Diário de Classe

Precisamos falar sobre realismo jurídico

Autor

  • Thales Delapieve

    é advogado doutorando em Direito Público (Unisinos) mestre em Direito (FMP) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

9 de março de 2024, 8h00

O quê é o Direito? Eis a pergunta de um milhão de dólares. A pergunta de um milhão de teses. A pergunta de um milhão de (tentativas) respostas. Há muito tempo os estudiosos da Teoria do Direito buscam oferecer uma resposta adequada a essa questão. Jusnaturalistas tentaram responder. Positivistas (todos os tipos deles) tentaram responder. Enfim, ao longo dos séculos essa é uma pergunta que ainda permanece sendo repetida frequentemente e sobre a qual novas respostas vão sendo formuladas.

Porém, há um certo grupo que defende que para essa pergunta tão complexa há uma resposta muito simples (e simplória): Direito é aquilo que os tribunais dizem que ele é. A essa posição chamamos de realismo jurídico.

O realismo jurídico é uma das muitas faces do ceticismo jurídico, para o qual o Direito em si não possui valor próprio ou autonomia perante aqueles que Lenio Streck denomina de predadores exógenos do Direito: a moral; a política e a economia. Da mesma forma, para os céticos, os textos jurídicos também não possuem valor, pois são indeterminados. Portanto, se o texto jurídico é indeterminado, cabe ao intérprete atribuir sentido ao texto; se o intérprete “oficial” do texto legal é o Poder Judiciário, assim, a norma possível de ser extraída daquele texto é que o Judiciário disser que ela é.

Apesar de a questão ser premente no Brasil, poucos estudiosos se debruçaram sobre o tema do realismo jurídico e o impacto que este gera no dia a dia dos operadores do Direito no país. No entanto, sem dúvida alguma quem mais falou sobre o a assunto e vem alertando acerca dos perigos da adoção dessa concepção realista pelos próprios tribunais do país é, sem dúvida alguma, o professor Lenio Streck.

Duas escolas

O surgimento do realismo jurídico enquanto doutrina pode ser atribuído a duas escolas que, embora possuam intersecções – naquilo que diz respeito ao ceticismo em relação às regras jurídicas e à coerção enquanto elemento essencial do Direito –, se mostram distintas: a escola do realismo norte-americano e do realismo escandinavo.

Em seu Dicionário de Hermenêutica Jurídica, o professor Lenio Streck aponta que os adeptos do realismo são conhecidos por adotar a seguintes posições:

“a. mantêm sua atenção nas mudanças e não sobre o caráter estático da realidade jurídica; b. afirmam que os juízes exercem uma atividade criativa sobre o Direito; c. o Direito é concebido não como fim, mas como meio para alcançar objetivos sociais; d. assumem uma atitude científica direcionada à observação dos fatos sociais; e. em sua concepção, o conjunto de regras jurídicas não se coloca como o principal objeto de análise pela Ciência do Direito; f. criticam os conceitos jurídicos tradicionais e as normas entendidas em sentido tradicional, e advogam que essas últimas nada mais seriam que “profecias” a indicar o que os tribunais provavelmente irão fazer” [1].

Corrosão interna

O objetivo deste texto não é esmiuçar essas escolas realistas e nem mesmo tecer considerações sobre como estas se desenvolveram em seus países de origem, mas sim falar em como noções trazidas do realismo jurídico (sobretudo do realismo norte-americano), ainda que nem sempre de forma consciente vem corroendo o Direito brasileiro por dentro.

Afinal, conforme muito bem aponta o professor Lenio Streck, além dos predadores exógenos do Direito, anteriormente referidos, há os predadores endógenos do Direito: subjetivismo, decisionismo, ativismo, pamprincipiologismo, ponderação, entre outros. E qual é o combustível que alimenta esses predadores endógenos? Sem dúvida alguma é o realismo jurídico.

De fato, o realismo jurídico se estabeleceu como teoria do dominante para explicar o Direito no Brasil. Os tribunais superiores em especial se valem dessa concepção realista do Direito como ferramenta de autoridade, afinal ao serem colocados como intérpretes máximos da legislação federal, no caso do Superior Tribunal de Justiça, e da própria Constituição, no caso do Supremo Tribunal Federal, não é incomum que, ao invés de interpretar dispositivos, os tribunais reescrevam a norma conforme entendem adequada.

Realismo retrô

Nesse sentido, não é surpresa que ministros do Supremo Tribunal Federal já tenham citado em Plenário a celebre frase do Chief Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos nos anos 1930, Charles Evan Hughes: “the Constitution is what the judges say it is”. Ainda que a frase em questão possua um determinado contexto e tenha sido proferida em um discurso de Hughes quando ele ainda era governador do estado de Nova York – antes mesmo de tornar Justice da Suprema Corte – a mensagem era clara: a constituição são apenas palavras até que o Judiciário lhes atribua sentido prático.

É baseado em premissas como essas que no Brasil se instalou aquilo que o professor Lenio Streck chama de “realismo retrô”[2], um tipo de realismo voltado a esse pensamento do passado, mas que quer estar sempre na moda. Isso nada passa de um realismo caquético sobre o qual se coloca uma nova roupagem e se tenta vender como algo moderno.

