Opinião

Responsabilidade ambiental das instituições financeiras

Autor

  • Werner Grau Neto

    é advogado e professor universitário especialista em Direito Ambiental mestre em Direito Internacional e doutor em Direito Tributário pela USP.

24 de fevereiro de 2024, 13h21

Causou muito alvoroço no meio jurídico, especialmente junto à comunidade dos advogados que atuam na área ambiental, a notícia de uma sentença, de dezembro de 2023, pela qual a Justiça Federal em São Paulo julgou improcedente pedido de instituição financeira para desconstituição de sanção administrativa a si imposta, pelo Ibama, em razão de ter financiado atividade irregular no bioma amazônico.

O crédito concedido por referida instituição financeira teria sido utilizado para desenvolvimento de atividades rurais irregulares, sobre área embargada, o que ensejaria responsabilidade de tal instituição financeira por omissão, já que teria deixado de verificar a veracidade de “declaração de que inexistem embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel”, conforme estabeleceria o Manual de Crédito Rural 2-1, dada a redação posta pela Resolução Bacen nº 3.545/2008.

Por essa razão, a ação para desconstituição da sanção administrativa foi julgada improcedente, declarado válido e eficaz o auto de infração imposto.

O ponto a examinar, aqui, diz respeito ao dever de cautela.

A norma, já revogada, diga-se, invocada pelo juízo da causa, porque à época vigente, estabelece condições para a concessão de crédito, pelas instituições financeiras, a agentes econômicos que pretendam empreender atividades nos municípios situados no bioma amazônico.

O texto da norma invocada traz a seguinte redação (os grifos são nossos) para o ponto que diz respeito à condição atinente à ausência de restrição ao desenvolvimento de atividades econômicas por força de embargo pendente sobre a área objeto do financiamento:

“a) apresentação, pelos interessados, de:

I – Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR vigente; e

II – declaração de que inexistem embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel; e

III – licença, certificado, certidão ou documento similar comprobatório de regularidade ambiental, vigente, do imóvel onde será implantado o projeto a ser financiado, expedido pelo órgão estadual responsável; ou

IV – na inexistência dos documentos citados no inciso anterior, atestado de recebimento da documentação exigível para fins de regularização ambiental do imóvel, emitido pelo órgão estadual responsável, ressalvado que, nos Estados onde não for disponibilizado em meio eletrônico, o atestado deverá ter validade de 12 (doze) meses;

b) verificação, pelo agente financeiro, da veracidade e da vigência dos documentos referidos na alínea anterior, mediante conferência por meio eletrônico junto ao órgão emissor, dispensando-se a verificação pelo agente financeiro quando se tratar de atestado não disponibilizado em meio eletrônico;”

O texto normativo acima transcrito estabelece os limites do dever de cautela a que deve se submeter o agente financeiro que concede o crédito. A restrição tem finalidade clara, de contribuição para o controle e combate ao exercício de atividades econômicas irregulares no bioma amazônico.

A lei e a jurisprudência acerca do tema da responsabilidade das instituições financeiras em matéria ambiental
A Lei nº 6.938/81, pela qual foi instituída a Política Nacional do Meio Ambiente, estabelece a responsabilidade em matéria administrativa por meio do artigo 14.

A jurisprudência, em decisão do Superior Tribunal de Justiça, reconhece que a responsabilidade administrativa, em matéria ambiental, tem natureza subjetiva, impondo-se portanto a verificação do elemento culpa para que se possa apenar determinado agente.

Mesmo na esfera cível, em que a responsabilidade em matéria ambiental impõe-se pela modalidade objetiva, ou seja, sem necessidade de demonstração de culpa, bastando o estabelecimento de nexo de causalidade entre determinada conduta e um dano, a jurisprudência estabelece limites à responsabilização de instituições financeiras, admitindo a responsabilidade apenas quando claramente demonstrado que a instituição financeira, deliberada — nos termos do julgado em que se admitiu a responsabilidade, quando a instituição financeira, mesmo tendo “ciência inequívoca do dano”, seguiu entregando parcelas de um financiamento ao poluidor — e intencionalmente, ofertou recursos viabilizadores da atividade poluente.

Aqui, portanto, somente caberia apontar responsabilidade à instituição financeira desde que verificada quebra no dever de cautela, um abuso diante de uma norma limitadora da liberdade de contratar. E tal raciocínio caberá, inserida a variável culpa, para a responsabilidade administrativa: somente se poderá punir a falta ao dever de cautela se deliberada. O abuso há de ser claro e proposital.

O comando normativo que se extrai do texto normativo que, no caso em consideração, teria sido violado
Para que se examine o fato que, em tese, constituirá o fato gerador da responsabilidade em matéria ambiental, necessário definir-se, brevemente, o que vem a ser o desatendimento ao dever de cautela.

– dever de cautela e abuso
Os textos normativos definem — e precisam ser claros, porquanto o uso de termos jurídicos indeterminados impedem que o texto normativo alcance seu propósito, o de, pela definição do termo jurídico, dar-lhe contornos e limites — o direito, a obrigação de que cuidam e os limites de alcance desse direito ou obrigação.

O descumprimento objetivo, por meio de determinada conduta ou omissão, de um limite posto ao exercício de um direito ou de uma obrigação, configurará o abuso, este ensejador de direitos e deveres secundários àquele que se deixou de atender.

Todo direito, dever, obrigação que se deixa de atender, de cumprir, configura um abuso. Abuso, já tivemos oportunidade de ponderar, é uma forma de violência à regra posta para harmonizar o convívio social e regrar as relações econômicas, um “negar” o ordenamento em nome de um interesse qualquer.

