O 8 de Janeiro

O dia da infâmia: como chegamos aos ataques golpistas de 8/1

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

8 de janeiro de 2024, 6h08

No dia de hoje, completamos um ano dos ataques golpistas do dia 8 de janeiro, também conhecido como o dia da infâmia. Para entender o que aconteceu naquele trágico momento da democracia brasileira, é preciso compreender a conjuntura política e social em que ocorreram os atos antidemocráticos. A reconstrução histórica do ocorrido, por meio da contextualização dos fatos, é necessária para demonstrar que, mais do que um simples protesto ou inconformismo com o resultado das eleições, o grupo criminoso que invadiu as sedes dos Três Poderes, em Brasília, tinha o objetivo de desestabilizar as bases do regime democrático, na expectativa da adesão das Forças Armadas a um projeto autoritário de poder.

Muito embora o extremismo e a intolerância tenham atingido o paroxismo em 8 de janeiro de 2023, a ideologia rasteira que inspirou a tentativa de golpe de Estado não surgiu, subitamente, como mera reação à vitória eleitoral do atual presidente da República. Ao contrário, o discurso de ódio, o fanatismo político e a indústria de desinformação foram largamente estimulados ao longo de toda a gestão anterior, tendo sido concebidos pela extrema direita como estratégia de preservação do poder.

Fellipe Sampaio/STF

Fruto do sectarismo, o radicalismo político fez-se presente já nas eleições de 2018, em uma campanha caracterizada pela ampla utilização de redes sociais para difusão de ódio, ataques pessoais e fake news. Com o encerramento das eleições e a instalação do novo governo em 2019, essa estratégia influenciou não apenas a comunicação oficial do Palácio do Planalto, como também o discurso dos apoiadores mais próximos do ex-presidente, que radicalizou o debate político mediante a criminalização da oposição, o desprezo à alteridade e os ataques sistemáticos às instituições, com incontida virulência endereçada sobretudo à Suprema Corte.

Nesse contexto, frustrações decorrentes de crises financeiras recentes, com aumento dos níveis de desemprego e aprofundamento da desigualdade social, serviram de solo fértil para o fortalecimento do sectarismo e da violência política. O desalento fez com que setores relevantes da sociedade brasileira flertassem com agendas autoritárias, abandonando valores democráticos em troca de lealdade cega e irracional a líderes extremistas, fenômeno há muito identificado por Karl Lowenstein como fator de propulsão dos regimes fascistas na Europa do início do século 20 (Militant Democracy and Fundamental Rights, I, The American Political Sciente Review, vol. 31, No. 3, 1937, 417-432).

Alçados ao poder pelo voto popular, agentes políticos de inclinação totalitária dedicaram seus mandatos ao esvaziamento de direitos das minorias, à propagação de discurso de ódio e à completa rejeição dos adversários políticos. Para o espanto de muitos, a sociedade brasileira passou a conviver desde então com manifestações de evidente coloração extremista, abastecidas pelo culto às armas e à violência, muitas vezes a partir da negação de direitos fundamentais e de avanços sociais e culturais.

Símbolos e feriados nacionais foram sequestrados com objetivos eleitorais. Nesse sentido, é impossível ignorar que, em 2021, a comemoração do 7 de setembro foi utilizada para a verbalização de ameaças ao Supremo Tribunal, incitando os cidadãos ao descumprimento de decisões judiciais. Não foram raros os pronunciamentos públicos, organizados e fomentados por apoiadores do ex-presidente da República, voltados ao questionamento das urnas eletrônicas e da Justiça Eleitoral — um movimento que escalonou, progressivamente, conforme as pesquisas de opinião indicavam chances concretas de vitória eleitoral do candidato de oposição. Em todas essas manifestações, era explícita a alusão a propostas de fechamento da Suprema Corte e de intervenção das Forças Armadas para deposição do governo eleito, conforme registrado em faixas, discursos e palavras de ordem.

Esse caminho perverso — é bom que se diga — foi pavimentado pela implosão dos partidos políticos tradicionais, fruto da irresponsabilidade e dos abusos cometidos por integrantes do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário, no âmbito da operação “lava jato”. Não por outra razão, já afirmei que os métodos totalitários da força-tarefa, manejados para a construção da carreira política de personagens como Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, são diretamente responsáveis não apenas pela corrosão das bases da democracia brasileira, como também pelo recrudescimento do extremismo e da polarização política.

Nos últimos anos, foram diversos os atentados contra as instituições de Estado e os valores centrais da democracia. Praticados pessoalmente por expoentes da extrema direita ou por cidadãos inspirados por essas lideranças, tais eventos deixaram marcas indeléveis na história brasileira, projetando efeitos transversais em nosso sistema político.

Apenas para citar um caso recente, rememoro os graves crimes cometidos pelo ex-deputado federal Daniel Silveira, apurados nos autos do Inquérito 4.828. Em fevereiro de 2021, o então parlamentar foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República pela suposta prática de crimes de coação no curso do processo; incitação de animosidade entre as Forças Armadas e os poderes constitucionais; e tentativa de impedir, com emprego de violência e grave ameaça, o livre exercício das competências constitucionais do Poder Judiciário.

