Opinião

Urgência da criação de carreiras de apoio técnico à advocacia pública

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27 de fevereiro de 2024, 16h11

Várias são as competências constitucionais a cargo exclusivo da advocacia pública e seus membros.

Da Constituição da República [1], extraem-se: a representação judicial e extrajudicial, a consultoria e o assessoramento jurídicos e a execução da dívida ativa dos entes federados.

Do diploma constitucional paulista [2] e da Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Lopge-SP) [3], destacam-se, relativamente aos procuradores do estado, outras mais:

a) a proposição da extensão administrativa da eficácia de decisões judiciais reiteradas;
b) a promoção da uniformização da jurisprudência administrativa e da interpretação das normas, tanto na administração direta quanto na indireta;
c) a representação ao governador sobre providências de ordem jurídica reclamadas pelo interesse público e pela boa aplicação das normas vigentes;
d) a prestação de assistência jurídica aos municípios;
e) a realização de procedimentos administrativos, inclusive disciplinares, não regulados por lei especial;
f) o acompanhamento de inquéritos policiais sobre crimes funcionais, fiscais ou contra a administração pública e a atuação como assistente da acusação nas respectivas ações penais, quando for o caso;
g) a definição prévia da forma de cumprimento de decisões judiciais;
h) a manifestação sobre as divergências jurídicas entre órgãos da administração direta ou indireta;
i) a manifestação de opinião prévia à formalização de contratos administrativos, convênios, termos de ajustamento de conduta, consórcios públicos ou atos negociais similares celebrados pelo estado e suas autarquias; e
j) a coordenação, para fins de atuação uniforme, dos órgãos jurídicos das universidades públicas, das empresas públicas, das sociedades de economia mista sob controle do estado, pela sua administração centralizada ou descentralizada, e das fundações por ele instituídas ou mantidas.

Trata-se, como se observa, de um vasto plexo funcional de singular importância para o Estado democrático de Direito, que se preordena a universalizar direitos, deveres e obrigações, a defender e a assegurar o interesse e o patrimônio públicos, a garantir que a atuação e o planejamento das ações estatais observem e sigam estrita e uniformemente os ditames constitucionais, legais e infralegais e revistam-se dos predicados jurídicos necessários ao atingimento preciso, efetivo e eficaz dos fins pretendidos pela administração pública e reclamados pela sociedade.

Necessária guarida
A rigor, por mandamento constitucional expresso, não deve haver um passo sequer que o Estado objetive dar sem a guarida da advocacia pública, instituição que reúne agentes selecionados por concurso público de provas e títulos com a incumbência específica de orientá-lo juridicamente na execução de atos administrativos e na elaboração de atos normativos e das mais variadas políticas públicas da alçada do Poder Executivo.

É por isso que a Constituição de 1988 apartou as funções essenciais à Justiça (a advocacia pública, o Ministério Público e a Defensoria Pública) dos Poderes do Estado, dispondo-as em capítulo próprio, diverso daqueles que disciplinam o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, e não submeteu nenhuma delas a relações de subordinação hierárquico-funcional aos agentes políticos.

Do contrário, malograria toda intenção democrático-constitucional de conformar o poder público a um contexto de juridicidade, livre de injunções político-partidárias e de coarctações à independência técnica dos membros que integram tais carreiras típicas de Estado.

Comparativo
Não obstante a grandeza e a significação jurídica e social das funções cometidas à advocacia pública — única instituição do sistema de Justiça destituída de autonomia administrativa! —, causa perplexidade a ausência de investimentos em recursos humanos no âmbito da Procuradoria Geral do Estado (PGE-SP), função essencial à Justiça responsável

(1) pela cobrança da dívida ativa de R$ 408 bilhões, levada a efeito por meio de mais de 959 mil execuções fiscais;
(2) pela defesa do Estado em juízo em mais de 1,8 milhão de processos;
(3) pela arrecadação, entre 2013 e 2023, de R$ 37,39 bilhões de dívida ativa; e (4) pela emissão, entre 2019 e 2023, de 70.179 pareceres pela área da consultoria geral, presente em todas as secretarias e autarquias do Estado [4].

Atualmente [5], remanescem nos quadros da PGE-SP 783 procuradores do estado (65% do quadro legal de 1.203) e 606 servidores administrativos (11,7% dos quais em condição de se aposentar), números inferiores aos de 2015, quando a instituição contava com 1.746 agentes no total — 25,7% a mais.

Além da escassez do quadro de apoio administrativo — 0,7 servidor por procurador! —, inexistem carreiras de apoio técnico aos procuradores do estado, como a de assistente jurídico, absolutamente imprescindível ao desempenho presto e zeloso dos serviços a seu cargo, dever funcional imposto pelo artigo 121, II, da Lopge-SP.

A celeridade imposta na tramitação processual pelo Conselho Nacional de Justiça [6], o aumento exponencial do número de ações e decisões judiciais processadas massiva e digitalmente em cumprimento à Lei nº 11.419, de 2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, e a complexidade e magnitude das políticas e contratações públicas sob o escrutínio da advocacia pública também demandam condições dignas de trabalho e suporte técnico-administrativo adequado e suficiente.

