Opinião

O direito legítimo à reunião e ao protesto nas ruas

Autores

16 de janeiro de 2024, 10h33

Na última década da política brasileira, poucos eventos parecem ter sido tão centrais para a compreensão dos rumos de nossa história recente quanto aquele que ficou conhecido como as Jornadas de Junho. Ali, como se sabe, o ponto de partida foi o aumento das passagens de ônibus e metrô em diversas cidades brasileiras, deflagrando uma onda de protestos que se arrastou pelo Brasil, capitaneada pelo Movimento Passe Livre.

Se a pauta da Tarifa Zero parece ter perdido destaque nas manchetes para outras questões, não é verdade que sua importância para as cidades — e para a política — tenha esmorecido, como revelam as recentes iniciativas de se garantir a gratuidade da tarifa em datas eleitorais, além da decisão da Prefeitura de São Paulo de implementá-la aos domingos. Na última semana, entretanto, o Movimento Passe Livre voltou à pauta. Desta vez, como voz passiva de uma cadeia de eventos sombria e de consequências possivelmente mais profundas.

O advogado Igor Tamasauskas

Na última quarta-feira (10/1), o movimento convocou uma manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus e metrô na cidade de São Paulo, que passaram de R$ 4,40 para R$ 5. Antes mesmo do início do ato, a Polícia Militar deteve 25 pessoas na saída da estação República do Metrô. Destas, segundo reportagem da Ponte Jornalismo feita por Jeniffer Mendonça, sete foram indiciados por tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito e tiveram a prisão preventiva convertida em liberdade provisória, com a determinação para que cumpram uma série de medidas cautelares enquanto durarem as investigações. Na sexta-feira, dia 12/1, o Ministério Público de São Paulo apresentou recurso requerendo a prisão preventiva dos indiciados. Não é possível observar tais fatos sem que se acenda um sinal de alerta quanto aos riscos desse tipo de iniciativa.

Para o delegado responsável pelo indiciamento, a manifestação convocada pelo movimento causaria “um genuíno atentado contra o Estado Democrático de Direito no seu viés de aplicação de políticas públicas prevista na Constituição Federal, não sendo a violência a forma adequada e legal para solução de lides”. Tal raciocínio é pernicioso e esconde armadilhas cujo destino já conhecemos.

A questão, a bem da verdade, pode ser compreendida sob duas perspectivas. Do ponto de vista constitucional, não há dúvidas de que a Constituição de 1988 garante, de forma clara e abrangente, o direito de reunião e de protesto. É evidente que não há, no caso de uma manifestação convocada para reivindicar a gratuidade no transporte público, qualquer pretensão, mesmo que abstrata, de abolição do Estado Democrático de Direito. Ao contrário disso, o que se busca, por meio do ato, é precisamente a efetivação do transporte enquanto direito social, tal qual previsto no artigo 6º da Constituição Federal — e cuja própria inclusão no rol daquele artigo foi fruto das lutas travadas em 2013.

Além disso, não é possível que admitamos a tentativa de enquadrar movimentos legítimos de contestação social à luz dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, sob risco, a um só tempo, de banalizar tal instituto — cuja aplicação adequada pudemos observar em relação à tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8 de janeiro de 2023 — e de violar gravemente o direito ao protesto, ferindo de morte as garantias conquistadas a duras penas ao fim da ditadura militar.

Sob esse aspecto, vale lembrar que a própria Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, promulgada para por fim à antiga Lei de Segurança Nacional, estabelece de forma clara que “Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.

Nesta toada, talvez outro tipo penal seja mais indicado para se lidar com a pretensão autoritária de cerceamento do legítimo direito ao protesto: aquele previsto no artigo 30 da Lei de Abuso da Autoridade, segundo o qual constitui crime “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”.

Assim como devem ser combatidas as tentativas de abolição violenta do Estado de Direito, devemos permanecer atentos para as tentativas de abolição do direito legítimo à reunião, ao protesto e à contestação política feita nas ruas, sem os quais sequer haveria democracia a ser defendida.

 

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!