Opinião

Mais uma lei obsoleta: proibição de sociedade entre cônjuges do art. 977 do Código Civil

Autores

20 de fevereiro de 2024, 19h32

Em 1º de fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o regime obrigatório de separação de bens nos casamentos e uniões estáveis de pessoas com mais de 70 anos pode ser alterado pela vontade das partes.

Em placar unânime, os ministros, em sede de Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1.309.642, decidiram que a obrigatoriedade do regime da separação de bens apenas em função da idade seria uma discriminação expressamente proibida pela Constituição.

Mas o artigo não era obsoleto ou inconstitucional quando o Código Civil foi editado, inclusive na sua versão de 1916. O que mudou foi a interpretação sobre o artigo.

Existem vários exemplos deste tipo de obsolescência em legislações do mundo todo. No Brasil, sempre foi comum usar o exemplo da disposição que permitia a anulação do casamento se a mulher não fosse virgem ou o crime de bigamia.

Pensando no viés constitucional, um exemplo mais pungente é ligado à escravidão. As constituições “modernas” em sua maioria previam liberdade, igualdade e fraternidade, mesmo antes da Revolução Francesa. E ainda assim, a escravidão era permitida — sem um mínimo de liberdade, igualdade e fraternidade.

Foi necessária uma revisão do “entendimento” da Constituição sobre o que era direito à igualdade para a abolição da escravidão e hoje ninguém questiona este entendimento.

Na recente decisão do STF, um dos votos menciona que pessoas de 70 anos não são mais velhinhos gagás, reconhecendo o fato social de que não só a expectativa, mas a qualidade de vida da população evoluiu.

E essa é apenas mais uma correção feita pelo STF mas ainda há muita disposição que, na ausência de correção legislativa, dependem do judiciário para serem corrigidas.

Um artigo que vem à mente com o reconhecimento da limitação interpretativa declarada pelo STF é o artigo  977 do diploma civil, o qual se transcreve para melhor compreensão:

“Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória”.

Ora, se a separação obrigatória não é mais obrigatória, será possível a constituição de sociedade entre cônjuges que já casaram sob esse regime?

A vedação sempre foi pautada pela vontade de não se permitir que a sociedade empresária fosse usada como burla ao regime obrigatório. Logo, aparentemente, ele não tem mais razão de ser.

Direito individual sempre prevaleceu sobre o coletivo
E, na verdade, pior ainda é a situação deste artigo em relação à primeira parte do dispositivo: a proibição de sociedade entre pessoas casadas no regime da comunhão total de bens.

Aliás, as limitações deste artigo como um todo sempre priorizaram o direito individual e patrimonial de um casal sobre o interesse econômico geral, já que a vedação atravanca a dinâmica das relações econômicas no país e apequena a valorização social do trabalho e da livre iniciativa.

Sim, porque, afinal, de acordo com estudo conduzido pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em parceria com o Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), nove de cada dez instituições brasileiras são familiares e segundo dados da Fenacon (Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas), as ditas empresas familiares são responsáveis por aproximadamente 65% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional e empregam cerca de 75% dos empregados brasileiros.

Proibir associações empresariais entre casais que escolheram o regime de comunhão universal ou separação obrigatória é um atraso legislativo de impacto econômico geral.

E aí voltamos em primeiro lugar à razão para a vedação destinada ao regime da separação obrigatória — que presume uma fraude por parte do casal que quer constituir uma sociedade, o que, a bem da verdade, não pode ser presumido.

A fraude precisa ser analisada in concreto. O simples fato de cônjuges casados nos regimes de comunhão universal ou separação obrigatória quererem constituir uma sociedade nada mais é do que o espelho da realidade empresária brasileira: empresas familiares sustentam a economia do país, seja produzindo riqueza ou empregando mão de obra.

Sabemos que o próprio Código Civil no §2°do seu artigo 1.639 admite a alteração do regime no curso do casamento por meio de pedido judicial desde que apurada a procedência das razões e ressalvados os direitos de terceiros.

No entanto, é mais uma demanda judicial que vai demorar meses e abarrotar mais ainda o já sofrido sistema judiciário brasileiro.

As Juntas se recusam (com toda razão) a aprovarem e registrarem sociedades familiares com cônjuges casados em tais regimes. Perde-se o timing quando casais desejam estabelecer uma sociedade, mas precisam esperar meses por uma autorização judicial que não se sabe se e quando vai ser expedida.

O ritmo legislativo é diferente do ritmo social empresário e o país é quem perde.

Liberdade econômica
E aí a situação é pior quando imagina-se a comunhão total, aplicável — na prática — a casamentos realizados até 1977 — ou seja, entre pessoas já idosas.

