Direito Civil Atual

Diferenças entre o representante comercial e o agente (parte 2)

Autores

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

15 de janeiro de 2024, 12h04

Na semana anterior, publicou-se coluna na qual se abordou e explicou o problema da diferença entre a figura do representante comercial e do agente no Direito brasileiro (ver aqui). Observou-se os fatores históricos constantes na exposição de motivos da Lei 4.886/65 e do Código Civil, os quais dão alguns indícios das razões pelas quais os dispositivos legais foram positivados.

Nesta segunda parte, tratar-se-á de analisar como a Dogmática contemporânea têm entendido o tema.

ConJur

3. A Dogmática
O texto anterior demonstrou que havia, na exposição de motivos do Código Civil, uma inclinação em entender o contrato de agenciamento como algo idêntico ao contrato de representação comercial, contendo, apenas, uma retificação de nomenclatura. É possível de se observar a Dogmática, em manifestações posteriores ao Código Civil de 2002, afirmando que o CC “a exemplo do direito europeu, abandonou o nomen iuris de ‘representante comercial’, substituindo-o por ‘agente’. Sua função, porém, continua sendo exatamente a mesma do representante comercial autônomo” [1]. Indo nesse mesmo sentido, Rubens Requião, em uma das obras mais importantes sobre o contrato de representação comercial no Direito brasileiro, afirmou que “a representação comercial, denominada na legislação continental europeia de agência, e assim usada pelo Projeto de CC Brasileiro, constitui uma atividade relativamente recente, surgida tardiamente no Direito Comercial” [2].

Mas por que a necessidade de alteração do nome de representante comercial para agente?

Com efeito, a adoção de uma nova terminologia deveu-se ao fato de que o Código trouxe uma unificação do direito das obrigações — civis e mercantis —, de forma que os contratos constantes no Código haveriam de abarcar tanto as atividades civis quanto as atividades mercantis. Daí por que o nome “representante comercial” soava inadequado. É o mesmo motivo, aliás, pelo qual o artigo 710 do CC refere-se apenas a “negócios”, ao contrário do artigo 1º da Lei 4.886/65, que falava em “negócios mercantis[3].

A Dogmática que defende a identidade da representação comercial e do agenciamento sustenta que — aliada a essa justificativa de uma mera alteração de nome por razões sistemáticas advindas da unificação do direitos das obrigações — conceitualmente os tipos contratuais são um só, já que o artigo 1º da Lei 4.886/1965 e o artigo 710 do CC tratam da mesma prestação principal, que é a mediação para a realização de negócios, com as mesmas características, a saber (a) habitualidade, (b) autonomia, (c) atuação em zona delimitada [4].

As posições contrárias, contudo, tratam de elaborar alguns traços distintivos dos dois tipos contratuais.

É possível observar obras afirmando que o toque distintivo entre agente e representante estaria na conclusão do negócio (sendo esse, conforme se observará na próxima coluna, o argumento mais utilizado pela jurisprudência): à medida que o representante tem a obrigação de concluir a negociação, o agente não a teria, sendo responsável apenas por prepara-la: “o representante comercial é mais do que um agente, porque seus poderes são mais extensos. O agente prepara o negócio em favor do agenciado; não o conclui necessariamente. O representante deve concluí-lo. Essa é sua atribuição precípua” [5].

Essa argumentação tem raízes em uma distinção elaborada por Pontes de Miranda, que sustenta que “o agente não se há de confundir com o representante, nem com a agência de empresa (…). O agente que conclui não é simples agente: há o plus da representação, ou da comissão. O agente, em senso próprio, intermedeia, sem se encarregar de conclusões de negócios jurídicos. Ou se ocupa de vendas, ou de compra, ou de transportes, ou de seguros; não vende, não compra, não transporta, não segura. Se o auxiliar conclui, ou é mandatário, ou procurador, ou comissionário. O contrato de representação não se pode confundir com o contrato de agência: agenciar não é fazer negócio, não é concluir contratos ou outros negócios jurídicos” [6].

A questão que permanece é que essa afirmação, embora possa encontrar respaldo conceitual na doutrina que antecede o Código Civil — afinal, Pontes de Miranda a escreveu antes da 2002 —, pode apresentar dificuldades no que se refere a sua atualidade sob a perspectiva da legislação.

Para Pontes de Miranda, o contrato de agência se firma para a “promoção” de negócios, não para a sua conclusão, justamente porque o agente não é representante legal do proponente, ou seja, não pode emitir declarações de vontade por ela [7]. Porém, o artigo 710 do Código Civil afirma expressamente que “pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios” (grifou-se). Ao utilizar-se o substantivo “realização”, tem-se uma escolha por uma palavra que tem como significado a “1. Efetivação: cumprimento, execução […] 2. Execução: (consum)ação, cumprimento, efetivação” [8]. Ou seja, não se trata de uma mera promoção, mas da promoção da efetivação do negócio. Se a ideia fosse a de que os negócios não precisariam ser concluídos para que a atividade do agente estivesse cumprida, então não haveria por que a palavra realização constar no texto. Bastaria que o artigo fizesse a previsão de que o agente precisaria promover negócios; não a realização de negócios.

