens ambientais tem consequências práticas e jurídicas que devem ser observadas pelos profissionais do direito. A Lei nº 9.966/2000 é lei especial voltada para a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional. Esta lei dispôs inteiramente sobre a matéria, possuindo inclusive um conjunto de infrações administrativas e as sanções aplicáveis aos violadores da norma , tendo sido regulamentada pelo Decreto nº 4.136/2002. Assim, toda a matéria está devidamente disciplinada por normas próprias.

A aplicação do CFlo em relação à Mata Atlântica é subsidiária, ou seja, nas hipóteses em que a lei especial seja omissa, conforme se pode inferir do artigo 1º da Lei nº 11.418/2006 [10]. A propósito o glossário de Termos de Técnica Legislativa do Congresso [11] define a função do primeiro artigo de uma lei como o:

"[a]rtigo inicial da norma jurídica que indica o objeto e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: excetuadas as codificações, cada norma jurídica tratará de um único objeto; a norma jurídica não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; o âmbito de aplicação será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área; o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma norma jurídica, exceto quando o subsequente se destine a complementar norma jurídica considerado básica, vinculando-se a esta por remissão expressa."

Neste particular é importante observar que os artigos 61 – A e 61 – B do  CFlo integram o Capítulo das Disposições Transitórias e, portanto, são aplicáveis a situações específicas e transitórias.  Há que se rejeitar a concepção de que o artigo 1º determina a aplicação o Código Florestal à Mata Atlântica, pois isto se configura em uma contradição em seus próprios termos. A contradição, no entanto, foi acolhida pelo despacho 4410/2020 do Ministério do Meio Ambiente que determinava a aplicação do Código Florestal ao bioma Mata Atlântica. O mencionado despacho foi revogado em função de medida judicial adotada pelo Ministério Público Federal; tal revogação deu margem propositura da ADI ora examinada.

Em relação à questão da prevalência da Lei da Mata Atlântica sobre o impropriamente denominado Código Florestal, o Tribunal de Justiça do Paraná tem entendimento no sentido da prevalência da lei especial [12].  A decisão proferida na ADI 6446, infelizmente, não encerra a questão pois, mantém vivo um debate artificial sobre a aplicação do  CFlo ao Bioma Mata Atlântica.

O ordenamento jurídico brasileiro é claro ao determinar a prevalência das leis especiais sobre as leis gerais, bem como a jurisprudência também acolhe tal princípio. No caso específico da Mata Atlântica, a circunstância é realçada pelo § 4º do artigo 225 da Constituição que determina a sua proteção especial.

 

 

[1] ANTUNES, Paulo de Bessa. Lei da Mata Atlântica ou Lei nº 12.651/2012? Disponível em < https://blog.grupogen.com.br/juridico/areas-de-interesse/ambiental/lei-da-mata-atlantica-ou-lei-12-651-2012/ > acesso em 17/06/2023

[2] Artigo 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue…….§2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

[3]  STF. MS 35977 – AgR. 2ª Turma. Relator: ministro Nunes Marques. Julgamento: 99/11/2021. Publicação 08/02/2022.

[4]  Lei nº 9.985/2000.

[5] Lei nº 9.966/2000.

[8] ANTUNES, Paulo de Bessa. Código Florestal e Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação: normatividades autônomas, in RDA– Revista de Direito Administrativo, rio de Janeiro, v. 265, p. 87-109, jan./abr. 2014.

[9] ANTUNES, Paulo de Bessa. STJ não fez a melhor aplicação do direito em caso de poluição de óleo no mar. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-mai-07/bessa-antunes-poluicao-oleo-mar-analise-concreto > acesso em 17/06/2023

[10] Artigo 1º A conservação, a proteção, a regeneração e a utilização do Bioma Mata Atlântica, patrimônio nacional, observarão o que estabelece esta Lei, bem como a legislação ambiental vigente, em especial a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965.

[12] TJ-PR – ES: 00606023820208160000 PR 0060602-38.2020.8.16.0000 (Acórdão), relator: desembargador Nilson Mizuta, Data de Julgamento: 15/03/2021, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: 15/03/2021.

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