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Números, desafios e expectativas sobre a tokenização no Brasil

Autor

  • Isac Costa

    é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

28 de fevereiro de 2024, 9h16

Desde a edição da Lei nº 14.478/2022 (ainda que esta não esteja produzindo efeitos reais pela falta de regulamentação infralegal), podemos dizer que instituições financeiras e investidores têm se sentido mais confortáveis com as operações de tokenização de ativos.

Spacca

Com o encerramento da Consulta Pública nº 97/2023 do Banco Central, o mercado aguarda as normas para autorização e funcionamento de prestadores de serviços de ativos virtuais. Ainda, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), após editar os Ofícios-Circulares CVM/SSE nº 04/2023 e 06/2023, tem interagido com os agentes de mercado para acomodar os tokens de recebíveis e de renda fixa em sua regulação, especialmente na norma de crowdfunding (Resolução CVM nº 88/2022).

Contudo, o potencial aumento da segurança jurídica ainda não é suficiente para que todos possam compreender as vantagens da emissão e circulação de tokens em relação às infraestruturas de mercado financeiro tradicionais.

Afinal, a tecnologia blockchain usualmente é associada a um mercado global com alta volatilidade nas cotações dos ativos e dificuldades em matéria de volume de transações e identificação de beneficiários finais. Mas essa percepção tem sido gradualmente superada em razão do caráter inovador de certos projetos no setor.

Por que tokenizar?
A tokenização de ativos está intimamente ligada à dinâmica do mercado de recebíveis. Hoje, duplicatas e recebíveis de arranjos de pagamento são registrados em ambientes que garantem a segurança e transparência das informações sobre a existência e exigibilidade dos títulos — dentre as registradoras autorizadas pelo Banco Central, encontramos B3, Nuclea (ex-CIP), Cerc, CRDC, CSD, CRT4, TAG e SPC Grafeno na qualidade de infraestruturas de mercado financeiro.

De certo modo, as registradoras fornecem um serviço semelhante ao dos cartórios, centralizando o fluxo de informações usado na circulação dos recebíveis.

Em contraposição ao registro centralizado, tokenizar é do que registrar a propriedade e o histórico de transações de títulos em uma rede descentralizada, compartilhada por múltiplos participantes que têm visibilidade sobre as informações relativas a esses títulos — o registro/cartório passa a estar em uma “nuvem pulverizada” e não mais em uma única registradora. E as dificuldades da interoperabilidade obrigatória entre elas poderiam ser reduzidas ou mesmo eliminadas.

Em teoria, os custos associados à emissão e à circulação podem ser menores, permitindo que mais empresas e projetos consigam se financiar, de um lado, e investidores contem com mais opções de instrumentos alternativos, de outro, diversificando seu portfólio de ativos (desde que adequados ao seu perfil de risco).

Por exemplo, a opacidade do mercado de precatórios poderia dar lugar a um ambiente onde poderiam ser facilmente localizados e negociados com spreads menores, com a emissão de títulos padronizados lastreados nos recebíveis. Ainda, a certeza sobre a legalidade do título seria decorrente da validação dos dados pela rede descentralizada, democratizando, em parte, os benefícios econômicos hoje concentrados nas registradoras.

Ainda, transformar royalties em tokens, automatizar pagamentos por meio de instruções em smart contracts e aprimorar a rastreabilidade de transações pode facilitar a conciliação em diversos contratos, reduzindo a assimetria de informação entre as partes e simplificando as trocas de valores entre pessoas e organizações.

Tokenização no Brasil
Em outros países, os principais tokens envolvem projetos menos relacionados a ativos reais, sendo a variação de suas cotações intrinsecamente associadas às expectativas dos investidores com relação ao sucesso de tais projetos.

Mas o caso brasileiro é peculiar. Além de contarmos com um sistema de pagamentos extremamente avançado, o Banco Central tem sinalizado que o projeto do real digital (Drex) representará uma plataforma para a automação da execução de transações, incorporado casos de uso interessantes relacionados a sistemas descentralizados.