Além disso, o artigo 714 do CC afirma que “o agente ou distribuidor terá direito à remuneração correspondente aos negócios concluídos dentro de sua zona, ainda que sem a sua interferência”, sugerindo, portanto, que o fato gerador da remuneração do agente é a própria conclusão dos negócios e não a sua mera promoção. Mais ainda: o parágrafo único do artigo 710 prescreve que “o proponente pode conferir poderes ao agente para que este o represente na conclusão dos contratos”, do que se tem indícios, portanto, que os poderes para a emissão de declarações de vontade em nome do proponente é um elemento meramente acidental do negócio, i.e., uma faculdade. Não é esse poder de representação que distingue a agência de outros tipos contratuais.

Por outro lado, enfraquecendo argumento de que o representante poderia emitir declarações de vontade pelo representado, o artigo 1º da lei de representação destaca que o representante comercial atua para a “a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para transmiti-los aos representados”, sugerindo, portanto, que o representante não tem o poder de agir em nome do representado, mas apenas de mediar pedidos e propostas e transmiti-las.

Outra distinção criada envolve a dicotomia entre pessoa natural e pessoa jurídica. Sustenta-se que, pelo fato de que a lei de representação menciona expressamente as pessoas “jurídica ou física” (artigo 1º), ao passo que o artigo 710 do CC fala apenas em “pessoa”, haveria uma restrição do contrato de agência, reservando-o apenas às pessoas naturais. Essa restrição, contudo, parece não fazer sentido por um critério negativo: se assim o quisesse o legislador, teria previsto essa exclusão de forma deliberada [9].

Existem, ainda, outras tentativas de distinção: que a representação estaria reservada aos negócios mercantis e a agência aos negócios civis ou que a obrigação do representante seria de meio e do agente seria de resultado. Essas distinções, contudo, parecem sofrer do problema de ausência de previsão legislativa, uma vez que a Lei 4.886/1965 e o CC/02 não fornecem elementos textuais que sustentam essas hipóteses [10].

A jurisprudência também apresenta algumas variações, mas serão objeto de análise da terceira parte desta coluna.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] THEODORO JR., Humberto. Do contrato de agência e distribuição no novo Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 812, p. 22–40, jun. 2003.

[2] REQUIÃO, Rubens. Do representante comercial. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 1.

[3] THEODORO JR., Humberto. Do contrato de agência e distribuição no novo Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 812, p. 22–40, jun. 2003. Considerando a experiência comparada, alguns autores sustentam que a lei 4.886/1965, apesar de tratar da representação comercial, em verdade não tratou de outra coisa senão o próprio contrato de agenciamento: “O equívoco no direito brasileiro deve-se principalmente ao nomen juris, empregado na Lei 4.886/65, a qual, mesmo tendo por título Lei do Representante Comercial, em verdade, trata de regular o contrato de agência conforme se depreende do seu art. 1º. Esse equívoco no texto legal levou não só a doutrina, como também a jurisprudência a afirmar que são sinônimos. Mas esse argumento não procede: não é por ter sido atribuído à Lei 4.886/ 65 o nome de Lei do Representante Comercial que o contrato tipificado no seu art. 1º passou a ser o de representação, e não de agência, pois tanto o nome da lei como o de um contrato não são o que lhe caracterizam, mas, sim, os seus elementos” (HAICAL, Gustavo Luís da Cruz. O contrato de agência e seus elementos caracterizadores. Revista dos Tribunais, v. 877, p. 41–74, nov. 2008).

[4] COSTA, André Brandão Nery. Efeitos legais do conflito tipológico entre o contrato de agência e o de representação comercial autônoma. Revista de Direito Privado, v. 96, p. 43–76, dez. 2018. Dos autores até aqui referenciados, que entendem pela identidade das figuras, vale citar também NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 13.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 1121.

[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos. 17. São Paulo: Atlas, 2017.

[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações: expedição; contrato de agência; representação. Atualizado por Claudia Lima Marques, Bruno Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018. p. 100.

[7] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações: expedição; contrato de agência; representação. Atualizado por Claudia Lima Marques, Bruno Miragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018. p. 85.

[8] REALIZAÇÃO. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manuel de Mello. Dicionário Sinônimos e Antônimos. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 687.

[9] Nesse sentido, “em complementação a esse argumento, o art. 719 do Código Civil, in fine, menciona os herdeiros como sucessores do direito do agente à remuneração pelos serviços prestados, mas impedidos por evento de força maior. O herdeiro, por corresponder à pessoa física, induziria à conclusão de que a atividade de promoção de negócios poderia ser realizada apenas por ela, e não por pessoa jurídica. No entanto, a previsão genérica, referindo ao agente como ‘pessoa’, não permite concluir, em interpretação demasiadamente restritiva, que o contrato de agência deveria necessariamente ser celebrado por pessoa física” (COSTA, André Brandão Nery. Efeitos legais do conflito tipológico entre o contrato de agência e o de representação comercial autônoma. Revista de Direito Privado, v. 96, p. 43–76, dez. 2018).

[10] Para um aprofundamento, ver COSTA, André Brandão Nery. Efeitos legais do conflito tipológico entre o contrato de agência e o de representação comercial autônoma. Revista de Direito Privado, v. 96, p. 43–76, dez. 2018.

Autores

  • é advogado, professor na Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp), doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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