O dicionário Aurélio traz definição sob a qual abuso significa “ausência de justiça, ordem; injustiça, desordem, excesso”.

O abuso, repita-se e destaque-se, deverá ser específico, fruto de um desatendimento objetivo a um comando posto no texto normativo de forma clara e direta; não existirá abuso até que determinado texto normativo estabeleça um direito ou obrigação, delimitando-o de forma clara, sem o quê a configuração do abuso não será clara ou será mesmo impossível.

O dever de cautela, portanto, decorrerá sempre e necessariamente de um comando normativo específico, que ganhará vida quando um fato a ele se moldar.

– o comando normativo do caso em exame, e a configuração de abuso a seus termos
O comando normativo invocado como razão de decidir, no caso em exame, assim vem posto (os destaques são nossos):

“a) apresentação, pelos interessados, de:

I – Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR vigente; e

II – declaração de que inexistem embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel; e

III – licença, certificado, certidão ou documento similar comprobatório de regularidade ambiental, vigente, do imóvel onde será implantado o projeto a ser financiado, expedido pelo órgão estadual responsável; ou

IV – na inexistência dos documentos citados no inciso anterior, atestado de recebimento da documentação exigível para fins de regularização ambiental do imóvel, emitido pelo órgão estadual responsável, ressalvado que, nos Estados onde não for disponibilizado em meio eletrônico, o atestado deverá ter validade de 12 (doze) meses;

b) verificação, pelo agente financeiro, da veracidade e da vigência dos documentos referidos na alínea anterior, mediante conferência por meio eletrônico junto ao órgão emissor, dispensando-se a verificação pelo agente financeiro quando se tratar de atestado não disponibilizado em meio eletrônico;”

O comando vigente à época, ensejador da obrigação, é o de que o interessado em acessar recursos financeiros junto à instituição financeira apresente, destacamos, declaração de que inexistem embargos vigentes de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel.

Ora, declaração é documento de ordem unilateral, que vincula quem a realiza aos termos em que posta. O limite de veracidade e validade de uma declaração é a palavra de quem a expressa, e ao destinatário da declaração, salvo expressa imposição pelo texto normativo, não é dado ou se impõe desacreditar ou investigar a veracidade do quanto declarado.

Note-se, a este respeito, que à instituição financeira não se impõe verificar a veracidade e validade da declaração, mormente porquanto o exige o texto normativo em exame, como obrigação imposta, apenas no tocante a documentos outros listados como requisito ao acesso ao crédito, especificamente aqueles postos no inciso III do dispositivo em questão.

Eis portanto que, posta a estrutura do texto normativo, e os comandos que dele derivam, e dada a máxima de que a interpretação do texto normativo há de ser sistemática, de seu todo, e jamais de um único inciso ou comando — afinal, o direito não se interpreta em tiras — isoladamente, verifica-se que à instituição financeira à qual o interessado pleiteia a concessão de crédito, no cumprimento ao dever de cautela, não caberia verificar a veracidade da declaração de inexistência de embargo sobre o imóvel em que pretenda o interessado exercer atividades econômicas.

O abuso, aqui, consistiria na dispensa, pela instituição financeira, do recebimento da referida declaração como requisito à concessão do crédito. O fato de o conteúdo da declaração não condizer com a realidade é fato de responsabilidade exclusiva do declarante.

Não há, aqui, ofensa ao dever de cautela, daí derivando não haver abuso, descabendo, portanto, impor-se responsabilidade à instituição financeira pela falta de verificação da veracidade da declaração, emitida pelo interessado, que ao depois revelou-se inverídica.

A instituição financeira, destinatária da declaração, de boa-fé, e na forma do quanto estabelecido no texto normativo, deu-se — e devia mesmo dar-se — por satisfeita com o recebimento da declaração. A verificação de seus termos, de sua efetiva identidade com a realidade, constituiria excesso ao dever de cautela, que seria bem-vindo, mas cuja falta não pode sujeitá-la a responsabilidade por falta ao dever de cautela.

Conclusão
Neste breve resumo de estudo realizado acerca do tema trazemos a ponderação de que o apontamento de responsabilidade a uma determinada pessoa, física ou jurídica, sob a premissa de desatendimento a um dever de cautela, demanda exame aprofundado da natureza, extensão e limites da obrigação apontada como desatendida, para que não se dê ao dever de cautela extensão que exceda o limite do comando normativo de que deriva.

No caso tirado como exemplo, o exame sistemático do texto normativo de que lançou mão para a imputação de responsabilidade demonstra o equívoco derivado de emprestar-se excessivo lastro ao dever de cautela que, no caso concreto, limitava-se ao formal preenchimento de requisito cuja validade é de responsabilidade exclusiva daquele que o declara cumprido, não cabendo, na forma do texto normativo, e da obrigação dele derivada, estender-se o dever de cautela para uma obrigação de verificação eu o texto normativo não traz.

O exemplo aqui lançado cuida de texto normativo já revogado, de sorte que não lança qualquer ponderação para casos futuros, limitando-se à ponderação de que, para o período em que vigente tal texto normativo, a obrigação de dever de cautela, para as instituições financeiras, quanto ao ponto específico, limitava-se a uma postura passiva de recebimento de uma declaração.

Autores

  • é advogado e professor. Especialista em Direito Ambiental, mestre em Direito Internacional e doutor em Direito Tributário pela USP. Ativista da proteção animal.

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