Opinião

Exceção e regra na 'fuga do Direito'

Autor

  • Tarso Genro

    é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

15 de janeiro de 2024, 9h22

Pier Luigi  Zanchetta publicou um significativo texto sobre a “judicialização da política” na Itália a partir do conhecido escândalo da “Tangentópoli”. O autor afirma que para compreender aquele fenômeno é necessário entender o “momento político e os dados numéricos” do período, bem como as suas coordenadas jurídico-políticas, já que certas características daquele processo partiam de interesses ilícitos diversos, integrados e, quem sabe, costumeiros no tecido institucional e empresarial do país. Sobre aquela especial “opacidade do Direito”, do crime e do Estado italiano, Pasolini dizia que, como intelectual, sempre soube de tudo isso, figurando a situação na seguinte: “sou um intelectual, sei, mas não tenho provas” [1].

Neste contexto é que a situação amadureceu para a magistratura italiana “aproveitar com inteligente determinação” o momento de “restaurar a legalidade” [2], fulminando o establishment político italiano por meio de uma revolução penal-judicial que redundou, mais tarde, no longo reinado de Berlusconi, no qual o sistema de cumplicidade criminosa entre Estado, empresários e políticos usou outros métodos para “naturalizar” práticas de corrupção. Um novo consenso político nacional —  pelo domínio da formação da opinião pelos meios de comunicação nas mãos de Berlusconi — blindava seu esquema político salvacionista da Itália, mudava o sistema partidário e fazia surgir nova elites políticas no país mais refinadas e corruptas que as anteriores da tradição democrata-cristã.

Tarso Genro , ex-ministro da Justiça

A “judicialização da política” é um conceito da Sociologia do Direito e igualmente um  eufemismo útil da Teoria do Direito para incorporar, de forma suavizada na Teoria do Direito e do Estado, o reconhecimento dos nexos indissolúveis entre a política e o direito. A “judicialização da política” é uma “fuga da política”, para aconchegá-lo no espaço do Direito, para manobrar mais facilmente os seus princípios, segundo interesses conjunturais. A “politização do Direito”, por seu turno, é também um extremo da “fuga da política para o Direito”, tornando-o “impuro” — ao contrário da expressão kelseniana — para tentar fixá-lo num espaço menos normativo, mais próximo de ser manobrado pela exceção.

A judicialização da política é uma mediação extrema, usada por sujeitos interessados, que têm a expectativa de obter um poder mais amplo do que aquele que a política estável do sistema liberal-representativo lhes pode oferecer, para aproximarem — de algum modo — o Poder Judiciário de seus projetos de poder. Este pode resistir, acomodar-se ou ceder.

Embora a judicialização da política possa cortejar a exceção como “fuga do Direito”, a emergência da exceção — num cenário político de democracia liberal — não é um problema derivado da maior (ou menor) maturidade das instituições da democracia liberal. A exceção é um espaço essencial de poder, aberto no Direito do liberalismo político, inerente à própria substância da democracia política: a exceção tanto pode ser um recurso para a sobrevivência da regra como um ataque para a sua eliminação total ou parcial.

Diz Rodriguez “que se pode pensar como fuga do Direito a ação de centros de poder político(…) como uma tentativa de criar expedientes para evitar o controle social do processo de tomada de decisões. Tanto em medidas pontuais quanto na instauração de verdadeiros regimes de exceção, como o da prisão de Guantánamo, os EUA têm procurado criar espaços para a tomada de decisões não passíveis de controle social [3]. A exceção, seja minimalista ou amplamente socializada, pode mudar as regras de forma arbitrária, protegê-las, como fazê-las fenecer pela dessuetude.

A questão da “fuga do Direito”, tal como foi formulada pelo autor — apoiado em juristas como Franz Neumann [4] — ordinariamente tem a ver com as crises políticas que enfrentam as democracias liberais na sociedade globalizada, já que, por meio dessa “fuga”, as forças políticas reagem para, idealizadamente, retomar de uma estabilidade perdida, com posturas decisionistas tanto intermitentes como contínuas. E isso ocorre independentemente do estágio de maturidade da democracia constitucional, já que a exceção e a regra têm um convívio perpétuo na essência do liberalismo político.

A modulação dos vínculos, entre a regra e a exceção, é o que permite aferir a maior ou menor segurança jurídica com que o sistema de Direito opera na sociedade, pois na modulação vai sendo desenhada pelos sujeitos políticos em confronto, como interferir no macro cenário ocupado pelo Estado, moldando novos patamares de disputa sobre o sentido dos seus rumos.

