Opinião

O 'Não é Não' virou lei, mas com restrições

Autores

  • Thais Pinhata de Souza

    é advogada com experiência nas áreas de Direito Criminal e Fashion Law mestre e doutoranda em Direito pela Universidade do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo professora do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ (Núcleo de Direitos Humanos) e consultora do Departamento Jurídico em Direito Antidiscriminatório do Instituto Nelson Mandela no Rio de Janeiro.

  • Raquel Rosa

    é advogada mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ladih-UFRJ) e ex-coordenadora do Projeto de Extensão "Mulheres Encarceradas" da Faculdade de Direito da UFRJ no qual ainda atua como professora e advogada.

13 de janeiro de 2024, 17h17

Em 29 de dezembro de 2023 foi publicada e em 180 dias entra em vigor a Lei nº 14.786/2023. Conhecida como protocolo do “Não é Não”, a lei é inspirada no “No Callem”, que entrou em vigor em 2018 em Barcelona (Espanha), visando combater violência sexual em espaços privados noturnos, o que culminou inclusive na prisão do jogador brasileiro de futebol Daniel Alves, acusado de estuprar uma mulher em uma boate da cidade.

Com a Lei nº 14.786/2023, mulheres que sofrerem constrangimento — entendido como qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestar a sua discordância com a interação —  ou violência — entendida, por sua vez, como o uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, de acordo com a legislação penal em vigor — em determinados ambientes terão proteção.

Tal amparo se traduz, na prática, em serem prontamente protegidas pela equipe do estabelecimento a fim de que possam relatar o constrangimento ou a violência sofridos; serem informada sobre os seus direitos; serem imediatamente afastadas e protegidas do agressor; terem respeitadas as suas decisões em relação às medidas de apoio previstas na lei; terem as providências previstas na lei cumpridas com celeridade; serem acompanhada por pessoa de sua escolha; definirem se sofreram constrangimento ou violência, para os efeitos das medidas previstas nesta lei; e serem acompanhadas até seus transportes, caso decidam deixar o local.

Em relação à produção do evento, esta passa, com a lei, a ter diversos deveres: (1) assegurar que na sua equipe tenha pelo menos uma pessoa qualificada para atender ao protocolo “Não é Não”; (2) manter, em locais visíveis, informação sobre a forma de acionar o protocolo “Não é Não” e os números de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180; (3) certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência; (4) se houver indícios de violência, proteger a mulher e proceder às medidas de apoio previstas nesta Lei; afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual, facultado a ela ter o acompanhamento de pessoa de sua escolha; colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato; solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente; isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente; (5) se o estabelecimento dispuser de sistema de câmeras de segurança, garantir o acesso às imagens à Polícia Civil, à perícia oficial e aos diretamente envolvidos e preservar, pelo período mínimo de 30 dias, as imagens relacionadas com o ocorrido.

Facultativamente, os estabelecimentos sob a égide da lei poderão, entre outras medida, adotar ações que julgarem cabíveis para preservar a dignidade e a integridade física e psicológica da denunciante e para subsidiar a atuação dos órgãos de saúde e de segurança pública eventualmente acionados; retirar o ofensor do estabelecimento e impedir o seu reingresso até o término das atividades, nos casos de constrangimento; e criar um código próprio, divulgado nos sanitários femininos, para que as mulheres possam alertar os funcionários sobre a necessidade de ajuda, a fim de que eles tomem as providências necessárias.

Ocorre que a lei só é aplicada em determinados locais, quais sejam no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica — como se em ambientes sem álcool não houvesse constrangimento e violência contra a mulher, e a organizações esportivas.

Contudo, o protocolo diz expressamente que não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa, protegendo a mulher em boates, mas deixando-a à própria sorte em eventos religiosos.

Bem verdade que o protocolo faculta que os estabelecimentos que não são obrigados por lei possam optar por estar sob a égide do protocolo, quando vão ostentar o selo “Não é Não – Mulheres Seguras” e constarão de uma lista “Local Seguro Para Mulheres”.

Porém, as medidas trazidas pela lei já poderiam estar sendo praticadas pelos estabelecimentos, de forma que parece pouco crível que empresas isentadas pelos protocolo, principalmente as religiosas, que têm um salvo conduto legal, vão se submeter a uma porção de regras que, uma vez descumpridas, traduzem-se em sanções.

Isso porque, embora genéricas, a Lei nº 14.786/2023 diz que o descumprimento total ou parcial do protocolo “Não é Não” implica advertência e outras penalidades previstas em lei aos estabelecimentos obrigados a respeitar o protocolo. Aos que estiverem sob a égide da lei por escolha, entretanto, o protocolo prevê penalidade, além delas, a revogação da concessão do selo “Não é Não – Mulheres Seguras” e a exclusão do estabelecimento da lista “Local Seguro para Mulheres”.

Dessa forma, certamente a lei é um avanço, mas tem suas falhas ao se limitar a determinados locais e contextos, desconsiderando, com isso, que o constrangimento e a violência contra a mulher fazem parte da estrutura da sociedade brasileira patriarcal, acontecendo, por isso, na realidade, sem as distinções trazidas pela lei.

Autores

  • é advogada criminalista, doutora e mestre em Direito pela USP e professora do projeto de extensão Mulheres Encarceradas, do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.

  • é advogada, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ladih-UFRJ) e ex-coordenadora do Projeto de Extensão "Mulheres Encarceradas" da Faculdade de Direito da UFRJ, no qual ainda atua como professora e advogada.

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