Por exemplo, a stablecoin utilizada pela Liqi no projeto do token de investimentos em direitos creditórios (TIDC) poderá ser substituída pelo Drex em uma versão de maior escala.

É possível afirmar que o Brasil tem a maior variedade de casos de tokenização de ativos no mundo. As operações envolvem títulos bancários, precatórios e direitos creditórios de origens diversas — vale lembrar o caso pioneiro do Vasco Token, envolvendo a tokenização de direitos do mecanismo de solidariedade da FifaA, idealizado pela MB Tokens, que também criou o Token da Vila (ligado ao Santos FC) e um token para financiar a carreira do piloto Emmo Fittipaldi.

Há, pelo menos, duas causas para o relativo sucesso da tokenização em nosso país.

A primeira delas, já mencionada, é a existência de um sistema de pagamentos moderno, com vários participantes ativos no desenvolvimento de soluções de crédito e operações com recebíveis em canais digitais.

A segunda, menos óbvia, é a dificuldade das empresas da criptoeconomia no Brasil em concorrer com as exchanges estrangeiras na mera negociação de criptoativos mais líquidos, levando-as a buscar fontes alternativas de receita, além da intermediação de operações.

Expectativas
De acordo com o portal CoinTelegraph, R$ 542 milhões em ativos foram tokenizados no Brasil em 2023, pelas empresas MB Tokens (R$228 milhoes; 42%), Vórtx QR Tokenizadora (R$ 212 milhões; 39,1%), Liqi (R$ 62 milhões; 11,4%) e AmFi (R$ 40 milhões; 7,5%).

Outras operações também foram realizadas no âmbito do sandbox regulatório da CVM, pela SMU e pela BEE4. A título de ilustração, a startup SuperOpa, que trabalha com oferta de alimentos próximo do vencimento, conseguiu ofertar R$ 800 mil em notas comerciais que serão tokenizadas e negociadas na plataforma Estar Finance.

A SMU também emitiu tokens relacionados a recebíveis de uma rede de motéis e à Moreco, proptech que comercializa imóveis modulares por assinatura.

Por sua vez, a BEE4 fechou parceria com a Itaú e a Genial para destinada à tokenização de ativos de empresas com faturamento anual entre R$ 10 milhões e R$ 300 milhões. A empresa é uma espécie de “B3 em blockchain”, onde foram ofertadas “ações tokenizadas” da Plamev Pet (captação de R$ 5,4 milhões), Mais Mu, empresa de alimentos e bebidas saudáveis (captação de R$ 4,3 milhões) e da clínica de reprodução humana Engravida (captação de R$ 4,2 milhões).

Esses números ainda são uma gota no oceano operações do mercado primário de capitais brasileiro, mas pode haver um desenvolvimento do setor à medida em que as instituições financeiras e tokenizadoras aprimorem casos de uso e modelos de negócios e o Drex se consolide como uma plataforma para aumentar a eficiência da liquidação de transações e incorporar as funcionalidades desenhadas pelas empresas.

Para além de ativos financeiros, há, ainda, uma ampla gama de possibilidades de ativos cuja emissão e circulação podem se beneficiar da tokenização, tais como créditos de carbono, direitos de herança em disputa judicial e outros instrumentos alternativos.

Por fim, resta uma dúvida relevante a respeito da liquidez dos tokens de recebíveis. Por não representarem a expectativa em torno de projetos cripto como a maioria dos criptoativos mais líquidos das exchanges em todo o mundo, não há dados públicos que permitam aferir que haverá uma boa formação de preços para investidores que desejam se desfazer de seus tokens antes do vencimento.

Assim, poderemos observar o mesmo problema da falta de liquidez do mercado de debêntures e outros títulos de dívida privada, quando os investidores são penalizados se precisam negociar suas posições.

A necessidade de um mercado secundário funcional precisará ser considerada na concepção de projetos para evitar a frustração e o desinteresse por esses tokens, à semelhança do que tem ocorrido com os certificados de operações estruturadas (COE), considerados “cárcere privado” do dinheiro.

Autores

  • é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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