Opinião

Lei 14.786 protege consumidoras no setor de entretenimento com o 'Não é Não'

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3 de janeiro de 2024, 6h27

As constantes violações aos direitos das mulheres [1], em ambientes destinados ao entretenimento, conduziu o legislador, em 28 de dezembro de 2023, a editar a Lei Federal n.º 14.786/2023. O referido diploma instituiu o protocolo intitulado “Não é Não” destinado à prevenção do constrangimento e da violência contra consumidoras em locais e eventos de diversão [2]. Não obstante a entrada em vigor encontre-se prevista para após o transcurso de 180 dias, contabilizados a partir da sua publicação, ou seja, junho de 2024, torna-se crucial abordar as principais inovações, com a vistas a duas finalidades essenciais: 1) propiciar o conhecimento acerca das prerrogativas instituídas; e 2) contribuir para que o setor mercadológico possa iniciar, com antecedência, a adoção das providências cabíveis, para que se adeque à novel legislação, evitando-se transgressões.

O aludido conjunto normativo encontra-se sedimentado nos seguintes aspectos: 1) princípios regentes; 2) direitos das mulheres nos estabelecimentos e locais de entretenimento; 3) deveres dos agentes econômicos; 4)  o papel do poder público no que concerne ao assunto; e 5) as penalidades cabíveis em face das infrações cometidas. Antes de discorrer sobre tais regras, é fundamental compreender o âmbito de incidência da Lei nº 14.786/2023, eis que, nos termos do seu artigo 2º,  deverá ser implementada em casas noturnas, boates, espetáculos musicais, realizados em locais fechados, e em shows, com venda de bebida alcoólica. De acordo com o parágrafo único, os cultos e demais eventos religiosos não estão obrigados ao cumprimento do diploma legal.

No artigo 3º, incisos I e II, da lei, em epígrafe, constam a definição do que se compreende como constrangimento e violência, consistindo o primeiro em qualquer insistência, de cunho físico ou verbal, depois de manifestada a discordância da mulher com a interação; enquanto a segunda configura-se mediante o uso da força que venha a acarretar lesão, morte ou dano, entre outros. Nota-se que o legislador não avançou quanto à mais ampla proteção das destinatárias das normas, podendo-se registrar fatores limitativos, a saber: 1) vinculação da cominação normativa à venda de bebidas alcoólicas; 2) restrição aos espetáculos musicais concretizados em espaços fechados; 3) exclusão das atividades religiosas; 4) ausência de definição sobre a cominação das normas em caso de gratuidade para adentrar o espaço; 5) no que concerne às competições esportivas, determinação de aplicação apenas de alguns artigos.

Os atos de violência e constrangimento contra as mulheres [3] podem ocorrer em situações que não necessariamente estejam atreladas ao uso de bebidas alcoólicas, obviamente, muito embora a sua utilização possa intensificar as práticas criminosas. A despeito de a Lei nº 14.786/2023 aplicar-se aos shows, podendo-se inferir que os espetáculos, realizados em locais abertos, estariam inseridos na definição destes eventos, o ideal seria que o legislador não se limitasse a mencionar apenas os executados em espaços fechados. Inexiste referência às apresentações teatrais; o que demonstra impropriedade jurídica. Não se compreende as razões pelas quais foram excluídas as atividades religiosas, visto que as importunações podem se verificar, lamentavelmente, no transcorrer de atos que as integrem. Outrossim, conquanto seja louvável a nova estrutura normativa, para fins de se tutelar as consumidoras no campo do entretenimento remunerado, quando verificados tais problemas em espaços gratuitos, faz-se premente a utilização da sobredita Lei, aplicando-se as regras do Código Civil pátrio.

Para além das limitações — objeto de comentários nas linhas precedentes —, o artigo 11, do multicitado diploma, dispõe que o artigo 150, caput, da Lei nº 14.597/2023 terá o acréscimo do inciso III, prevendo-se a incidência, nas competições esportivas, dos artigos 5º ao 9º da Lei que cria o protocolo “Não é Não”. Ora, denota-se incompreensível os motivos que conduziram o legislador a não estipular a observância dos arts. 3º, 4º 10 e 12, da Lei nº 14.786/2023, visto que, conforme será visto infra, versam, respectivamente, sobre conceitos basilares, princípios, penalidades e início da sua vigência. Questiona-se se as entidades, mencionadas na Lei Geral do Esporte, não estariam obrigadas ao devido respeito a tais dispositivos, porém, acredita-se que houve mero equívoco legislativo, pois não vicejam fundamentos em sentido contrário.