Em julgamento realizado no dia 20.4.2022, o Tribunal Pleno julgou procedente a denúncia contra o então parlamentar, reconhecendo que o acusado dedicou seu mandato parlamentar à perversão dos valores democráticos e ao enfrentamento hostil e violento dos poderes constitucionais, mediante a difusão de discursos de ódio e a promoção de ataques sistemáticos contra instituições centrais da democracia brasileira (Ação Penal 1.044/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 23.6.2022).

Não bastasse a gravidade do evento — que, por si só, já atesta o momento crítico então experimentado pela democracia brasileira —, os fatos que sucederam o julgamento assumiram proporções ainda mais alarmantes. No dia seguinte à sessão de julgamento, o ex-presidente da República anunciou a intenção de esvaziar os efeitos práticos da deliberação do Tribunal, com a concessão de indulto ao condenado. Na tarde do mesmo dia, o decreto presidencial foi publicado em edição extra do Diário Oficial, oficializando a extinção da punibilidade dos crimes cometidos pelo parlamentar e o consequente afastamento das penas impostas.

Sob o falso pretexto de que a atuação criminosa estaria protegida pela liberdade de expressão, a motivação declinada no decreto presidencial sinalizava a intenção de relevar delitos gravíssimos, como as ameaças contra membros do Poder Judiciário, a incitação de animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis, a veiculação de proposta de fechamento da Suprema Corte, e a prática de atos antidemocráticos que expressamente se inspiravam no AI-5, ato institucional que deu base jurídica ao período mais repressivo da ditadura militar.

O evento preocupou não apenas pelo perdão concedido a parlamentar movido pelo ódio à democracia e pelo desprezo aos opositores políticos. Causou ainda mais apreensão a mensagem, escondida nas entrelinhas do decreto presidencial, de que novas ameaças contra autoridades públicas claramente propagadoras do discurso de ódio estariam abrigadas pela liberdade de expressão e, por isso, seriam afiançadas e estimuladas pela Presidência da República.

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Diante de vícios tão evidentes, o decreto de indulto foi anulado pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico realizado em maio de 2023 (ADPFs 964, 965, 966 e 967, de relatoria da eminente ministra Rosa Weber).

O inexcedível acerto da Corte, no entanto, não ofusca a gravidade desse conjunto de eventos, que desnuda a concertação de agentes políticos, em bases não democráticas, para promoção de ataques institucionais a órgãos centrais da República. Realmente, o só fato de a Suprema Corte ter proferido semelhante decisão (em conformidade com pedido condenatório formulado pelo órgão acusador) dá a dimensão da crise política que se abateu sobre o país nos últimos anos que antecederam ao 8 de janeiro, a qual contou com o envolvimento direto de lideranças políticas nas mais diversas estratégias de corrosão das bases do regime constitucional.

É bom que se diga que esses acenos autoritários não constituíram uma singularidade da política brasileira. Ao contrário, eles se encaixam em verdadeira dinâmica global de emergência e expansão de regimes antidemocráticos, atingindo também países autenticamente liberais em que a democracia se encontra vigorosamente consolidada. Em diversos lugares do mundo, o Estado democrático de Direito foi duramente alvejado por arroubos autoritários de agentes políticos, movimento que, no Brasil, alcançou proporções alarmantes nos quatro anos que antecederam o dia da infâmia.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ensinam que, não raro, os processos de erosão democrática ocorrem silenciosamente, sem causar alarde ou perplexidade. Segundo os autores, em muitos lugares, esses retrocessos foram provocados por mecanismos ocultos e dissimulados, muitas vezes de maneira imperceptível para a população em geral. O decaimento democrático, afirmam, costuma ocorrer em ambientes de polarização extrema, em que os agentes políticos abandonam o dever de tolerância mútua e o respeito pelas instituições de Estado (Como as democracias morrem, 1ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 2018).

Em relação ao caso brasileiro, contudo, uma ressalva deve ser feita. É que, entre nós, as investidas contra a democracia ocorreram explicitamente, à luz do dia, sem cerimônia nem pudor.

Assim, passaram a compor o cotidiano da política nacional condutas que antes eram inimagináveis, como o disparo de fogos de artifício em direção à sede do Supremo Tribunal, os acampamentos montados em frente a quartéis com faixas e palavras de ordem pedindo intervenção militar, a tentativa de explosão de um caminhão de gasolina perto do aeroporto de Brasília e a tentativa de invasão da polícia federal no dia da diplomação de candidato eleito. Tal era a frequência dos abusos, que a consciência crítica da sociedade brasileira ficou anestesiada perante a desordem promovida pelos radicais.

Por tudo isso, é forçoso reconhecer que a revisitação dos fatos que antecederam a invasão das sedes dos três Poderes é pressuposto indispensável para a realização de um debate racional sobre os ataques criminosos de 8 de janeiro de 2023. A democracia sobreviveu, mas, como alertava a ministra Rosa Weber, os fatos ocorridos no dia da infâmia “ficarão gravados indelevelmente na memória institucional”, e a eles “voltaremos sempre, para que jamais se repitam”.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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