Linha dura

Quem fizer discurso contra democracia será coibido, diz ministro do TSE

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3 de abril de 2024, 8h52

O ministro do Tribunal Superior Eleitoral Floriano de Azevedo Marques Neto, advogado e ex-reitor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), proferiu um voto icônico no julgamento que culminou na inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por oito anos. Marques usou analogias e foi direto ao analisar as condutas do capitão reformado, explicando de forma didática o porquê de seu voto pelo afastamento de Bolsonaro das urnas até 2030.

O ministro do TSE Floriano Azevedo Marques Neto

“Como, sem vulgarizar e sem negar a complexidade daquilo que estou decidindo, consigo comunicar à população (uma decisão) de forma compreensível? Primeiro, preciso explicar o que realmente está em conflito. Qual é a controvérsia? O que nós estamos discutindo? De outro lado, se for a minha compreensão daquilo, (tenho de explicar) o meu fundamento para decidir para cá ou para lá, de maneira que as pessoas me entendam”, disse ele em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Perguntado sobre a relação do didatismo com as discussões em torno do acesso ao Judiciário, que se comunica por meio de linguagem inacessível à maioria das pessoas, Marques fez a seguinte crítica: “O juiz não pode ter a pretensão de ser um identificador iluminado, inquestionável. Direito é controversial. Tenho de explicar, mesmo para aqueles que não concordam comigo, quais são os fundamentos, as razões e as bases que me levaram a decidir em um sentido e não em outro.”

Nomeado para a corte em maio do ano passado, o ministro vai atuar em um pleito peculiar neste ano: será a primeira ida dos brasileiros às urnas após a intentona golpista de 8 de janeiro de 2023. Marques diz que discursos de ódio, contra as urnas eletrônicas e de teor antidemocrático serão coibidos “nos termos da lei”.

“É o mínimo que se exige da Justiça Eleitoral e do Tribunal da Democracia, que aqueles que se utilizam das ferramentas democráticas para fazer um discurso de destruição da democracia, no mínimo, tenham coatados, coibidos, cerceados os seus intentos, seja mediante punições, multas, cassação de registro ou cassação de mandatos, porque isso é a negação do regime democrático.”

Sobre as discussões em relação a gastos na pré-campanha eleitoral, tema que suscitou o processo de cassação contra o senador e ex-juiz Sergio Moro (União Brasil-PR), e a mudança de domicílio eleitoral em meio ao mandato, como feito pela sua mulher, a deputada federal Rosângela Moro (União Brasil-PR), que devem chegar em breve ao TSE, Marques não adianta suas posições, mas diz que, no caso específico do ex-magistrado, “o tema não é inédito”.

“Sempre surgem novas questões que merecem novas normas, novos posicionamentos jurisprudenciais, e aí temos justamente essa dinâmica viva da Justiça Eleitoral. Mas eu não diria que existe ausência de tratativa normativa por parte de gastos em pré-campanha.”

Leia a seguir a entrevista:

ConJur Qual balanço o senhor faz de seu período no cargo e quais adaptações teve de fazer para a atuação na magistratura?
Floriano de Azevedo Marques Neto Estou há quase 34 anos na advocacia e nunca fui juiz, salvo em tribunais arbitrais. O primeiro desafio é reorganizar o seu esquema mental para olhar uma linha, uma demanda, não na perspectiva de quem defende o interesse de uma das partes, mas na perspectiva da equidistância entre as partes. O segundo ponto é que o Tribunal Superior Eleitoral tem uma atividade administrativa muito intensa, ele não só organiza as eleições, ele é uma entidade cartorial, de registro de atos de partido, de análise da conformidade de atos de partido. O que foi mais dificultoso para mim foi a parcela de atribuições que a Justiça Eleitoral tem em matéria criminal. Eu estudei Direito Penal na faculdade, trabalhei um pouco com Direito Penal quando estudante em estágio, mas nunca mais havia me envolvido. Tive de, confesso, voltar aos livros, estudar um pouco para me posicionar no sentido de bem julgar questões criminais eleitorais.

ConJur O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro foi o momento mais sensível dessa trajetória inicial no TSE?
Floriano de Azevedo Marques Neto Quem se dispõe a julgar não pode muito avaliar, amedrontar-se pela repercussão. A Justiça Eleitoral tem na sua alçada questões que repercutem publicamente de forma muito contundente, mas qualquer juiz, qualquer um que exerce a magistratura, sempre tem em vista que a decisão que ele toma, o exercício daquela sua função adjudicante, impacta muito e gravemente a vida da pessoa. O que realmente a Justiça Eleitoral traz como um diferencial desafiador é que o jurisdicionado é o mundo político. São pessoas que, em geral, recebem uma legitimidade total ou parcialmente conferida pelo eleitor. Isso nos traz um reforço de responsabilidade porque, efetivamente, a Justiça Eleitoral, pela sua própria constituição estrutural, tem como consequência ser, talvez, a parcela do Judiciário mais interligada, mais conectada, mais interdependente do sistema político.