A própria Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) que tem como objetivo promover a liberdade no exercício de atividades econômicas, eliminando barreiras e restrições desnecessárias tem como princípio norteador “a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas”.

Mais adiante a lei diz que são direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e crescimento econômicos do país “gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário”.

E, com uma legislação tão ruim, o que é feito? Em vários casos, uma burla: a vedação legal do art. 977 não abrange as sociedades anônimas (S.A.).

Isso porque consoante o artigo 1.089 do Código Civil, esse tipo societário é regulamentado por lei especial (Lei nº 6.404/1976), a qual não impede que pessoas casadas sob os regimes previstos no artigo 977 constituam uma S/A.

De qualquer forma, tanto no regime de bens de comunhão universal quanto no de comunhão parcial (o qual não foi abrangido pela vedação do artigo 977), cada cônjuge é titular do patrimônio comum (no caso da comunhão, o patrimônio constituído depois do casamento), por meio de sua meação, não individualizada na vigência do regime de bens.

Então, o que o legislador quis evitar, no final das contas, terá a mesma solução, ou seja, cônjuges casados no regime de comunhão parcial de bens que constituem uma sociedade terão o patrimônio combinado e quando um deles falecer, metade será do outro cônjuge, da mesma forma que no regime de comunhão universal.

Mas o ponto ainda não abordado — no tocante à obsolescência — é o casamento no regime da comunhão total.

Neste caso, o legislador entendia que o patrimônio era um só (o que não é bem verdade, pois há jurisprudência que protegia a meação em que só um cônjuge era sócio, mesmo na comunhão universal). De todo modo, em sendo entendido como um único patrimônio, entendia-se que não era possível constituir empresa de um só dono.

Ter dois sócios em comunhão total seria o mesmo que ter apenas um sócio casado em comunhão total. A garantia de bens particulares seria única.

Note-se outra falha da legislação, porque o patrimônio dos sócios não deveria responder pelas dívidas de sociedades limitadas (as que estão realmente proibidas). A desconsideração de personalidade é uma exceção.

O pior, porém, é que: as sociedades unipessoais já são permitidas há mais de uma década!!!

Isto é, uma pessoa casada no regime da comunhão total pode constituir uma empresa sozinha. E, se assim for, por que não pode constituir com seu cônjuge?

Sim, seria semelhante a ter uma empresa unipessoal, do ponto de vista patrimonial. Mas, na prática, os sócios podem ter regras específicas de gestão derivadas de sua liberdade contratual, conforme sua conveniência.

Artigo 977 não se justifica
Assim fica fácil notar que o artigo 977 não se justifica mais. Antes, só na primeira parte (comunhão total desde a criação da sociedade unipessoal). Agora, também na segunda parte (fim da obrigatoriedade da separação, por decisão do STF).

Enfim, obsoleto, ultrapassado, fora de uso, antiquado, arcaico. O artigo 977 é um entrave à promoção da liberdade econômica e das atividades comerciais no Brasil.

Há projeto de lei de autoria do senador Fabiano Tolentino (PL nº 5888/2019) que visa incorporar ao Código Civil a determinação de que cônjuges casados em comunhão universal de bens ou separação obrigatória não possam constituir, entre si, sociedade simples ou empresária.

Na visão do senador, que cita posicionamento do STJ, não está claro o tipo de sociedade a que o artigo 977 se refere quando proíbe a sua constituição, devendo ser expressamente vedada a sociedade empresária e simples, bem como requer sejam excepcionadas da vedação as sociedades por ações e cooperativas, por não serem sociedades contratuais.

Atualmente o PL foi apensado ao PL 699/2011 e aguarda apreciação pelo Plenário da Câmara.

A se ver pelo PL do senador, ele não entendeu nada e não conhece a realidade comercial do Brasil.

Esperamos que o STF profira decisão quanto à inconstitucionalidade do artigo 977 nos mesmos moldes que fez recentemente com o artigo 1.641, II, do Código Civil, trazendo um alívio e uma proximidade da lei com a realidade do país. Os cidadãos empresários do país e os advogados atuantes na área agradecem.

Autores

  • é advogado especializado em planejamento patrimonial, nova economia, assuntos digitais e sócio da LBZ Advocacia, especialista em Processo Civil pela PUC-SP, mestre em Direito Constitucional, MBA em Gestão Tributária pela Fipecafi, com extensão em Direito Internacional em Genebra, em Direito Falimentar pela FGV, em Estratégias de Mentoria Empresarial e Liderança por Harvard, LL.M. em Direito Societário e Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, acadêmico de economia e entusiasta de blockchain e criptoativos.

  • é advogada e graduada em jornalismo, com pós-graduação em Direito Civil e especialização em Direito Empresarial, especialista com planejamento patrimonial e sucessório na LBZ Advocacia.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!