O recente processo de exceção aqui no Brasil, durante o governo Bolsonaro (que gradualmente foi afastado por uma sequência de decisões do STF) repôs a normalidade perdida formulada na “voz do líder” que, à medida que se afastava do Direito legitimo, foi primeiro somando acólitos, depois foi perdendo o comando dos seus liderados, que — mais tarde —, por necessidade de sobrevivência política, passaram para o lado da regra. O regime, todavia, não conseguiu, até agora, afastar o assédio contra a ordem, embora tenha mudado positivamente as instituições do país, quando estas conseguiram reduzir o domínio das relações reais de poder, pelas quais buscavam soldar a exceção com as vocações  protofascistas em curso.

O uso periódico da exceção, para o controle político da sociedade ou a sua “decretação”, por períodos longos, tem duas consequências extremas para a funcionalidade dos regimes de liberalismo político: de uma parte, a exceção reorganiza as relações políticas nas sociedades, nos seus aspectos virtuosos, quando seus rumos repousam na constitucionalidade; ou, de outra parte, fazem emergir “lacunas jurídicas” (Windscheid) que presumem a necessidade do seu o preenchimento com  “ideias jurídicas”, que tanto podem apontar para o retorno à constitucionalidade como para sua destruição total ou parcial.

Os “ajustes” da “fuga” e da “exceção” são diversos em cada formação social e a Argentina é um exemplo. Mostraram-se ali, de forma original, os condicionamentos histórico-sociais que atuam sobre uma maior ou menor constitucionalização  de um Estado de Direito moderno em formação. O peronismo, como exemplo crítico desta situação histórica, venceu a dominação conservadora com o avanço de uma legitimidade de modelo populista, no qual as oligarquias perderam força política para incidir sobre o poder de Estado, mas não abriram opções para o ascenso de uma burguesa iluminista, que conviveu razoavelmente com o medo da “revolução peronista”.

Assim, o peronismo, de exceção em exceção, foi dessocializando a sua capacidade hegemônica e estreitando a sua vocação popular democrática: “El triunfo electoral de Perón y sus dos gobiernos congregaron a sectores sociales del más diverso origen. Aparecía resueltamente como un verdadero Frente Nacional.(…) detrás del conjunto, el Ejército. Este último era el verdadero partido político de Perón, el factor subrogante de una burguesía demasiado débil y confusa para percibir su verdadero papel[5].

Já o fascismo italiano no poder, como ideia de nação e de Estado, adapta tanto a hegemonia ideológica como a força bruta para um novo período de racionalidade estatal como constrói um modelo político ditatorial: “em 27 de fevereiro de 1928, o ministro da Justiça Rocco explicou com clareza o que isso significa: o nascimento de um sistema totalitário cujo corpo eleitoral é convidado apenas para ratificar as decisões tomadas pelo Grande Conselho, elevado a órgão supremo de Estado[6].

A transformação da solidariedade social em coesão total dos cidadãos com o corpo político do Estado, na ditadura, supõe um poder arbitrário uno, no qual o sistema da Constituição transforma a solidariedade num recurso dogmático, que expressa aquela conquista política da solidariedade como mera retórica de poder. No conjunto das relações econômicas e políticas esta legitimidade vem de “tudo o que o mercado representa sob o signo da necessidade” [7].

Essa é a fonte material da nova exceção, permanente e global — a mais universal e completa “fuga do Direito” — fonte extrema da judicialização da política nos tempos que correm e essência da crise do regime democrático liberal-representativo que ainda respira.

 


[1] ZANCHETTA, Luigi Pier. Tangentopoli entre perspectivas políticas y soluciones judiciales. In: IBAÑEZ, Perfecto Andrés (ed.) CORRUPCION Y ESTADO DE DERECHO: EL PAPEL DE LA JURISDICCION ; Madrid: Editorial: TROTTA ;1996 , p.85-89.

[2] IDEM.

[3] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito: um estudo sobre o Direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009. (Série em debate. Direito desenvolvimento justiça) P. XXX.

[4] IDEM. Fuga do Direito: um estudo sobre o Direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009.

[5] RAMOS, Jorge Abelardo, com prólogo de Jorge Coscia. Historia de LA Nación Laationoamericana. Buenos Aires: Continente, 2011, p. 351.

[6] SCURATI, Antonio; tradução Marcello Lino. O Homen da providência.1 ed. Rio de Janeiro: Intrícica, 2022, pg.337.

[7] CRISTODOULIDIS, Emilios; tradução Pedro Conário. Constitucionalismo político e ameaça do “mercado total”. São Paulo, SP:  Editora Contracorrente, 2002, p.122.

Autores

  • é ex-ministro da Justiça, doutor honoris causa da Universidade Federal de Pelotas, autor de livros e artigos de Teoria do Direito e Teoria Política.

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