Opinião

A supercriminalização da lavagem de capitais e o papel da advocacia

Autores

  • Israel Domingos Jorio

    é autor do livro "Crimes Sexuais" (3ª ed. Editora Jus Podivm) doutor e mestre em direitos e garantias fundamentais professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) do Complexo de Ensino Renato Saraiva (Cers) da Escola da Magistratura do Espírito Santo e da Escola do Ministério Público do Espírito Santo e advogado criminalista.

  • Raphael Boldt de Carvalho

    é pós-doutor em Criminologia pela Universität Hamburg (bolsa DAAD) doutor em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV com estágio doutoral na Goethe-Universität (Frankfurt am Main) professor da FDV advogado criminalista e sócio do escritório Jorio & Boldt Advogados.

1 de janeiro de 2024, 9h17

Não há um “delito natural” [1], isto é, um determinado tipo de comportamento que possa ou deva ser considerado necessariamente criminoso em qualquer tempo, lugar e contexto cultural. A existência de um crime é o resultado de um processo de criminalização, uma atividade política fortemente vinculada a elementos éticos dominantes em uma sociedade e em um momento histórico.

Em um plano democrático ideal, as concepções éticas que são juridificadas são aquelas que os políticos, como fiéis representantes da população, extraem como sendo majoritariamente compartilhadas pelas pessoas. No mundo da vida, porém, há incontáveis elementos a influir no processo de juridificação e, mais especificamente considerando a atividade de criminalização, na decisão estatal por meio da qual se estabelece que um certo comportamento humano deve ser proibido e punido. Tradições, preconceitos, dogmas religiosos, visões de mundo e interesses pessoais de políticos pertencentes às classes mais favorecidas, tendências e demandas econômicas e mercadológicas e muitos outros dados interferem nas decisões sobre o que deve ser proibido e qual a sanção penal devida em caso de transgressão.

A norma penal incriminadora é resultado de uma decisão política por meio da qual se etiqueta ou rotula um determinado comportamento como proibido e se lhe atribui uma pena. Essa proscrição importa a redução de uma porção da liberdade individual. Considerando que, em um ambiente democrático, a igualdade, a dignidade e a liberdade são os pilares axiológicos fundamentais, a interferência na vida das pessoas, reduzindo suas possibilidades comportamentais, é a exceção. E uma exceção que deve ser bem fundamentada. Uma norma penal legítima é aquela que se destina a proteger algo de importante pertencente a alguém. Se esse objeto de proteção é um bem jurídico, um valor, um interesse, se ele pode ser coletivo ou apenas individual, são questões polêmicas. Não pode haver dúvida, no entanto, dentro de um constitucionalismo democrático, de que o Estado não está autorizado a proibir e punir de modo inteiramente livre.

A decisão político-criminal que se refere à criminalização da lavagem de capitais se mantém em uma zona de penumbra no que tange a uma verificação de legitimidade. Para começar, inexiste consenso sobre o dado mais básico: qual é o objeto de proteção da norma que incrimina o clareamento de capitais? Note-se a extensão do problema: se não sei exatamente o que preciso proteger, como selecionarei eficientemente os comportamentos que lhe sejam nocivos?

No caso da lavagem de capitais, não se tem um comportamento cujo desvalor ético seja tão claro como o que se observa no homicídio, no estupro, no estelionato, na corrupção. O problema central é que a criminalização em questão atende a pretensões, senão totalmente, pelo menos predominantemente pragmáticas: quer-se asfixiar a criminalidade organizada pela supressão do fluxo de dinheiro, e ponto final. Essa falta de um referencial ético de base vem se revelando particularmente problemática, porque tudo o que norteia a atividade político-criminal é o resultado. Como não há um critério do desvalor a funcionar como baliza, persegue-se sem limites quaisquer a tipificação mais apta a alcançar as metas pretendidas. Isso conduz à desmedida expansão e ao excessivo enrijecimento da lei penal. O produto é um tipo penal cada vez mais abrangente e impreciso, distante da principiologia constitucional (legalidade, subsidiariedade, ofensividade etc.).

É simples observar o caminho trilhado na legislação brasileira. Na redação original, havia um rol taxativo dos “crimes antecedentes”, isto é, das específicas infrações penais cujo produto econômico poderia ser “lavado” [2]. Além disso, predominava, à época, o entendimento segundo o qual o crime de lavagem de capitais somente restava configurado se o agente atuasse com dolo direto. Por fim, e mais importante, exigia-se algum nível de sofisticação das atividades financeiras para que se pudesse reconhecer a prática do clareamento de capitais. A situação, em menos de 15 anos, alterou-se drasticamente.