No Ministério Público de São Paulo (MP-SP), diferentemente da PGE-SP, existem 2,5 servidores para cada membro. São 2.229 promotores e procuradores de Justiça e 5.653 servidores em atividade [7].

Destes, 2.389 analistas jurídicos prestam auxílio técnico-jurídico às atividades processuais e extraprocessuais do Parquet e elaboram minutas de manifestações próprias da função de execução, além de outros trabalhos de natureza jurídica atinentes a feitos judiciais ou procedimentos administrativos da alçada do Ministério Público [8], inclusive em demandas ajuizadas contra o Estado e seus agentes.

Na Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP), são 788 defensores públicos e 941 servidores – 1,19 servidor para cada membro[9].

Por seu turno, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) tem 2.148 juízes de Direito, 355 desembargadores e 39.693 servidores, sendo 3.932 assistentes judiciários e 2.111 assistentes jurídicos [10].

São 15,85 servidores por magistrado, cabendo observar que, entre 2012 e 2022, foram editadas as Leis Complementares 1.172, 1.336, 1.337 e 1.382 e a Lei nº 16.393, que criaram 475 cargos em comissão de assistente jurídico e 4.818 cargos em comissão de assistente judiciário, para atender à estrutura dos gabinetes dos desembargadores e juízes substitutos em segundo grau e juízes de Direito de entrâncias final, intermediária e inicial, cargos para os quais somente podem ser nomeados servidores que sejam bacharéis em Direito.

A justificativa apresentada pela Presidência do TJ-SP à Assembleia Legislativa nos respectivos projetos de lei reside, fundamentalmente, na necessidade de dotar os juízos de primeira instância de “auxílio na preocupante massa de processos à espera de julgamento, contribuindo, inclusive, para prestação jurisdicional mais célere, maior segurança (…) na execução das obrigações envolvendo o Poder Público”; e na exigência de “maior produtividade e rapidez” dos juízes de primeiro grau nos processos digitais próprios do Sistema de Automação da Justiça (SAJ), “o que só será possível com a ampliação do número de servidores especializados, os Assistentes Judiciários”, fundamento também aplicável à criação de cargos de assistente jurídico.

A propósito, reunidos em Brasília, em dezembro de 2023, durante o 17º Encontro Nacional do Poder Judiciário, os presidentes ou representantes dos tribunais do país aprovaram 11 Metas Nacionais para o Judiciário brasileiro alcançar em 2024 [11], que impactam todo o sistema de justiça.

Dentre elas, a de “julgar quantidade maior de processos de conhecimento do que os distribuídos no ano corrente, excluídos os suspensos e sobrestados no ano corrente”; e o compromisso de a Justiça estadual julgar até 31/12/2024 “pelo menos 80% dos processos distribuídos até 31/12/2020 no 1º grau, 90% dos processos distribuídos até 31/12/2021 no 2º grau, 90% dos processos distribuídos até 31/12/2021 nos Juizados Especiais e Turmas Recursais e 100% dos processos de conhecimento pendentes de julgamento há 14 anos (2010) ou mais” [12].

A precarização da PGE-SP
Como se vê, o TJ-SP, o MP-SP e a DPE-SP buscam estruturar-se, organizar-se e aprimorar-se administrativamente a fim de enfrentar os crescentes desafios na prestação célere, eficiente e qualitativa de justiça.  A PGE-SP, apesar de o estado de São Paulo ser um dos 20 maiores litigantes do país [13], segue em manifesto descompasso orgânico-estrutural, inteiramente privada do necessário apoio técnico às suas funções constitucionais, em especial as de arrecadação tributária e de recuperação de ativos.

Para ilustrar a precarização da PGE-SP, em resposta à Indicação Parlamentar nº 692, de 28 de março de 2017, por meio da qual foi solicitada ao governador do estado “a tomada das providências para o imediato envio à Assembleia Legislativa do projeto de lei que cria e regulamenta o quadro de carreiras de apoio aos Procuradores do Estado de São Paulo” [14], a Casa Civil, em 7 de setembro de 2018, esclareceu que referido anteprojeto — que se arrasta pelos escaninhos da administração pública pelo menos desde 2013 [15] — “será levado a cabo no momento considerado conveniente e oportuno pelo Chefe do Poder Executivo bandeirante” [16].

Após mais de dez anos de tramitação administrativa, aludida proposição ainda pende de encaminhamento ao Parlamento.

Por fim, cabe asseverar que procuradores do estado não são contadores, não são oficiais administrativos, não são assistentes técnicos, não são técnicos em informática nem administradores.

São advogados públicos, e a ordem constitucional veda que atuem em sobreposição funcional, fazendo as vezes de servidores de apoio insuficientes ou inexistentes, porquanto, na lição de mais de meio século do saudoso procurador do estado de São Paulo e constitucionalista Celso Ribeiro Bastos [17], existe o direito ao cargo, o direito a uma expressão mínima, ao conteúdo, à essência das atribuições para as quais eles ingressaram no serviço público.