Ampara-se a Lei nº 14.786/2023 em vetores principiológicos que apresentam natureza: 1)  constitucional; e 2) procedimental. Quanto ao primeiro aspecto, vislumbram-se a valorização da preservação da dignidade, da honra, da intimidade e da integridade, física e psicológica, da vítima, bem como a devida articulação de esforços públicos e privados para o enfrentamento do problema. No âmago da Constituição Federal de 1988, os ditos valores encontram-se consagrados como direitos fundamentais e o dever do aparato estatal e da sociedade, de evitar e coibir as violências e os constrangimentos contra a mulher, ressoa inquestionável. Sob a segunda ótica, observam-se o respeito ao relato da ofendida e a celeridade no cumprimento dos ditames legais. O artigo 5º, caput, e incisos I a VIII, albergam os seus direitos que podem ser congregados nos seguintes blocos: 1) informacional; 2) declaratório; e 3) procedimental.

As mulheres possuem o direito de serem informadas sobre as prerrogativas asseguradas, coadunando-se com o dever dos fornecedores estipulado pelos artigos 6º, inciso III, 30 e 31, do Código de Defesa do Consumidor [4]. No que tange ao segundo conjunto, elas possuem o condão de declarar se sofreram constrangimento ou violência, com vistas à definição das medidas de apoio mais adequadas. As suas decisões devem ser respeitadas, além de as vítimas poderem ser acompanhadas por pessoa de sua escolha. Ressalte-se que, segundo Gérard Cas e Ferrier Didier, no âmbito mercadológico, os destinatários finais possuem o direito de obter os necessários esclarecimentos sobre os bens, mas também de declarar o que desejam e ainda de se informarem [5]. Compete aos estabelecimentos e responsáveis pelos eventos providenciarem, de forma imediata, que sejam protegidas e afastadas do agressor, possibilitando-lhes relatar a ocorrência e, caso optem por deixar o local, terão que ser acompanhadas até o transporte. A celeridade quanto à execução de todos os preceitos legais restou preconizada.

Os estabelecimentos, assim como os gestores dos eventos e shows, serão obrigados ao cumprimento de deveres relativos a: 1) recursos humanos; 2) recursos materiais; e 3) postura atitudinal. Compete-lhes  garantir que, na sua equipe, tenha pelo menos uma pessoa qualificada para atender ao protocolo “Não é Não” e, em caso de dispor de sistema de câmeras de segurança, caber-lhe-á assegurar o acesso e a preservação das imagens. A Polícia Civil, a perícia oficial e os diretamente envolvidos poderão inteirar-se do material, que deverá ser mantido no decorrer de, no mínimo, 30 dias. Ainda sob o espectro material, tornou-se compulsória a manutenção, em locais visíveis, da informação sobre a forma de operação do protocolo, bem como os números telefônicos para o contato com a Polícia Militar e a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 [6].

As condutas impostas aos estabelecimentos e aos gestores de eventos de entretimento variam a depender da verificação de constrangimento ou de violência, sendo que, em ambas as situações, impõe-se que sejam garantidos todos os direitos da denunciante. Na primeira hipótese, previu-se que devem certificar-se, com a vítima, acerca da necessidade de assistência, facultada a aplicação das medidas legais para fazer cessar o ato. Diante da segunda situação, terá que afastá-la do agressor, inclusive do seu alcance visual, protegendo-a e lhe oportunizando ter o acompanhamento de pessoa de sua escolha, devendo solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente. Ademais, urge que isole o local específico, onde existam vestígios da truculência, até a chegada daqueles servidores públicos. Colaborar com a identificação das possíveis testemunhas do fato constitui outra diligência obrigatória.

No artigo 7º, incisos I a III, preveem-se providências facultadas aos fornecedores com o desiderato de viabilizar a efetividade da legislação, pois,  a seu critério, poderão adotar ações, que julgarem cabíveis, para o melhor atendimento das vítimas. Serão destinadas à preservação da dignidade e integridade física e psicológica da denunciante e a subsidiar a atuação dos órgãos, eventualmente acionados, nomeadamente, de saúde e de segurança pública. Em caso de constrangimento, será possível retirar o ofensor do estabelecimento e impedir o seu reingresso até o término das atividades. Outra diligência interessante é a criação de um código próprio, divulgado nos sanitários femininos, para que as mulheres possam alertar os funcionários sobre a necessidade de ajuda, a fim de que empreendam as condutas necessárias.

