Contas à Vista

Consequências da provável frustração da meta de resultado primário

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

9 de janeiro de 2024, 8h00

A realidade é mais complexa do que a meta normativa de “zerar” o déficit primário em 2024. Já nos primeiros dias do ano, o Ministério da Fazenda assume a hipótese de ser necessária uma revisão da sua audaciosa (e, ao nosso sentir, imprudente) meta de equilibrar as receitas e despesas primárias celeremente até o final deste exercício.

 

Na seara orçamentária, a gestão do tempo é tão importante quanto a disponibilidade pecuniária propriamente dita para cada rubrica. Alongar a estratégia de ajuste das contas públicas tende a ser mais consistente e, por isso, mais crível, porque permite distribuir – ao longo dos exercícios – os efeitos redistributivos das pretendidas expansão das receitas e redução das despesas, pactuando planejadamente com o Congresso as medidas possíveis a cada ciclo anual.

caricatura Élida Graziane Pinto

Desde o envio do respectivo projeto em abril de 2023, era previsível o quão arriscado seria inscrever na lei de diretrizes orçamentárias de 2024 o rápido objetivo de alcançar um resultado primário equilibrado (“déficit zero”). A imprudência a que nos referimos decorre da velocidade do ajuste prometido, que é tão alta, quanto a probabilidade do seu fracasso. Eis a razão pela qual pairam dúvidas a respeito da eficácia das medidas até agora noticiadas pelo governo para alcançar tal meta, diante do que a imprensa alega ser uma verdadeira “encruzilhada fiscal”.

Na linear visão contracionista de alguns analistas do mercado e do próprio governo, aludida encruzilhada somente seria equacionada com a revisão da base de cálculo dos pisos em saúde e educação e com a redução de algumas transferências federativas, já que o Supremo Tribunal Federal remeteu os precatórios para o regime jurídico dos créditos extraordinários no âmbito da ADI 7.064. Todavia, para mitigar tais vinculações que amparam os principais direitos sociais e o pacto federativo, são necessárias emendas constitucionais de complexa negociação política em pleno ano de eleições municipais.

Em 2024, aliás, o piso em educação alcançará 90 anos de vigência, desde o seu estabelecimento inaugural pela Constituição de 1934, vigência essa que somente foi descontinuada pelos regimes autoritários instaurados pelas Constituições outorgadas em 1937 e 1967/1969. Por seu turno, o piso em saúde remonta à redação originária da Constituição de 1988 (artigo 55 do ADCT), tendo sido aprimorado pela Emenda 29/2000 (na forma do artigo 77 do ADCT e, posteriormente, da Lei Complementar 141/2012).

A despeito de a Emenda 95/2016 haver modificado – vintenariamente – os pisos federais em saúde e educação, com a mera garantia de correção monetária sob o regime do teto de despesas primárias da União, a agenda aventada agora pelo Ministério da Fazenda seria a de uma reformulação ampla e definitiva dos artigos 198 e 212 da Constituição para os três níveis da federação. Esperar que algo dessa envergadura e complexidade seja aprovado de afogadilho em pleno ano eleitoral é uma agenda, no mínimo, ousada, para ser parcimoniosa no emprego dos adjetivos.

A estratégia do Ministério da Fazenda aparentemente seria barganhar a aprovação de tais emendas a partir do severo constrangimento causado pelo elevado nível de contingenciamento (estimado em até R$ 56,5 bilhões), necessário para cumprir a meta de déficit primário zero inscrita na LDO/2024.

Cabe reiterar, porém, que é abrupta e inadequada a busca por um ajuste tão rápido e tão intenso, porque aludida meta de déficit primário zero subestima três grandes limitações fáticas relativamente difíceis de serem contornadas em apenas doze meses:

1) as despesas obrigatórias não são suscetíveis de contingenciamento (artigo 9º, §2º da Lei de Responsabilidade Fiscal), sendo que elas ocupam o espaço de cerca de 92% das despesas primárias autorizadas no Orçamento Geral da União [1];

2) a margem de manobra para o ajuste residiria apenas nas despesas discricionárias (cerca de R$ 220 bilhões), mas, mesmo aqui, há um nível mínimo essencial de funcionamento da máquina estatal nominalmente fixado em 75% pela Lei Complementar 200/2023 (que dispõe sobre o regime fiscal sustentável, exigido pela Emenda 126/2022). Trata-se do artigo 7º, § 2º, segundo o qual: “o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública é de 75% (setenta e cinco por cento) do valor autorizado na respectiva lei orçamentária anual”. Por fim, mas não menos importante,

3) as receitas estimadas na lei orçamentária podem não ser realizadas e as despesas obrigatórias devem ser financiadas, se necessário, mediante dívida pública, sendo vedada a sua postergação ou inadimplemento.