E continua o renomado publicista: “Então, o Estado não pode (…), com fundamento na modificabilidade das cláusulas, unilateralmente, desnaturar de tal maneira o cargo ao ponto de transformar, por exemplo, um procurador do Estado (…) num escrevente”.

Todavia, na PGE-SP, os procuradores do Estado, desprovidos de apoio técnico, desassistidos de servidores de apoio administrativo em número minimamente suficiente e sobrecarregados de trabalho, são ainda injungidos a atuar como contadores, auxiliares administrativos, assistentes técnicos, técnicos em informática, gestores etc., desempenhando tarefas burocráticas divorciadas de seu múnus constitucional, circunstância que não se replica no MP-SP, na DPE-SP e no TJ-SP e que, iniludivelmente, compromete a eficiência de suas atribuições, em frontal e inadmissível prejuízo à coisa pública.

 

 


[1] Cf. arts. 131 e 132.

[2] Cf. art. 99, I a X.

[3] Cf. art. 3º, I a XXI, da Lei Complementar nº 1.270, de 2015.

[4] Fonte: Relatórios Anuais do Governo do Estado de São Paulo e notícias publicadas no site da PGE-SP, disponíveis em https://portal.fazenda.sp.gov.br/acessoinformacao/Paginas/Relat%C3%B3rio-Anual-do-Governo-do-Estado.aspx#, http://www.portal.pge.sp.gov.br/procuradoria-geral-do-estado-arrecada-mais-de-r-4-bilhoes-em-debitos-inscritos-em-divida-ativa-em-2023/ e http://www.portal.pge.sp.gov.br/pge-sp-publica-primeiro-edital-do-programa-acordo-paulista-para-quitacao-de-debitos-de-icms-inscritos-em-divida-ativa/, acesso em 22 fev 2024; e dados de 15 de janeiro de 2024, obtidos a partir de pedido de informação ao SIC-SP.

[5] Em 15 de janeiro de 2024.

[6] Vide Resolução CNJ nº 194, de 2014, que trata da Política Nacional de Atenção Prioritária ao Primeiro Grau de Jurisdição.

[7] Dados de dezembro de 2023, obtidos em consulta ao site https://www.mpsp.mp.br/gestao-de-pessoas, acesso em 22 fev 2024.

[8] O Anexo III a que se refere o parágrafo único do artigo 4º da Lei Complementar Estadual nº 1.118, de 2010, enumera: acompanhar o andamento de processos, inquéritos e procedimentos administrativos, prestando informações ao membro do Ministério Público; executar demais tarefas correlatas a seu cargo; assegurar a exatidão e o fluxo normal de ofícios, certidões, laudos, documentos, atestados, informações, circulares, processos judiciais e outros textos oficiais pertinentes aos membros do Ministério Público; preparar a entrada e saída de dados ou inserir dados em sistemas aplicados de recepção, controle e andamento de procedimentos administrativos e processos judiciais; elaborar ofícios, pareceres, planilhas, tabelas e gráficos, utilizando-se de diversos “softwares”; acompanhar publicações de interesse de sua área no Diário Oficial; realizar, mediante determinação superior, contatos com pessoas e organismos públicos ou privados para atender às necessidades de trabalho; e receber e restituir, sob supervisão, procedimentos e processos administrativos e judiciais.

[9] Fonte: dados obtidos de 15 de janeiro de 2024, obtidos a partir de pedido de informação ao SIC-DPE-SP.

[10] Fonte: dados de 15 de janeiro de 2024, obtidos a partir de pedido de informação ao SIC-TJ-SP.

[11] As Metas Nacionais do Poder Judiciário representam o compromisso dos tribunais brasileiros com o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, buscando proporcionar à sociedade serviço mais célere, com maior eficiência e qualidade.

[12] Cf. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/12/metas-nacionais-aprovadas-no-17o-enpj-1.pdf, acesso em 22 fev 2024.

[13] Cf. https://grandes-litigantes.stg.cloud.cnj.jus.br/, acesso em 22 fev 2024.

[14] Cf. https://www.al.sp.gov.br/spl/2017/04/Acessorio/1000033021_1000055533_Acessorio.pdf, acesso em 22 fev 2024.

[15] Deliberação CPGE 109/08/2013, publicada no Diário Oficial, Poder Executivo, Seção I, São Paulo, de 24/08/2013, p. 62, e http://www.portal.pge.sp.gov.br/carreiras-de-apoio-tecnico-no-quadro-de-cargos-funcoes-da-pge/, acesso em 22 fev 2024.

[16] Cf. https://www.al.sp.gov.br/spl/2018/09/Acessorio/1000230791_1000204157_Acessorio.pdf, acesso em 22 fev 2024.

[17] O funcionário público: natureza estatutária do seu regime, in Revista de Direito Público, vol. 21, julho-setembro de 1972, p. 156.

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