ConJur  Revisitando seu voto naquele julgamento, fica claro que houve um esforço de se comunicar diretamente com as pessoas, fugindo um pouco dos termos técnicos. O senhor também usou algumas analogias para deixar o entendimento mais fácil. O senhor acredita que o Judiciário precisa se empenhar mais para conversar com a sociedade?
Floriano de Azevedo Marques Neto — Sim. O Judiciário, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, tem assumido um protagonismo social muito destacado. A partir do momento em que você assume esse protagonismo, você tem o dever de se comunicar com a sociedade, que está cada vez mais interessada nas discussões judiciais. O desafio que se põe é como você se expressa e dialoga com a sociedade sem vulgarizar, sem reduzir a atividade jurisdicional. O que, para mim, é um facilitador? Há mais de 30 anos eu faço isso na minha atividade docente. O que um bom professor de Direito tem de fazer, e não estou dizendo que eu sou bom, mas o que é o ideal, é conseguir transmitir o conteúdo do que você ensina sem omitir a sua complexidade, de forma didática e compreensível para um público que não tem com ele a familiaridade que você, por dever do ofício, tem. A mesma coisa vale para o Judiciário. Como eu, sem vulgarizar, sem negar a complexidade daquilo que eu estou decidindo, consigo comunicar à população de forma compreensível? Para isso, eu preciso ter dois esforços. Primeiro, o de explicar o que realmente está em conflito. Qual é a controvérsia? O que nós estamos discutindo? E, de outro lado, se for a minha compreensão daquilo, o meu fundamento para decidir para cá ou para lá, de maneira que as pessoas me entendam. Elas não precisam concordar comigo. O juiz não pode ter a pretensão de ser um identificador iluminado, inquestionável. Direito é controversial. Tenho de explicar, mesmo para aqueles que não concordam comigo, quais são os fundamentos, as razões e as bases que me levaram a decidir em um sentido e não em outro. Porque se um juiz não consegue se comunicar, a impressão que ele passa para a população, em especial para aqueles que não concordam com a decisão dele, é de que ele é um autocrata decisionista.

ConJur Do ponto de vista do TSE, como o movimento golpista de 8 de janeiro de 2023 vai influenciar na eleição deste ano? O que vai mudar na atuação do tribunal?
Floriano de Azevedo Marques Neto Discursos de ódio, discursos antidemocráticos e desafios infundados ao funcionamento das instituições democráticas não vão ser aceitos e vão ser coibidos dentro da lei. Seja o 8 de janeiro, seja o abuso do poder dos meios de comunicação, seja o discurso de fake news, seja o discurso de desafio às urnas. Esses discursos vão ser coibidos e é o mínimo que se exige da Justiça Eleitoral, que aqueles que se utilizam das ferramentas democráticas para fazer um discurso de destruição da democracia, no mínimo, tenham coatados, coibidos, cerceados os seus intentos, seja mediante punições, multas, cassação de registro ou cassação de mandatos, porque isso é a negação do regime democrático.

ConJur Como equilibrar a necessidade de coibir determinadas práticas nas eleições, como a propagação de fake news e os discursos de ódio, com uma mensagem à sociedade de que não se trata de revanchismo contra o governo anterior e seus apoiadores?
Floriano de Azevedo Marques Neto As decisões da corte eleitoral não são políticas, mas elas inevitavelmente afetam a política. Uma corte eleitoral discute conflitos que estão no cerne do regime democrático, a disputa pelo poder do Estado, pelo Parlamento, pelos órgãos executivos, dentro de regras democráticas. Elas não são políticas por si, elas têm impacto na política. Se a sua tese está correta, eu acho ótimo. Quanto mais holofote, quanto mais gente escrutinando as decisões, quanto mais exposição à crítica pública essa decisão tem, melhor o esforço do juiz para julgar bem. Estou aqui há muito pouco tempo, também devo ficar pouco tempo, mas posso dizer que o que me move é dar a decisão mais justa, mais bem fundamentada e mais clara e compreensível para que a crítica, que será inevitável, seja uma crítica não baseada em suposições de subjetividade, mas baseada em uma discordância dos fundamentos que eu adoto como causa de decidir.

ConJur Ainda sobre a intentona golpista, qual a percepção do senhor nesses últimos 15 meses? O cenário político se tornou menos tóxico?
Floriano de Azevedo Marques Neto A temperatura baixou, mas olhando para o mundo, e não mais para o Brasil, eu diria que nós vamos viver nos próximos anos ainda em um cenário em que atores usam a democracia para querer com ela acabar. Então, eu acho que o ambiente político está menos tóxico, para usar a sua expressão, mas eu não diria que a toxicidade foi extirpada, é sempre possível que a gente volte a ter eventos que vão ter de ser enfrentados, como vêm sendo enfrentados até agora.