Suprimiu-se, em 2012 (Lei 12.683), o rol das “infrações antecedentes”, possibilitando-se a caracterização da lavagem de capitais em relação ao produto não apenas de todo e qualquer crime, mas, também, de contravenções penais. Passou-se a admitir a realização típica a partir da assunção do risco, ou seja, admitiu-se como elemento subjetivo do tipo o dolo eventual, o que suscita efeitos práticos muito contundentes. Como consequência, foi trazida para a apuração da lavagem de dinheiro a imemorial e ainda efervescente polêmica acerca da inexistência de critérios seguros de distinção entre dolo eventual e culpa consciente, o que acaba por permitir a punição de muitos comportamentos meramente descuidados como se dolosos fossem. Em poucas palavras: isso representa a criminalização velada da dúvida e da displicência, situações de incidência da norma muito distantes daquelas originalmente concebidas para o clareamento estratégico e planejado de ativos ilícitos.

De todas as alterações, no entanto, a que mais chama a atenção é a que se refere à dispensa, pela jurisprudência contemporânea, do mínimo grau de sofisticação para que se reconheça a operação de clareamento de capitais. Pode-se dizer que, atualmente, quase qualquer destinação que o agente der aos ativos provenientes de infração penal anterior caracterizará lavagem de dinheiro.

Um traficante de drogas ou contrabandista sem qualquer ocupação laboral lícita abre uma loja de serviços (barbearia, estúdio de tatuagem, hotel canino) e declara dinheiro proveniente da venda de entorpecentes ou pirataria como se fosse renda licitamente auferida a partir de seu comércio. Um publicitário ou advogado emite nota fiscal com valor dez vezes superior àquele efetivamente referente aos serviços prestados e repassa o excedente a contas de titularidade de terceiros ligados ao suposto cliente. Um servidor público corrupto investe o suborno recebido em ações de empresas de capital aberto com sede em país estrangeiro. Esses são modelos básicos de lavagem de capitais, em que, realmente, o agente “oculta ou dissimula a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.  O enrijecimento da política criminal de combate à lavagem passa por estender os limites do tipo e ampliar a área de incidência da norma incriminadora por meio da dispensa de todo e qualquer nível de elaboração ou esforço do agente no sentido de ocultar ou dissimular a procedência ilícita dos ativos, transformando-se em lavagem de dinheiro a mera atitude de gastar o proveito do crime antecedente.

Como síntese do exposto, vejamos a teses assentadas na jurisprudência do STF:

[…] 11. Para a comprovação da materialidade do crime de lavagem de dinheiro basta a demonstração da existência de indícios do crime antecedente, pois não há dependência entre o julgamento do crime de lavagem de dinheiro e o da infração penal antecedente.

  1. O depósito em contas de terceiros para ocultar dinheiro proveniente do crime tem sido reconhecido como suficiente para a caracterização da lavagem de dinheiro.

  2. O crime de lavagem de dinheiro admite dolo eventual. […] [3].

É fato que o clareamento de capitais sempre exalou um odor de bis in idem, por criminalizar o que seria o mero exaurimento da maioria das infrações que rendem frutos patrimoniais. O que vemos atualmente, no entanto, é um verdadeiro processo de automação da imputação da lavagem em crimes cujo proveito é de caráter patrimonial, o   que gera uma denúncia “dois-em-um” sem grandes exigências quanto à qualidade da narrativa acusatória para seu recebimento.

Quando se percebe o percurso trilhado pela política criminal antilavagem nos últimos anos, especialmente se incluirmos as modificações posturais da jurisprudência, veremos que está havendo uma sobrecarga no rigor penal. Se a criminalização é uma atividade estatal normal, embora sujeita a limites impostos pela axiologia constitucional e pelas premissas humanitárias do Direito Penal liberal, a supercriminalização é um resultado espúrio dos influxos da mentalidade punitivista na atuação dos legisladores e, em um segundo momento, das agências punitivas (polícias, Ministério Público e Judiciário), incumbidas de interpretar e aplicar as leis penais. Por “punitivista” entenda-se, no sentido do texto, um modo de enxergar a pena segundo o qual ela assume o papel de método primário, senão exclusivo, de solucionar os problemas ligados aos conflitos intersubjetivos em um ambiente social. A confiança excessiva no poder da punição de prevenir crimes ou reparar seus prejuízos é um traço característico das sociedades contemporâneas, marcadas pela presença da ansiedade e especialmente atraídas por soluções cujos supostos resultados sejam imediatos. Daí surge a tendência de “supercriminalizar” ou “sobrecriminalizar”, isto é, de exceder os limites legitimadores da atividade de criminalizar, transformando em ilícitos penais comportamentos que são inofensivos em relação ao objeto de proteção que fundamenta a existência da norma penal incriminadora.

Diante desse quadro, a questão que se põe é: qual é o papel da advocacia criminal na contenção desses avanços punitivistas e da supercriminalização da lavagem de capitais?