Com base no princípio da intervenção estatal, a Lei nº 14.786/2023 estabeleceu atribuições para o poder público com esteio nas vertentes: 1) informacional; 2) educacional; 3) fiscalizatória; 4) recompensatória; e 5) punitiva. Deverá divulgar o conteúdo normativo e promover campanhas educativas sobre o protocolo, realizando ações de formação periódica para a conscientização dos empreendedores e dos trabalhadores do ramo. Na averiguação quanto ao cumprimento da Lei, compete-lhe atribuir o selo “Não é Não — Mulheres Seguras” para os estabelecimentos não obrigados ao seu cumprimento, mas que optaram  por implementá-lo. Manterá e disseminará a lista denominada “Local Seguro Para Mulheres”, propiciando que  selecionem os espaços que melhor lhes aprouver.

Importante salientar que o legislador quedou-se inerte em prever a concessão do dito selo para os estabelecimentos que cumpram as normas em exame, para os estimular quanto à continuidade deste mister. A lacuna normativa sobre este ponto, ao que aparenta, revela a possível fragilidade quanto à fiscalização das atividades do setor a ser realizada pelo poder público. O mais apropriado seria estatuir que a citada conotação seria atribuída em prol de todos que respeitassem os ditames legais. A lei, em exame, não indica como se dará o acompanhamento quanto à concretização das novas normas. Sem embargo da posterior edição do respectivo regulamento, mais proveitosa seria a apresentação, de logo, das autoridades competentes para a execução das imprescindíveis tarefas.

As penalidades, diante do desrespeito às normas, variam de acordo com o tipo de estabelecimento, segundo o artigo 10, da Lei nº 14.786/2023. Para os que sejam obrigados ao seu cumprimento, a violação, total ou parcial, do protocolo implica advertência e outras penalidades previstas em lei. No entanto, consoante o parágrafo único, caso comprovem que tenham atendido a todas as disposições legais, assegurou-se a não aplicabilidade de quaisquer sanções. Ora, trata-se de regra que termina por mitigar a efetividade do plexo normativo, uma vez não se observa como o poder público operacionalizará a fiscalização, qual o órgão ou ente encarregado, mas já há norma possibilitando o afastamento da punição. Quanto aos que não estão obrigados ao atendimento do protocolo, mas optaram por segui-lo, caberá também admoestação, revogação do selo e exclusão da  aludida lista, além de outras penalidades cabíveis. Conclui-se que apesar das lacunas identificadas, o Brasil avança na proteção das mulheres nos multicitados espaços, porém a concretude dependerá de uma séria fiscalização e do sancionamento dos transgressores.

 


[1] Sobre o tema, cf.: BEAVOUIR, Simone. O Segundo Sexo. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Fronteira, 2014. DAVIS, Ângela. Mulheres, Raça e Classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016. HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza Libânio. São Paulo: Rosa dos Tempos, 2018.

[2] Conferir: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14786.htm. Acesso em: 31 dez. 2023.

[3] Sobre o tema, cf.: ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 55-75. SAFFIOTI, Heleieth. Violência de gênero no Brasil contemporâneo. In.: SAFFIOTI, Heleieth; MUNÕZ-VARGAS, Mônica (Orgs.). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994, p. 151-185. SMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social and Legal Studies, v. 1, n. 29, 1992, p. 29-44.

[4] Cf.: MARQUES, Claudia Lima. A Lei 8.078/1990 e os Direitos Básicos do Consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 65-104.

[5] CAS, Gérard; FERRIER, Didier. Droit de la consommation. Paris: Presses Universitaire de France, 1986, p. 378.

[6] Acerca do direito à informação, examinar: PAISANT, G. Défense et illustration du droit de la consommation. Paris: LexisNexis, 2015, p. 100-109. REICH, N. Vulnerable Consumers in EU Law. In: LECZYKIEWICZ, D.; WEATHERILL, S. The Images of the Consumer in EU Law: legislation, free movement and Competition Law. Studies of the Oxford Institute of European and Comparative Law. Oxford: Hart Publishing, 2018, p. 78.

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