Diante desses condicionantes de remota superação no curto prazo, precisamos pragmaticamente lidar com o cenário altamente provável de revisão ou descumprimento da meta de resultado primário. A indagação que se impõe, logo nesses primeiros dias do exercício financeiro, é sobre as consequências de tal fato. À luz do artigo 6º da LC 200/2023, no pior dos cenários, seriam acionadas as vedações inscritas nos incisos I a X do artigo 167-A da Constituição Federal:

I – concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de membros de Poder ou de órgão, de servidores e empregados públicos e de militares, exceto dos derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo;

II – criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;

III – alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV – admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, ressalvadas:

a) as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa;

b) as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios;

c) as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 desta Constituição; e

d) as reposições de temporários para prestação de serviço militar e de alunos de órgãos de formação de militares;

V – realização de concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no inciso IV deste caput;

VI – criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públicos e de militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo;

VII – criação de despesa obrigatória;

VIII – adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observada a preservação do poder aquisitivo referida no inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição;

IX – criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, bem como remissão, renegociação ou refinanciamento de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e subvenções;

X – concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária.

Em todos os casos acima, há precedentes dos sistemas de controle judicial e externo mitigando sua incidência gramatical-literal e obrigando a respectiva contextualização, até porque são vedações que já estavam em vigor no ordenamento brasileiro antes da sua inserção no artigo 167-A da CF pela Emenda 109/2021. A própria LC 200/2023 suavizou as restrições do inciso VIII do artigo 167-A da CF/1988 para a revisão anual do salário mínimo, conforme o seu no artigo 6º, §3º: “na aplicação das medidas de ajuste fiscal de que trata este artigo, a vedação prevista no inciso VIII do caput do art. 167-A da Constituição Federal não se aplica aos reajustes do salário mínimo decorrentes das diretrizes instituídas em lei de valorização do salário mínimo”.

A despeito do tabu contracionista estabelecido em torno da meta de déficit primário zero, é preciso aplicar as vedações decorrentes do seu não cumprimento, de forma sistemática e contextualizada, para que não reste comprometido o próprio ordenamento brasileiro, que prima pela máxima eficácia dos direitos fundamentais.

Como falávamos há seis anos nesta coluna Contas à Vista, por ocasião do aniversário de 18 anos da LC 101/2000, é sintomático que o artigo 109 do ADCT — incorporado pela Emenda 95/2016 — em quase nada tenha inovado em relação ao seu congênere conjunto de sanções e vedações descrito nos artigos 22 e 23 da LRF. Do mesmo agora, as consequências previstas no artigo 6º da LC 200/2023 remetem às sanções previstas no artigo 167-A da Constituição, que, por sua vez, reiteram a lógica dos seus equivalentes normativos há pouco mencionados. Sanções quase iguais que não foram aplicadas a ferro e fogo anteriormente tampouco tendem a sê-lo agora e nos próximos anos. É irônico lembrar que regras fiscais se repetem e superpõem, sem que, de fato, aprimorem a qualidade da execução orçamentária, para torná-la mais aderente ao planejamento governamental.

A tendência, tal como ocorrido com as sanções da LRF e da Emenda 95, é que haja mais ruído do que paralisações e bloqueios na consecução das políticas públicas ordinárias, as quais são amparadas pelo princípio da continuidade dos serviços públicos. A agenda contracionista – embora seja barulhenta e um tanto arrogante por prometer ajustes intensos e velozes – não é capaz de redesenhar o ordenamento jurídico brasileiro por mero voluntarismo fiscal.

Aliás, nada mais sintomático do seu fracasso do que o crescimento irrefreado das emendas parlamentares desatentas ao planejamento setorial das políticas públicas, afinal a imposição de severos limites de escassez não entrega, automática e miraculosamente, a tão almejada e necessária qualidade do gasto público (no que se inclui, por óbvio, o gasto tributário).

O mais interessante desse processo de provável acionamento dos vulgarmente chamados “gatilhos” do artigo 167-A da Constituição, com o iminente descumprimento da meta de resultado primário, será o descrédito da própria rigidez orçamentária autoimposta de forma um tanto irracional, porquanto tenha subestimado as evidências da sua inviabilidade fático-normativa. Este é, por sinal, o meu mais sincero desejo para o cenário fiscal brasileiro de 2024: promessas impossíveis não são críveis e tal constatação na seara fiscal, mais cedo ou mais tarde, revelar-se-á cristalinamente para toda a sociedade, por mais que alguns tentem ocultá-la ou tergiversá-la, ao custo de um doloroso e colossal contingenciamento.

 


[1] Conforme dados disponíveis no Orçamento Cidadão https://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2024/proposta/Orcamento_cidadao.pdf)

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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