A atividade da advocacia criminal defensiva é, na maior parte das vezes, um exercício de resistência. Não apenas no sentido técnico-processual de resistência à pretensão condenatória deduzida em juízo pela acusação. Resistência às pressões sociais, midiáticas e politiqueiras; aos excessos e abusos cometidos por autoridades públicas; às tendências contemporâneas e crescentes de relativizar direitos e garantias fundamentais e de reduzi-los a “meras formalidades” — ou, pior, “mecanismos de impunidade” ou “brechas da lei”. Não há, portanto, advocacia criminal de qualidade sem combatividade.

Não nos referimos, nesse ponto, ao conhecimento e à oratória, instrumentos indispensáveis a todo e qualquer advogado, independentemente de sua área de atuação. O único instrumento capaz de fazer frente aos avanços punitivistas e de enfrentar os movimentos de supercriminalização é a especialização.

Engana-se quem crê que a advocacia seja especializada porque o profissional que a desempenha cursou uma pós-graduação lato sensu ou, porque fez um recorte dentre as muitas áreas de atuação possíveis e decidiu dedicar-se, exclusivamente, a um ramo específico. A especialização a que nos referimos se opera em dois níveis e é melhor sintetizada pela palavra “compromisso”.

O primeiro nível de especialização é atingido pelo profissional que conhece bem o nosso sistema de direitos e garantias fundamentais aplicado ao Direito e ao Processo Penal; que tem intimidade com a principiologia processual penal, e com as regras e as etapas características dos diversos procedimentos especiais; e, naturalmente, que tem domínio sobre os institutos fundamentais de Direito Penal, considerados muito além da doutrina e da jurisprudência acerca do crime em espécie particularmente imputado ao cliente. Falamos de uma sólida base sobre a Parte Geral, isto é, sobre Teoria da Lei Penal, Teoria da Pena e, especialmente, Teoria do Crime. Vencida essa primeira etapa, o advogado criminalista que quer realmente se especializar estará pronto para dar seu mergulho em uma área de atuação específica.

Diante da extensão e da profundidade dos conhecimentos específicos da Parte Especial e da legislação extravagante, e principalmente, das infindáveis peculiaridades das várias políticas criminais e microssistemas de combate, especialista, de fato, é quem se dedica a compreender as lógicas próprias de determinados segmentos do Sistema Penal e a conhecer suas minúcias.

Aqui, finalmente, fica claro o papel do advogado criminalista na contenção dos avanços punitivistas e da supercriminalização da lavagem de capitais. Um profissional despreparado, por mais experiente que seja em outras micro-áreas da justiça penal, faz um verdadeiro convite aos abusos e excessos na condução do inquérito e do processo na lavagem de dinheiro, geralmente marcados por medidas cautelares de inteligência que são altamente invasivas. Como regra quase absoluta, há quebra de sigilos telefônicos, telemáticos, bancários e fiscais. O profissional deve estar apto a questionar a cadeia de custódia, a interrogar sobre as técnicas de extração e de análise de dados, a fazer suas próprias avaliações e apresentar evidências robustas em sentido contrário, infirmando ou desconstruindo as conclusões das polícias e dos órgãos ministeriais. Em sede de mérito, a falta de preparo do profissional constitui um dos maiores estímulos às imputações levianas, às condenações parcamente fundamentadas e, de um modo geral, ao modo simplista e superficial com que se tem lidado com a lavagem de capitais. Daí vêm as distorções, as dispensas de requisitos típicos e as ampliações contra legem observadas na jurisprudência.

De outro lado, um advogado especialista e preparado oferece a desejável resistência qualificada frente à toada punitivista e às banalizações operadas órgãos de persecução penal. Uma atuação combativa e técnica eleva muito os padrões de qualidade que as atuações das polícias, do Ministério Público e do Judiciário devem ter. Força que os pedidos cautelares sejam calcados em indícios mais concretos; que a análise das provas seja mais criteriosa; que os indiciamentos e denúncias sejam mais robustos; que as condenações sejam mais fundamentadas. Em poucas palavras: faz a diferença e propicia uma filtragem mais refinada das imputações em matéria de lavagem de capitais, desestimulando as acusações irresponsáveis e as decisões rasas ou genéricas.

 


[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl et alii. Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 134.

[2] O dispositivo (art. 1º) elencava tráfico de drogas, terrorismo, tráfico de armas e munições, extorsão mediante sequestro; crimes contra a administração pública nacional ou estrangeira; contra o sistema financeiro nacional ou praticados por organização criminosa.

[3] STF – Recurso Extraordinário 1372607/PR. Rel. Min. Edson Fachin. Data de Julgamento: 16/05/2022. Data de Publicação: 17/05/2022.

Autores

  • é doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV-ES), professor de Direito Penal da FDV (graduação e especialização), da Escola da Magistratura do ES, da Escola do Ministério Público do ES e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (Cers) e advogado criminalista.

  • é pós-doutorado em Direito Penal (Goethe-Universität/Frankfurt am Main e em Criminologia (Universität Hamburg), doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV), com estágio doutoral na Goethe-Universität (Frankfurt am Main), professor nos cursos de graduação e pós-graduação (doutorado e mestrado) da FDV e advogado.

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