ConJur Sobre a resolução que o TSE aprovou recentemente em relação a fake news, deep fakes e congêneres, o senhor acredita que será suficiente para coibir desinformações e ataques nas eleições?
Floriano de Azevedo Marques Neto Não sei dizer se ela é suficiente, mas ela é necessária. O que o tribunal faz é refletir nas suas normas infralegais o estado da jurisprudência construída no período anterior. Essas normas que foram agora publicadas consolidam o aprendizado do exercício contínuo do tribunal ao longo dos últimos anos. Não temos a pretensão de conseguir antever o que vai acontecer daqui a seis meses. Quando a gente trata desses temas, nós podemos não estar capturando uma tecnologia que vai surgir nos próximos meses, ou uma aplicação das tecnologias já existentes que vai trazer desafios novos. E, para fazer isso, teremos de enfrentar no caso concreto e na jurisprudência. O tribunal não tem a pretensão de querer congelar em uma norma todas as possibilidades de abusos, todas as possibilidades de desvios, todas as possibilidades de alteração da vontade do eleitor, em especial aquelas engendradas pelas ferramentas digitais.

ConJur A redação do PL das Fake News agrada ao senhor?
Floriano de Azevedo Marques Neto — O PL tem muitas versões e muitos aspectos. Ele tem aspectos de revisão do artigo 19 (do Marco Civil da Internet), da responsabilidade das plataformas, questões relativas ao pagamento por conteúdo jornalístico, que é uma outra disputa, relativas ao pagamento pelo uso das redes de transporte de dados, de comunicação pelos provedores de conteúdo, que é uma outra discussão muito polêmica. Então, o PL padece justamente de tentar enfrentar todas essas discussões. E aí os interesses são múltiplos e muito multifacetados. Então, eu não diria que é possível cravar que estamos no estágio ideal de um projeto de lei, porque se estivéssemos, a lei teria sido editada.

ConJur Estamos atrasados em relação à regulamentação das plataformas digitais?
Floriano de Azevedo Marques Neto Essa é uma questão do Congresso, mas se eu for abrir minha panorâmica, esse não é um problema do Brasil. O Congresso americano tem debatido isso e também não tem conseguido chegar a um ponto de consenso. A União Europeia está um pouco à frente, mas nós também vivemos uma dificuldade para os Estados nacionais de incorporar à sua legislação doméstica diretrizes da comunidade. Nós, no tribunal eleitoral, dentro da margem que nós temos, porque nós não podemos criar direito novo, estamos em um ponto que o nosso grau de conhecimento permite. Agora, atrasados em relação à tecnologia sempre vamos estar. Porque o tempo de produzir uma norma, chegar a um consenso, editá-la e dar a ela enforcement é sempre mais lento do que o avanço tecnológico.

ConJur Ainda sobre regulamentações, o senhor acredita que é necessária uma lei específica sobre gastos de pré-campanha, tendo em vista o processo de cassação do senador Sergio Moro?
Floriano de Azevedo Marques Neto Obviamente eu não posso falar de um caso que pode chegar aqui, mas posso dizer o seguinte: quando a gente olha para a jurisprudência e olha para a normativa, existe tratamento para isso. Existe já um arcabouço que permite que a Justiça Eleitoral, em qualquer das suas instâncias, analise gastos de pré-campanha. Esse tema não é um tema propriamente inédito, inusitado. O que sempre acontece, e a Justiça Eleitoral tem esse caráter dinâmico, é que sempre surgem novas questões que merecem novas normas, novos posicionamentos jurisprudenciais. Mas eu não diria que existe ausência de tratativa normativa por parte de gastos em pré-campanha.

ConJur E o senhor acredita que será necessário que o TSE formule norma ou produza jurisprudência em relação à mudança de domicílio eleitoral em meio ao mandato, como ocorreu com a deputada federal Rosângela Moro?
Floriano de Azevedo Marques Neto Dentro da escala de produção do Direito, nós temos a Constituição, temos as leis, nas margens que o legislador permite, e, a partir daí, a tradução daquele comando, no caso concreto, cabe à jurisprudência. E a jurisprudência eleitoral é hiperdinâmica, principalmente por dois vetores. Primeiro, porque o mundo que lida (com) a Justiça Eleitoral é muito dinâmico. Surgem permanentemente novas questões, novos comportamentos e novos conflitos. E, de outro lado, ela é muito dinâmica porque a composição das cortes eleitorais é dinâmica. No Tribunal Superior Eleitoral, no meu caso, dos juízes juristas, não há vitaliciedade, e quem fica mais tempo como titular fica quatro anos. Portanto, a composição das cortes muda e muitas vezes a jurisprudência sobre um determinado tema muda. Seja porque o conflito é novo, a discussão é nova, seja porque a composição dos tribunais também é cambiante. Então é muito difícil cravar um entendimento assim ou assado. O que nós temos mesmo é a necessidade de olhar cada caso com as suas características, com as suas nuances.

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