Diário de Classe

PEC nº 50/2023 e a manipulação do sentido da Constituição

Autor

  • Pietro Cardia Lorenzoni

    é advogado professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

20 de janeiro de 2024, 8h00

A Crítica Hermenêutica do Direito, matriz teórica criada por Lenio Streck, é um fenômeno complexo que se origina na Teoria do Direito e se reflete na prática jurídica. Ela baseia-se nos pressupostos da filosofia hermenêutica, especialmente em Heidegger, na hermenêutica filosófica de Gadamer e na teoria integrativa de Dworkin.

A CHD sempre teve como fundamento a defesa da Democracia e da Constituição [1]. Outra preocupação constante de Lenio Streck e da CHD é a desinstitucionalização do ensino jurídico e a falta de rigor teórico no ensino e na aplicação do Direito brasileiro. Hoje, de forma interessante, essas questões se entrelaçam, fornecendo exemplos ilustrativos de uma problemática denunciada há muitos anos pela CHD.

Esses temas se relacionam na discussão sobre o papel e os limites do Supremo Tribunal Federal, tornando-se cada vez mais polêmicos devido à impopularidade da jurisdição constitucional em várias ocasiões. A ideia do constitucionalismo, que impõe limites ao poder, é contraintuitiva no jogo político, especialmente em uma democracia. Muitas vezes, a vontade política deseja agir de forma desenfreada e impulsiva, encontrando resistência nos princípios, direitos e interesses consagrados na Constituição.

O constitucionalismo e a jurisdição constitucional servem como mecanismos para moldar o exercício do poder, baseados em nossa tradição autêntica que nega um poder supremo. A ideia popular de que um governante eleito pode agir conforme sua vontade e os desejos de seus eleitores entra em conflito com esses princípios, especialmente em momentos de acaloradas disputas políticas, onde o constitucionalismo encontra sua maior relevância.

Hoje, conceitos como populismo autoritário, constitucionalismo abusivo, erosão democrática e degeneração constitucional se tornam cada vez mais relevantes [2], refletindo um processo de autocratização velado e disfarçado como legítimo exercício de poder. Esses fenômenos preocupam-se com sintomas, fatores e o processo pelo qual um Estado Democrático pode se transformar em um Estado autoritário.

Existem exemplos recentes e sombrios na história constitucional, como a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e a invasão do Supremo Tribunal Federal em 8 de janeiro de 2023. Além disso, a resistência à autoridade encarregada de conformar o exercício do poder político é notável, incluindo o controle de constitucionalidade.

Esse debate sobre o papel do Supremo Tribunal Federal levou a ações políticas concretas, algumas buscando inspiração em propostas estrangeiras para limitar o poder do STF, enquanto outras demonstram tendências autoritárias. A PEC 8 de 2021 aborda o sistema de separação de poderes e os freios constitucionais, com fundamento em certa leitura enviesada da Supremocracia do professor Vilhena, a PEC 16 de 2019 pode apresentar indícios de inconstitucionalidade e a PEC 50 de 2023, da forma como proposta, ilustra flagrante afronta ao constitucionalismo. É interessante notar que essas propostas frequentemente se apoiam em conceitos como supremocracia, independência e harmonia entre poderes e Estado Democrático de Direito para justificá-las.

Tal ponto demonstra o acerto das preocupações, antigas e constantes, do professor Lenio Streck. Como falar que a PEC 50 de 2023 se coaduna com princípios democráticos? Escrever em caixa alta que a proposta é absolutamente constitucional, afirmar que fortalece a democracia e a assegura o equilíbrio e harmonia e independência entre os poderes e falar em manutenção do Estado Democrático de Direito parece, no mínimo, uma visão solipsista [3], que ignora a própria tradição do constitucionalismo.

Com isso, os problemas se entrelaçam. Há quanto tempo a Crítica Hermenêutica do Problema aponta os problemas de dar às palavras o sentido que se quer? Frequentemente, as colunas do senso incomum e do diário de classe vem reafirmar o óbvio: há limites na interpretação dos conceitos. O significado da constituição não pode ser manipulado longe da sua tradição e da linguagem pública!

Mais uma vez, lembra-se do personagem Humpty Dumpty do livro Alice através do Espelho, exemplo tão usado pelo professor Streck nas aulas presenciais da Unisinos. Lembrando o diálogo [4]:

– Quando eu uso uma palavra – Humpty Dumpty falou, mais uma vez num tom desdenhoso –, ela significa o que eu quero que ela signifique… nem mais nem menos.

– A questão é – Alice falou – se o senhor pode fazer as palavras significarem coisas tão diferentes.

– A questão é – disse Humpty Dumpty – quem é que manda… e isso é tudo.

O ponto central, nesta breve análise, é lembrar que “quem manda” é a Constituição. E não se pode atribuir o significado que se quer à ela. Parafraseando Muller [5], a Constituição pode revidar.


[1] Como indicação de leitura, cito STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. Ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2014 e o STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. São Paulo: Saraiva.

[2] Por todos, indico: Constitutional Democracy in Crisis? Ed. Marl A. Graber, Sanford Levinson and Mark Tushnet. New York: Oxford University Press, 2018

[3] Para o conceito, indico: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: cinquenta temas fundamentais de teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2020.

[4] CARROL, Lewis. Alice através do espelho. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2017, p. 86.

[5] MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. São Paulo: Editora Max Limonad, 2003, p. 105. O parágrafo, na íntegra, expressa o seguinte: “O que se afigura como risco a partir da exclusão herdada do passado, configura ocasião para a luta lega e não-violenta, para a luta legitimadora contra a exclusão: a ocasião de levar essa constituição a sério na prática. Afinal de contas, não se estatuem impunemente textos de normas e textos constitucionais, que foram concebidos com pré-compreensão insincera. Os textos podem revidar”.

Autores

  • é advogado, professor de Processo Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-DF), doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), estágio pós-doutoral no IDP-DF e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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