Na prática esse realismo se manifesta de diversas maneiras perversas as quais pouco a pouco vão corroendo as fundações sobre as quais o ordenamento jurídico deve estar estabelecido e fulminando a pretensão de coerência e integridade das normas.

Isso ocorre, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal transforma a “Repercussão Geral”, que foi introduzida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 como um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário – visando à diminuição do volume de recursos que aportava no tribunal diariamente –, em uma ferramenta de julgamentos por meio de teses abstratas absolutamente dissociadas dos casos concretos que deram origem aos recursos em questão.

Da mesma forma, essa concepção realista se manifesta quando o Supremo, partindo da premissa de que a “Repercussão Geral” faz com que a decisão proferida em um recurso extraordinário seja replicada em outros recursos extraordinários sobre tema, possa ser entendida como uma decisão que deve ter efeitos vinculantes e erga omnes a despeito da expressa previsão constitucional em sentido contrário.

Por conseguinte, se o julgamento é efetuado por meio de teses e as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre matéria constitucional possuem os mesmos efeitos tanto em sede de controle de concreto de constitucionalidade quanto em sede de controle abstrato de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal declara que “está abstrativizado o controle concreto de constitucionalidade”.

Ativismo judicial e a carta na manga

O passo seguinte, é reescrever na base da autoridade o artigo 52, X da Constituição Federal, que expressamente estabelece procedimento para que a decisão proferida em sede de controle concreto seja estendida mediante a suspensão do dispositivo em questão pelo Congresso Nacional (sobre esse tema, ver mais aqui).

Veja-se, portanto, como o realismo serve de combustível para o ativismo judicial, que é sempre danoso à democracia porque gestado dentro da vontade do julgador em detrimento da integridade do sistema e da autoridade da Constituição.

Realismo também é um “princípio” sacado da manga pelo julgador para deixar de aplicar uma regra clara; é uma teoria estrangeira importada ad hoc para fulminar uma pretensão legitimada no Direito. Uma subversão de um conceito jurídico – como por exemplo “dolo eventual” – para levar um caso a júri popular e aumentar uma chance de condenação.

O Fator Julia Roberts

Se a Constituição é apenas um texto sem valor até que lhe seja atribuído sentido pelo intérprete, o que impede que o Supremo diga que onde se lê “dia” deva ser lido “noite”. Afinal se a Constituição é o que Supremo diz que ela é, quem poderá dizer que o Supremo está errado.

É precisamente aí que entra aquilo que o professor Lenio define como “Fator Julia Roberts”[3], originado do filme “Dossiê Pelicano” onde a personagem de Julia Roberts diz: “O Supremo está errado”! É isso, ter a coragem de dizer que o Supremo também é capaz de errar. Dizer que o Supremo está errado não é atacar a instituição, mas exercer a crítica própria que deve ser feita pela doutrina.

O problema é que no Brasil poucos têm coragem de se opor ao que os tribunais dizem. E os adeptos da chamada “doutrina-que-não-doutrina”, ao invés de apontar os equívocos dos tribunais, suas incongruências, as recepções teóricas realizadas etc., preferem se limitar a ser glosadores de jurisprudência e comentaristas de informativos judiciais.

Da mesma forma, quando muitos advogados em suas petições e professores em sala de aula repetem chavões clássicos como: “O Supremo já decidiu que isso não é aplicável” ou “Superior Tribunal de Justiça não entende dessa maneira” como forma de interditar o debate acerca de intepretação das leis pelos demais operadores do Direito, colaboram imensamente para a sedimentação do realismo jurídico como teoria dominante sobre o Direito no Brasil.

O necessário constrangimento epistemológico

O que muitos não percebem é que ao procederem dessa maneira estão atacando a si mesmos: sob a perspectiva realista, o Direito é o que os tribunais dizem que ele é; portanto, para que são necessários advogados, professores ou procuradores? Bastam juízes. No entanto, o realismo jurídico é também autofágico porque se há um tribunal acima que irá definir o que é o Direito, qual a necessidade de todos aqueles que estão abaixo?

Lutar contra esse realismo jurídico é um dever da academia, dos advogados e de todos aqueles que presam pela autonomia do Direito. Lutar contra o realismo é lutar também pela preservação da institucionalidade e pela valorização do Legislativo e do Executivo enquanto Poderes da República, o Poder Judiciário não se basta. Diminuir os demais Poderes colabora para uma infantilização da política e ausência accountability dos legisladores e gestores em suas tomadas de decisão.

É justamente nesse ponto que a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) se apresenta como uma teoria contra hegemônica e potente em face dos problemas que o Brasil tem vivenciado face à jurisprudencialização do Direito. Exercer o constrangimento epistemológico é colaborar para evolução do Direito e para a preservação da Constituição.

Combater o realismo jurídico também é lutar pela preservação da democracia, porque realismo rima com autoritarismo.

 


[1] Streck, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da. – 2. ed. – Belo Horizonte : Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos ; Letramento ; Casa do Direito, 2020. p. 377.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito – São Paulo : Editora Dialética, 2023. p. 199.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito – São Paulo : Editora Dialética, 2023. p. 81.

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